2. A OBRA OBJETO DO ESTUDO
2.1- “Ilusão”:
estrutura e características gerais
“Ilusão”, publicado em 1911, consiste numa coletânea de poemas compostos
em diferentes épocas. A data mais antiga registrada abaixo de um poema é 1897.
Segundo Nestor Vítor, como livro simbolista “Ilusão” “já vem um pouco fora do seu tempo”1, isto é, foi publicado quando aquele movimento
literário já atingira o seu apogeu com a obra de Cruz e Souza (1861-1898) e
terminara em 1909, se adotarmos a referência temporal de Tasso da Silveira 2 (Massaud
Moisés restringe o nosso Simbolismo ao período 1893-1902, este último o ano de
publicação de “Canaã” de Graça Aranha e marco inicial do Pré-Modernismo).3
Mas Andrade Muricy, em seu estudo de 1919, relativiza o caráter
simbolista de “Ilusão”, pois nesse livro, que contém mais de uma centena de
poemas, apenas “Umas vinte poesias” são “cabalmente
simbolistas”, citando, dentre estas, “Lyrio!”, “Ideal”,
“D.Morte”, “Não é só te querer...” e “Justiça”. Para esse autor, “Azar”
e “Cavaleiro” já vão “além das
fronteiras da ‘escola’”, sendo este último poema
considerado por ele a “melhor
realização simbolista” de EP. Muricy também considera
“Ilusão” “um livro defeituoso em sua
organização”, atribuindo a sua heterogeneidade à evolução
espiritual do poeta (daí a importância de se atentar para as datas dos poemas).
Afirma ainda que “A feição simbolista” de EP
foi “transitória” 4
Em estudo posterior sobre EP, que consta na obra coletiva “A Literatura
no Brasil”, direção de Afrânio Coutinho, v. IV, Andrade Muricy cita os poemas
que considera tipicamente decadentistas (ou seja, simbolistas) de “Ilusão”,
além de “Dama”: “Azar”, “Desde que comecei...”, “Ideal”,
“D.Morte”, “Estátua”, “De um fauno”, dentre outros (p.130)
(mais adiante, na p.137, refere-se a “Vencidos”, e sua “terminologia nitidamente ‘decadente’”). E afirma ainda:
Em “A Rebours”, Huysmans fixou /.../ a fisionomia
estética compósita do Decadentismo, regurgitante de esoterismos decorativos, de
velhos prestígios legendários, do hieratismo ritual de Bizâncio, perpassada por
lufadas ardentes das vozes bíblicas, acusando traços da crueldade e da angelitude medievais 5
O Decadentismo na França,
conforme Massaud Moisés, foi o movimento precursor do Simbolismo. Em nosso
caso, segundo ele, é impossível “apontar com rigor os limites entre o
Decadentismo e o Simbolismo” 6
*
Em “Ilusão”, EP reuniu em um
único volume diversos poemas seus, publicados anteriormente na imprensa, como
era costume ocorrer então.
O poeta estruturou o livro,
que contém 106 poemas, em seis seções,
antecedidas por “Prólogo” (1 soneto), no qual consta, em síntese,
a sua visão de mundo, e opção estética :
I) “Plumas”-
(18 sonetos)
As “plumas” -- um apêndice do
elmo -- representam a identificação do artista, ou poeta, com o cavaleiro
andante medieval, em permanente combate pelas causas nobres. Predominam aqui
poemas sobre a luta pela Beleza, ou pelo Ideal, travada pelo poeta-cavaleiro,
incluindo também poemas que buscam caracterizá-lo com outras imagens (a do rei,
do eremita e dos “menestréis da rua”).
II) “Poesias Diversas”-
(15 poemas, assim distribuídos: 9 sonetos, 3 poemas em
quadras, 2 em sextilhas e 1 em dísticos)
Esta seção, como se vê, não é
composta só de sonetos, como a anterior, embora constem aí majoritariamente. Os
temas são heterogêneos, mas há certa predominância de poemas que tratam do
amor, da morte e da elevação espiritual.
III) “Solidão”-
(15 poemas, dos quais 7 são sonetos, 4 formados por
quadras, 2 por dísticos, 1 ode e 1 poema com 18 versos irregulares. Ode é
definida assim no dicionário Aurélio: “Composição poética de caráter lírico,
composta de estrofes simétricas”)
A seção possui um tema
unificador. O poeta está só, infeliz, desejando ser outra pessoa. Nesta seção
ocorre a inclusão de poemas, como “Flora” (sobre a primavera), “Em
seu louvor” (louvor à Virgem Maria) e “Nox” (sobre a noite), que não
tratam diretamente do tema da solidão, mas o fato de terem sido incluídos aqui
é revelador das associações pretendidas pelo poeta.
IV) “Sátiros e dríades”-
(15 poemas, dos quais 12 são sonetos, 1 com versos
rimados dois a dois, 1 formado por quadras e 1 com estrofes irregulares quanto
ao número de versos, que são rimados dois a dois, exceto no final)
Os “sátiros”, na mitologia
clássica, eram semideuses lúbricos, parte humanos, parte animais (pois tinham
chifres, pernas e pés de bode), que habitavam os bosques. As “dríades”, ou
ninfas, também os habitavam. EP quis
denominar assim a seção que contém poemas sobre a relação amorosa, não só
envolvendo personagens da mitologia greco-latina, mas também bíblicos (“Versículos
a Sulamita”) e D.Juan, personagem lendário espanhol, inspirador de obras
dramáticas e literárias, além de óperas. Sobre o tema de D.Juan, a seção inclui
uma série de oito sonetos.
V) “Um Violão que Chora...” –
(8 poemas, sendo 2 sonetos, 2 poemas em quadras, 2 em oitavas,
1 em quintilhas e 1 em décimas)
O nome da seção já é uma
metáfora, relacionada ao lamento dos poemas aqui contidos sobre as penas do
amor, e a frustração existencial. Os
poemas não contêm títulos. Estão numerados de I a VIII.
Os poemas II e V foram consideradas por Andrade Muricy “modinhas do
tipo oitocentista”
7, enquanto Nestor Vitor considerou o poema II “delicadas
endechas com vago sabor seiscentista” 8. De qualquer forma, os poemas
VII e VIII apresentam uma linguagem que destoa dos anteriores, e também diferem
quanto à forma (são sonetos).
VI) “Poemas”-
(34 poemas, assim distribuídos: 13 em quadras, 6 em
dísticos, 5 sonetos, 5 em versos rimados dois a dois, 3 sem estrofes regulares,
1 poema com estrofes irregulares e versos rimados dois a dois, exceto no final,
1 poema em quadras, exceto no final, com versos irregulares quanto ao número de
sílabas)
É a seção que contém o maior número
de composições, de temática
diversificada. Abrange poemas sobre a morte ideal, a passagem do tempo,
o azar, o amor, a ânsia de viajar, o ser humano em face do ideal, a beleza, a
arte, a felicidade, a juventude, o canto do passarinho, o espírito livre do
corpo. Inclui poemas cristãos justapostos a uma crítica à Igreja Católica e aos
jesuítas-- “Punição do herege” (EP pretende mostrar, com essa
justaposição, que sua aproximação a Deus não significa aproximação à Igreja
Católica). Consta também aí um poema satanista-- “Canção do diabo”. EP
incluiu nesta seção, e não em outra, certos poemas, seguramente para manter a
sua ambiguidade. Por exemplo, “Entre essa irradiação”: é sobre a amada
ou a Beleza?.
Vê-se,
pelos títulos da segunda e sexta seções, que EP não usou um critério muito
rigoroso na estruturação do livro.
Em resumo, os 106 poemas de
“Ilusão” apresentam o seguinte perfil quanto à forma adotada:
54 sonetos
23 poemas em quadras
1 poema em
quadras, exceto no final
9 em dísticos
ou parelhas (estrofes compostas de dois versos)
6 poemas com
versos rimados dois a dois
2 poemas com
versos rimados dois a dois, exceto no final
4 poemas sem
estrofes regulares
1 em quintilhas
2 em sextilhas
2 em oitavas
1 poema em
décimas
1 ode
(Obs.: considerei “Oh! que
ânsia de subir hoje mesmo a montanha!” composto por 3 poemas. O
mesmo critério foi usado com relação a “Adultério de Juno”).
*
Heitor Martins 9, em seu interessante ensaio sobre “Ilusão”, considera
esse livro uma “obra
historicamente importante” (p.69). Segundo ele,
Dentro do cômputo geral do grande surto do realismo
burguês no Brasil (1870-1920), pela sua
localização cronológica, a obra maior de Emiliano Perneta, ‘Ilusão’ representa
o momento de cristalização do
ecletismo das várias tendências que se entrechocavam e o nivelamento, num mesmo
plano, das várias linhas de destaque que haviam convivido no mundo literário
brasileiro. Daí sua importância histórica (p. 75).
A importância do livro, assim, está em sintetizar tendências opostas do
“período em que a ideologia da Idéia
Nova estava no seu apogeu até os últimos estertores da literatura da ‘belle
époque’.” (p.69).
De um lado, Heitor Martins constata em “Ilusão” a adoção de
características da Idéia Nova (que para ele significa “aceitação dos valores culturais da burguesia dominante”) e de outro, constata reação a tais características, própria
dos “raros”, ou antiburgueses, representados pelos boêmios.
Estas são, para esse autor, as características contraditórias da poesia
de “Ilusão” (com os poemas que cita a título de ilustração), de acordo, ou não,
com os princípios estéticos da Idéia Nova:
1)
quanto à impassibilidade:
adoção:
-“descritivismo nacionalista” (“Durante
uma enfermidade”, “Iguaçu”) e greco-românico” (“De um fauno”,
“Flora”, “Adultério de Juno”)
-“erotismo visual da plena nudez dionisíaca” (“No tronco de uma
árvore”, “De um fauno”, “Adultério de Juno”; pelas referências às estátuas: “Posto que já...”,
“Súplica de um fauno”; erotismo bíblico:
“Salomão”, “Versículos de Sulamita”)
reação:
-temas da fuga (“Embarque para Citera”, “Versos para embarcar”)
e da Idade Média (“Orgulho”, “Azar”). Esse medievalismo é
considerado como alienação no tempo (pelo anacronismo) e no espaço (pois não
existiu em nosso passado)
-intelectualização dos sentidos humanos, erotismo mental (“Adultério
de Juno”, “Ainda outro do mesmo autor”, “E finalmente o
último”)
2)
quanto à precisão detalhista:
adoção:
-cromos (“Convalescente”, “Ovídio”, “A fome de
Erisicton”, “Baucis e Filemon”, “Heliogábalo”)
- casticismo linguístico;
reação:
-experimentalismo (cf. várias citações na p.103), sinestesia (“À toi!”),
impressionismo (“Lyrio!”, “Amor cinzento”) e expressionismo (“Sol
d’inverno”)
3)
cientificismo
adoção:
-horror à igreja organizada (“Punição do herege”)
-sugestão evolucionista (“Quadras”)
reação:
-espírito religioso (“Canção do diabo”, alusões bíblicas), marcado
pelo esoterismo (“O enigma”) e pelo tradicionalismo (“Solidão” I
e II, devoção mariana: “Em seu louvor”).
Essas características contraditórias estão presentes, de fato, na poesia
de EP, o que revela o seu ecletismo estético. Heitor Martins atribui, porém,
peso excessivo ao cientificismo, pois a atitude de EP lhe é francamente hostil,
é a atitude de alguém que desconfia da ciência e da razão.
Por outro lado, sua interpretação de que as características literárias
vinculadas à “reação” sejam diretamente decorrentes da cosmovisão da pequena
burguesia, ameaçada pelo progresso, me parece muito linear e pouco dialética.
Essa interpretação, que busca associar as atitudes dos indivíduos aos
condicionamentos, e perspectivas, de sua classe, no âmbito da evolução do
capitalismo, menospreza, a meu ver, a relativa autonomia do espírito humano
face à sua condição de classe.
O fato de terem prevalecido certas características (cf. “adoção”) no
período histórico em questão (1870-1920) não significa que representantes da
alta burguesia (ou de outras classes sociais), em face do reconhecimento da
precariedade da vida, não possam ter tido também uma atitude escapista, não
tenham querido fugir para o sonho, seja ele de uma Idade Média mítica ou do
mundo transcendental (ou fugir, como atualmente, para o mundo dos “paraísos
artificiais”...). Por que somente a pequena burguesia deveria estar associada à
busca de tais refúgios? Não se estaria, com tal procedimento, desconhecendo a
essência da condição humana, comum a todas as classes sociais?
2.2- A obra posterior
A obra poética mais significativa de EP, posterior a “Ilusão”, é
constituída pelo poema dramático “Pena de Talião” e a coletânea póstuma
“Setembro”. Esses poemas foram agregados
aos de “Ilusão” para efeito deste trabalho, que assim terá como objeto de
estudo toda a obra considerada madura do poeta.
Antes de “Ilusão”, EP publicou “Músicas” em 1888, quando ainda era
estudante em São Paulo (cf. nota sobre esse livro nos Anexos). Essa obra de
estréia é descartada pelos críticos mais favoráveis a EP, que a consideram de
valor apenas “documental” 10. Andrade
Muricy afirma ainda que em “Músicas” “a influência das ‘Canções Românticas’, de Alberto de
Oliveira, é a mais sensível, num parnasianismo moderado.” 11
*
“Pena de Talião” é um poema dramático, mais extenso do que aqueles que integram “Ilusão”
(“Adultério de Juno” e “Sol”) e “Setembro” (“Vamos!” –“Quando
Jesus nasceu”). Foi publicado como livro independente, pelo autor, em 1914.
O poema está composto em versos alexandrinos, rimados dois a dois, e
abrange um prólogo, três atos e um epílogo. Seu enredo se baseia na história de
Céfalo, da mitologia grega.
O prólogo consiste num diálogo entre o caçador Céfalo e Aurora, a
deusa do amanhecer. Céfalo rejeita o amor desta, por amar Prócris, com quem vai
se casar.
O ato primeiro tem como cenário o banquete de núpcias, na casa de
Ericteu, pai de Prócris. Inicialmente, há um diálogo entre Lísias e Aminto, que
são os primeiros a chegar. Comentam a tolice de Céfalo em rejeitar Aurora. Aminto é poeta, e está lá
porque espera ver Glicera, a sua amada. Na cena seguinte, chegam os noivos,
damas e cavalheiros, sátiros e ninfas. Todos tomam assento à mesa, e há
comentários sobre a grosseria de um dos convidados, Cleanto, que pisou no calo
de uma dama e só pensa em comer. Comentam que “parece um porco”, quando
mastiga. Ericteu saúda Júpiter, que está presente, e também discursa. Aminto
saúda os noivos declamando um poema seu, que é um elogio do amor.
O ato segundo se passa numa casa de jóias, pelas quais “a
ateniense é louca”. Damas e cavalheiros conversam. Filon discute com um jovem a
respeito da bela Friné, que ficou nua perante o austero tribunal, que a acusara
de “corruptora da mocidade”. Diz que ele a criticou por despeito, pois viu
reluzir o grande anel que deu a Friné no dedo da criada. Ao se retirarem,
prometem a Mirto, dona da casa de jóias, voltar. Chega Céfalo, e este conversa
com Mirto, que não acredita na fidelidade das mulheres, pois seu
filho foi enganado pela esposa. Na discussão, ela lhe propõe uma aposta. E
assim Céfalo se disfarça de mercador de jóias para testar Prócris quando ela
visita aquela casa. Esta o reconhece, mas não demonstra isso. O mercador a
emociona com as jóias que vão sendo colocadas em seu corpo, e que são usadas
para facilitar a aproximação. Quando ele consegue, enfim, lhe dar um beijo na
boca, Céfalo retira o disfarce, e ouve-se
“uma gargalhada estridente”, mostrando que a velha ganhou a aposta.
O ato terceiro se passa na casa de uma cartomante chamada Cloé.
Prócris a procura, e expõe a sua triste condição. Fugiu de Céfalo, a quem ama,
e vive há dois meses longe dele, com uma gente humilde, que lhe deu abrigo
naquela ilha de Creta. Prócris acha que o que lhe aconteceu foi obra da rival,
Aurora. A cartomante aconselha Prócris a fazer com Céfalo, o que ele fez com
ela, i.e. disfarçar-se e testar a sua fidelidade. Assim, Cloé a veste como uma
cartomante, e é ela quem recebe Céfalo, que também a procura para ouvir o que
as cartas têm a lhe dizer. No final, a moça disfarçada demonstra interesse por
ele, e Céfalo acaba cedendo aos seus encantos, beijando-a na boca. Quando a
verdadeira cartomante entra na sala, encontra os dois abraçados. Prócris então
tira a máscara e se revela a Céfalo.
No epílogo, o caçador Céfalo está “em doce paz” com Prócris (ela
porém anda atrás dele o tempo todo, pois é insegura de seu amor). Céfalo
naquela manhã espera a caça, no vale, que passará por ali para beber à fonte
próxima. Quando ouve um ruído no meio da vegetação, pensa tratar-se do animal e
lança seu dardo. Mas não é a sua caça e sim Prócris que ele atinge com o dardo,
matando-a na mesma hora. Inconformado pelo seu crime involuntário, não espera
pelo julgamento do Areópago, e dá a si mesmo a pena que ele julga merecer,
matando-se com um golpe sobre o coração (essa é a justificativa para o título
do poema).
“Pena de Talião” é, assim, um poema sobre os desencontros do
amor, e isso é ilustrado não só pela relação entre Céfalo e Aurora, mas também
pela relação entre Céfalo e Prócris. Como na “Quadrilha” de Drummond, Aurora
ama Céfalo que ama Prócris, a qual, embora correspondendo a seu amor, é morta
pelo próprio amado, por um equívoco bem próprio da condição humana. Além desses, o poema refere-se ainda a dois
outros casos de amor frustrado: o do filho de Mirto, traído pela esposa Helena
(ato II, cena I), e o do jovem que ama Friné (ato II, cena II). Menciona ainda
o amor de Aminto por Glicera, mas nada nos diz sobre os sentimentos desta com
relação a ele (em sua curta fala, ela apenas elogia outro homem, o que deixa
Aminto irritado- cf. ato I, cena III).
A propósito desse livro, disse Nestor Vítor:
“Pena de Talião” pode-se considerar
como um livro irmão gêmeo daquele anterior
(“Ilusão”), senão o mesmo
livro, apenas sob a forma de uma vulgata, desta feita. É a “ilusão” simplificada,
humanada, até banalizada, tanto quanto está no poeta resignar-se a isso. 12
*
“Setembro”
é um livro póstumo, publicado em 1934, e organizado por Andrade Muricy. Contém
30 poemas, dos quais 14 são sonetos, 8 são formados por quadras, 6 por
dísticos, 1 por tercetos e 1 é poema dramático, em versos alexandrinos, rimados
dois a dois.
A característica principal desse livro é a religiosidade dos últimos
poemas, ou o elogio da crença em Deus, que o poeta enfim assume explicitamente
(“Creio!”). Uma dezena de poemas apresenta esse caráter religioso
(cristão, mas não católico), notando-se aí o “louvor à obra do Criador”, o
elogio à oração (“Por Maria”, “Oração da noite” etc) e o
arrebatamento pela luz de uma estrela na Noite de Natal (“Vamos!- Quando
Jesus nasceu”).
Todavia, o livro também inclui poemas com outros temas, semelhantes aos
de “Ilusão”, tais como o elogio da natureza e da vida no campo (“Setembro”,
poema que dá o título à coletânea), o apelo ao homem para que entre na batalha
pelo bem (“Hércules”), os temas da viagem (“O brigue”), do amor
(“De um fauno”, “A felicidade”), da vida (“Palavras a um
recém-nascido”) e da morte (“Numa hora de dor”, “Última volúpia”).
“Setembro” inclui cinco poemas que, pela data indicada de sua
elaboração, deveriam constar de “Ilusão”, pois são anteriores a 1911 (cf.
“Relação dos poemas” no cap.8 deste trabalho). São eles: “Damas” (1903),
“De um fauno” (1895), “Soneto” (1902), “Fogo sagrado”
(1900) e “Christe, audi nos” (1897). A esses, deveriam ser acrescentados
doze outros poemas “esparsos”, reunidos e publicados sob esse título em “Ilusão
& outros poemas”, além de “Inexprimível”, transcrito no “Emiliano” de
Erasmo Pilotto, que se refere a ele como uma das “jóias” da fase parnasiana de
EP.13
Por que o poeta não incluiu esses poemas em “Ilusão”? À parte razões de
ordem prática (EP não mantinha arquivo completo de toda a sua produção poética)14, deve tê-los excluído pelas seguintes razões: 1) por
considerá-los de qualidade inferior a outro poema que explorou tema semelhante
(é o caso de “Damas”, “Fúlvia”, “Sulamita”, “A um
cínico”); 2) por serem polêmicos e terem recebido muitas críticas dos
contemporâneos (“Soneto”, de 1902, “Fogo sagrado”); 3) por
problemas de versificação (“Soneto para não ser entendido”, “Canção
do mau tempo”, “Soneto de outrora”); 4) por serem comprometedores,
pelo envolvimento do poeta num triângulo amoroso (“De um fauno”, “Soneto”,
de 1893); 5) pela sua pouca originalidade (“Christe, audi nos” “está cheio de Verlaine”, segundo Erasmo Pilotto 15).
Com relação
a “Inexprimível”, talvez o motivo básico da exclusão seja o fato de que
destoa das associações de idéias vinculadas à imagem do mar, comum a diversos
poemas de “Ilusão” que a ele se referem (v. adiante). Não creio que o soneto
tenha sido excluído de “Ilusão” por vincular-se esteticamente ao parnasianismo.
Apesar de querer-se “simbolista”, o livro se caracteriza, na realidade, pelo
seu ecletismo estético, como já foi mencionado.
“Inexprimível” é transcrito
abaixo, tal como aparece em “Emiliano” (o poema foi publicado anteriormente em
“O Pierrot”, do Rio de Janeiro, numa edição de 1890 16). Nesse belo soneto (especialmente
pelo segundo quarteto), o poeta, com sua “raiva impotente” para expressar o
“inexprimível”, se compara ao mar:
Nesse bravo rumor de oceano indefinido,
Quando bate e regouga e
brame estranhamente, (1)
Há não sei quê de grito
e de raiva impotente,
Um soluço imortal, um
estranho rugido...
Há um mistério qualquer
nesse peito fremente,
Uma revelação de um
segredo perdido
No passado, e que tu, ó
profeta esquecido! (2)
Andas a revelar
bramindo eternamente...
Eu que vivo também
preso aos grilhões do Verso, (3)
Na tormenta febril das
paixões do Universo,
Sem nunca as traduzir,
nem nunca as balbuciar...
Como eu compreendo e
sinto esse delírio extremo,
A revolta, a
impotência, o vozeirão supremo,
A linguagem confusa e
rouquenha do mar!
--------------
(1)
Regougar=
produzir som áspero; bramir= fazer grande estrondo; retumbar, ribombar (dic. Aurélio)
(2)
Cf. a personificação
(3) Cf. a metáfora
Notas ao capítulo 2
1 VÍTOR, Nestor- “Obra crítica”- v.I, Ministério da
Educação e Cultura/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1969, p.431
2 SILVEIRA, Tasso da – “Cruz e Souza”. Coleção “Nossos
Clássicos” nº 4. Rio de Janeiro, Agir, 1967- 3a. ed., pp. 5-6
3 MOISÉS, Massaud – “A Literatura Brasileira- v. IV- O
Simbolismo”- 2a. ed., São Paulo, Ed. Cultrix, 1967, p. 17
4 MURICY, Andrade- “Emiliano Perneta”- Rio de Janeiro,
América Latina Editora, 1919, pp.45-46
5 “A Literatura
no Brasil”—direção de Afrânio COUTINHO – v. IV, 2a. ed., Rio de
Janeiro, Editorial Sul Americana S.A., 1969.
6 PAES, José Paulo e MOISÉS,
Massaud (org)--“Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira”. S.Paulo, Cultrix,
1969- p. 86.
7 MURICY, Andrade – “Emiliano Perneta”. Coleção
“Nossos Clássicos” nº 43- Rio de Janeiro, Agir, 1966- 2a. ed., p.
26. O dicionário Aurélio assim se refere a modinha: “Da segunda metade do século
XVIII até c. 1850, gênero de romança de salão, em vernáculo, e inspirada,
quanto à forma, na ária de ópera italiana”. “Romança”, segundo o mesmo dicionário, é canção, em geral estrófica,
sobre aventuras e outros feitos; no sentido musical, é composição instrumental
de forma não muito bem definida, mas quase sempre de caráter lírico.
8 VÍTOR, Nestor – “Obra crítica”- vol. I, op. cit., p.
434. Segundo o “Dicionário de Termos Literários”, de Massaud MOISÉS (6ª ed.- S.
Paulo, Cultrix,1992), endecha “/.../ consiste numa canção breve, de assunto triste e
plangente. Compõe-se geralmente de uma estrofe, de quatro versos de cinco ou
seis sílabas, com os seguintes esquemas de rimas: abcb, abab, abba. Como o vocábulo ‘endecha’ também designa esse
tipo de quadra, ao poema formado de mais de uma estrofe dá-se o nome de
‘endechas’”.
9 MARTINS,
Heitor – “Subsídios para uma leitura histórico-sociológica do livro Ilusão
de Emiliano Perneta” in “Textura” nº 2- Curitiba, Secretaria de Estado da
Cultura e do Esporte, jul.-dez. de 1981
10
Cf. MURICY, Andrade – “O Símbolo à Sombra das Araucárias”, Conselho Federal de
Cultura/Departamento de Assuntos Culturais, 1976, p. 113; SILVEIRA, Tasso da –
“A poesia de Emiliano Perneta”, introdução ao v. II de “Poesias Completas de
Emiliano Perneta”, Rio de Janeiro, ed. Zélio Valverde, 1945, p. II
11 MURICY, Andrade – “O Símbolo...”, op. cit.
12 VÍTOR, Nestor – “Obra crítica”, v. I, op. cit., p.
464
13 PERNETA,
Emiliano- “Ilusão & Outros Poemas” (introd e seleção de Cassiana Lacerda Carollo)- Curitiba, Prefeitura
Municipal, 1996 (col. Farol do Saber); PILOTTO, Erasmo- “Emiliano”- Curitiba,
Gerpa, 1945, p. 132.
14 PILOTTO,
Erasmo – “Emiliano”, op cit, p.136
15 Ibidem,
p. 152
16 Conforme
“Decadismo e Simbolismo no Brasil”-1ª ed, v.2- Brasília, LTC/INL- MEC, 1981
(seleção e apresentação de Cassiana Lacerda Carollo), o soneto foi publicado
em “O Pierrot”- Rio de Janeiro 1 (2):2, de 13.09.1890.