3.5- Crença em Deus &
humanismo cristão
Como foi dito no capítulo
anterior, EP é acometido, intermitentemente, pelo tédio. Nesse estado
psicológico, acentua-se a sua inquietude diante da vida, o seu desejo de
viajar, “seja para onde for”. Sente-se, na verdade, um exilado neste mundo, e
aspira pela “pátria verdadeira”, a do espírito. Tal característica ele tem em
comum com o homem religioso, embora EP não tenha optado por nenhuma religião em
particular. Pelo apego a certos aspectos externos da liturgia católica,
inclusive a linguagem desta, e pela afeição à Virgem Maria, sua opção natural
seria a do catolicismo. Todavia, ele não a faz, tendo mesmo incluído um poema
anticlerical em “Ilusão” (“Punição do herege”), e estes versos em “Azar”:
“Ouvem os Arlequins missa, todos de tochas,/ E
estão vestidos de sobrepelizes roxas.” Tornou-se, entretanto, cada vez mais, um poeta cristão, como mostram
os poemas religiosos do livro póstumo “Setembro”, embora “Ilusão” já o
prenuncie como tal, em alguns poemas, comentados abaixo.
EP é sensível a certos aspectos
exteriores, ritualísticos, da religião católica, como aliás outros poetas
(românticos e simbolistas) antes dele.
Em sua “Prosa”, há um texto em
que ele relata uma visita que fez, após o jantar, a uma igrejinha do interior,
durante um “terço”, e nota-se aí todo o seu encantamento pela cerimônia que se
realizava. Nesse texto, descreve o altar, e afirma que depois do celebrante e
dos três acólitos rezarem baixinho em latim, “cantaram
à Virgem Mãe de Deus versos de uma doçura, de uma simplicidade e singeleza,
como não há nem haverá jamais em outra poesia que não seja a poesia anônima do
povo.”1
Todas aquelas pessoas (como eu
próprio) que foram formadas na religião
católica -- ainda que na vida adulta a abandonem – sentem o mesmo, em ocasiões
semelhantes. São emocionalmente afetadas por tais eventos, que estão associados
à sua própria experiência de vida, à doce memória da infância, quando iam à
igreja acompanhados da mãe... É algo que sensibiliza o coração, ainda que a
razão não o compreenda...
*
Antes de abordar os poemas
religiosos de “Setembro”, gostaria de avaliar rapidamente “Ilusão” sob esse
prisma.
Em sua obra principal o poeta
se apresenta não propriamente como um crente em Deus, mas como alguém que
deseja crer. Acredita na sobrevivência da alma. Explora poeticamente o tema
cristão do Natal e louva Nossa Senhora em dois poemas, embora não só o
cristianismo mas também alguma coisa da concepção hinduísta do mundo também
esteja aí presente.
Em “A mão...”, ele
afirma que não crê, mas ao mesmo tempo diz que tem sido salvo dos “abismos do mal” por u’a mão “miraculosa” que “Tudo pode
abrandar, os ventos, e a mim mesmo” (mais tarde, na “Oração da manhã”,
datada de 1919, essa mão será identificada como a mão de Deus).
Em “Oh! que ânsia de subir
hoje mesmo a montanha!” III, ele se pergunta quando virá a luz que lhe
indicará um certo caminho, entendido como aquele que o levará a Deus. É um
caminho árduo de subir pois terá de vencer os seus pecados (EP considera-se “homem luxurioso”, “incréu”;
terá de “recurvar” a “espinha dorsal tão dura e inflexível”, de
vencer “as cóleras mais cegas”, o “Enojo”, i.e. o tédio, etc)
O “despontar da luz”, ou do
Sol, é o tema de um de seus melhores poemas, que encerra “Ilusão” (“Sol”).
No sentido religioso, o nascer do sol identifica-se com o despontar da crença,
que o poeta constata em si mesmo. Toda a Natureza exulta com a vinda do Sol (ou
de Deus). Mas o poema mantém a sua ambiguidade, podendo ser lido também como um
poema panteísta, em que o Sol é entendido como ele mesmo, o que não descarta, de qualquer forma, um certo sentido
simbólico... E o poema é mais belo assim.
O poeta, personagem do poema, o
conclui, com estes versos:
—Ah!
que sombria dor e que profunda mágoa
De
não poder ser eu aquela gota d’água,
Que
depois de fulgir, assim como uma estrela, (*)
Derrete-se
na luz, funde-se dentro dela!
---------------
(*)
Cf. a comparação
O poema II de “Oh! que ânsia
de subir hoje mesmo a montanha” é sobre a noite de Natal, em Belém. Um
pastor e os elementos da natureza correm atrás de uma luz crescente do céu, que
deixa “a noite cada vez mais clara”.
A crença na sobrevivência da
alma está implícita em diversos poemas, por exemplo, em “Sombra”, apesar
de seu tratamento pagão (referência ao Orco, ou Hades, terra dos mortos na
mitologia greco-romana).
Em “Vozes”, EP está mais
próximo da tradição hinduísta. Há aqui sugestões de vidas anteriores, ou da
crença na reencarnação (que a Igreja Católica não aceita), quando EP fala em
Vozes
tristes, vozes doces que me chamais,
Com
a saudade cruel e a lembrança completa
De
um outro mundo, que eu perdi, não acho mais.
O elogio ao mito cristão de
Nossa Senhora é feito nos belos poemas “Em seu louvor” e “Graças te
rendo...”, comentados um pouco mais extensamente a seguir.
“Em seu louvor” abrange sete quadras em
louvor da Virgem Maria, que é chamada pelos diversos nomes da tradição
católica, metáforas, em sua maioria (“Lírio do
Cedron”, “Rosa do Carmelo”, “Regina
coelorum”, “Lira de marfim”, “Rosa do Assor”, “Mater Dolorosa”).
O poeta a evoca por esses
nomes, sequencialmente, como numa ladainha. Seu elogio inclui estes versos:
Sombra
que perfumas como o benjoim... (*)
Teu
passo ressoa por sobre o veludo,
Quando
tu caminhas, Lira de marfim.
...........................................................
Campo
é teu olhar elísio de verdura,
Cordeirinhos
brancos andam a pascer...-
...........................................................
Ó
Virgem Maria! Mater Dolorosa!
Minha
alma a teus pés é uma criança a rir...
Que
teus pés me calquem – brancos pés de rosa!
Tão
bem eu me sinto! deixa-me dormir...
---------------
(*)
Cf. a comparação. Benjoim= bálsamo aromático (dic. Aurélio)
Quanto aos versos citados, cabe
ressaltar: 1) a sinestesia na sombra que sensibiliza o olfato e não a visão; 2)
o exagero expressionista do som dos passos dela sobre o veludo; 3) a referência
aos “campos elísios” (região mitológica onde moravam os heróis e justos, após a
morte), associado à “verdura” do seu olhar (que lembra os “olhos verdes”
daquela que personifica a Beleza em “Dama”); 4) a referência aos “cordeirinhos brancos”, que lembram as nuvens
(além de estarem associados a “cordeiro de Deus”). Assim, o poeta estabelece
múltiplas associações para sugerir o caráter celestial, sobrenatural, da
Virgem. Nos últimos versos, há ainda outra imagem sugestiva – os pés dela são “pés de rosa”...
O outro poema, o soneto “Graças
te rendo...”, é dirigido a uma “preciosa Senhora”,
Que,
num simples olhar de ternura, tiveste
O
dom de me elevar, assim como o fizeste,
Entre
os brasões do amor e as púrpuras d’aurora...
A elevação (do espírito) que
tal Senhora provoca é de caráter nobre (indicado pela menção a “brasões” e “púrpuras”;
a cor deste tecido luxuoso também é funcional na referência à “aurora”).
A linguagem do poema lembra a
religiosa (cf. uso das expressões “Graças te
rendo”, “votos” e “Sê /.../ bendita”). “Senhora” lembra a Nossa
Senhora dos católicos; também as sugestões do v.8—“O
linho que fulgura em pleno azul-celeste” (linho= tecido de linho; cf. a
presença da cor nesse soneto: “púrpuras”,
“linho”, “azul-celeste”).
Mas o v. 10 refere-se “aos deuses”,
afastando a hipótese de uma opção religiosa mais definida e fazendo o soneto
permanecer no reino do mito, quer pagão, quer cristão.
O artificialismo da metáfora,
no segundo quarteto desse soneto, do “lodo”
revestindo o coração humano, é compensado pela espontaneidade (e beleza) do
último terceto, que apresenta imagens em movimento, acusando já a influência do
cinema, em seus primórdios:
Que
onde fores pisar, que por onde tu fores:
A
lama se transforme em pétalas de rosa,
As
víboras em fruto, os espinhos em flores!
*
O livro póstumo “Setembro”
inclui muitos poemas religiosos, em que EP afirma, afinal, sua crença em Deus
(“Creio!”), superando hesitações anteriores (“Lá”, “Soneto”,
“Christe, audi nos”), impressionado com o espetáculo das forças da
natureza (“De como vim cair aos pés de Deus”). Apela para que seja
reverenciada a obra do Criador e elogia a oração (“Oração da manhã).
Chama Maria, “sua filha”, para rezar (“Oração da noite”), pede ao
Senhor por alguém que ama (“Por Maria”), louva o Senhor quando sente
aproximar-se a sua hora (“Louvado sejas tu”) e celebra o Natal com o
poema “Vamos”, que é um apelo para que os homens vão para a luz,
i.e. para Deus.
Hesitações sobre sua fé ainda
aparecem em “Lá”, quando se refere a um “sonho
vão” e a uma “esperança/ Vaga de abrir os
olhos outra vez”; em “Soneto” -- que traz a inscrição “No álbum
de D. Anita Philipowski” -- ao assumir que é guiado pelo sentimento, e não pela
razão nessa matéria (ele admite, no segundo quarteto, a possibilidade de que
não passe de fantasia a fé que ele tem; mas sente “que no seio de Deus” adormecerá “feliz”) e em “Christe, audi nos”, nos
comentários paralelos de Satã – como um alter ego – duvidando de sua crença e
referindo-se ao seu orgulho, enquanto o poeta reza ao Senhor. Esse
quase-monólogo é o que caracteriza formalmente o poema, que inclui os seguintes
versos (ditos por Satã) com imagens
impressivas:
—Alma,
dentro de ti mora um triste coveiro,
Mudo
e gelado, como em um tanque a boiar...
(*)
---------------
(*)
Cf. a comparação
Não basta ao poeta apenas
evocar o coveiro, para sugerir a morte na alma. A sugestão é reiterada pela
imagem do próprio coveiro morto, a boiar no tanque...
No soneto “Creio!”,
cujos versos espontâneos transmitem sinceridade, o poeta se rejubila com sua fé
recém-conquistada. Retoma a imagem do passarinho, e do “orgulho de ter asas”, que
já fora explorada em “Sol”:
Eu
creio. Pude crer. Ah! finalmente pude,
Rompendo
das paixões o espesso torvelinho, (1)
Vibrando
de prazer as cordas do alaúde, (2)
Ver
a estrela da fé brilhar em meu caminho!
E
sinto-me tão bem dentro deste alvo linho, (2)
Que
até me refloriu a graça e a saúde;
Ando
quase a voar, sou quase um passarinho,
E
penso que voltou a flor da juventude...
Que
doirada ilusão! Que divina loucura!
Só
me arrebata o olhar a luminosa altura,
Onde
fulgem de amor todos os astros nus... (2)
Beijo
embriagador! Oh! fogo que me abrasas! (2)
Quanto
me faz febril a idéia de ter asas,
E
de poder fugir para a infinita luz!
---------------
(1) Torvelinho= redemoinho
(2) Cf. a(s) metáfora(s)
Nesses poemas religiosos de EP
fica evidente o seu caráter cristão, em especial pelo elogio que faz à
humildade, pois EP a valoriza justamente por constatar em si o orgulho como um
de seus maiores pecados, o que já ocorria em “Ilusão”.
Assim, no “Soneto” que
traz a inscrição “No álbum de D. Annita Philipowski” ele afirma, após
reconhecer que não é o “herói moderno”, descrente, sem fé:
Sei
que é belo exclamar que não existe nada;
Que
a flor das ilusões, como rútila espada, (1)
A
dúvida voraz ceifou pela raiz...
Sei
de tudo; porém, sob o céu que nos cobre,
Sinto,elevando
as mãos,e humilde como um pobre, (2)
Que
no seio de Deus adormeço feliz!
---------------
(1) Cf. a metáfora e a comparação
(2) Cf. a comparação. Note-se a oposição entre “Sei” e
“Sinto”, entre a razão e o coração.
Em “Por Maria” a
condição humilde do poeta perante Deus é sublinhada, neste verso
autodepreciativo: “Eu que não sou senão um pobre
verme obscuro”. Em sua opção pelo
Cristianismo, o poeta se autodeprecia para compensar o orgulho que constata em
si.
No poema, ele pede ao Senhor
por uma pessoa querida, chamada Maria. A
propósito, Andrade Muricy dá o seguinte depoimento em “Suave Convívio”:
E quando, no dia seguinte ao dos funerais, que teve,
um amigo foi visitar-lhe o túmulo, encontrou uma jovem, bela, estrangeira, a
cobrir o túmulo de flores e de pranto dos seus olhos veludosos, talvez aquela
mesma “Maria” por quem o alto poeta tanto orou em seus últimos versos. 2
Na “Oração da manhã”, o
seu cristianismo também é bem evidente:
Todos
somos irmãos, filhos do mesmo ventre.
Filhos
do mesmo amor e da mesma embriaguez.
O poeta crente despreza o
reconhecimento social, refugiando-se na natureza:
Que
te importa o clamor da glória, que se perde
Como
fumo no ar, se apagado entre os teus,(*)
Podes
viver feliz, com a graça de Deus!”
Mais
obscuro, talvez, que aquele ramo verde, (*)
---------------
(*)
Cf. a comparação
Mais adiante, esse poema elogia
a oração assim:
Não
há nada tão bom, de força mais estranha,
Do
que seja, meu filho, a simples oração:
A
oração é capaz de erguer uma montanha, (1)
E
é mais leve que a luz, e mais suave que o pão. (2)
Quando
te punja a dor, quando te vença a mágoa,
Que,
às vezes, sobre nós, como uma flecha cai,
Ajoelha-te
e verás, os olhos rasos d’água,
Meu
filho, como Deus é um verdadeiro pai!
---------------
(1)
Cf. a metáfora
(2)
Cf. as comparações. Note-se a recorrência do “peso” de coisas abstratas –
“oração”, “luz”. A ênfase na leveza da oração sugere a facilidade de sua
elevação aos céus.
O poema conclui expressando o
sentido que o poeta atribui à oração, de integração mística com a natureza,
considerada a esta altura como “obra do Criador”:
Orar
é se fundir no seio do universo,
É
se fundir em Deus, é se fundir em luz!
Observe-se a associação, agora
explícita, entre Deus e a luz, que “Oração da Manhã”, datado de 1919,
contém, o que não ocorria em “Sol”, de “Ilusão”, que pela sua
ambiguidade ainda podia ser lido como um poema panteísta.
Em “Louvado sejas tu”,
um poema em dísticos, cujo ritmo expressa serenidade e conformação, o poeta
louva o Senhor quando sente que vai dormir um sono profundo. Louva esse “grande Semeador (*)
Que
semeias a luz e ao mesmo tempo a dor;”
---------------
(*)
Cf. o trocadilho, uso de um recurso moderno
O poeta anseia por ele em sua
dor, que é elogiada:
Louvado
sejas tu! O sofrimento é luz,
O
sofrimento é amor, santíssimo Jesus!
EP compartilha assim da mesma
opinião de Cruz e Souza, autor do verso famoso-- “Vê
como a Dor te transcendentaliza!” -- sobre o poder espiritualizador da
dor...
“Vamos”, um auto de
Natal, de 1917, dá um novo tratamento ao tema de “Oh! que ânsia de subir
hoje mesmo a montanha!” II, de “Ilusão”. Os pastores de Belém também admiram-se com a
luz de uma estrela na noite em que Jesus nasceu. Mas ocorre agora uma menção
explícita a Deus. Um pastor encerra o poema assim:
Nunca,
desde que existo, achei a natureza,
De
tão rico esplendor e tão rara beleza.
Tudo
vive, e palpita, e murmureja em festa:
A
cascata, o arroio, as fontes, a floresta.
Tudo
em ouro gorjeia, e reverdece, e canta:
O
ninho, a rosa, o verme, o lago, a fera, a planta.
Tudo
freme, e ondeia, e corre e se desliza;
A
água, a vida, o aroma, a cor, o som, a brisa,
Tudo
para o espaço abre o lábio risonho, (*)
E
foge para a luz, e voa para o sonho...
Tudo
vai para Deus, miraculosamente,
Num
enlevo sem fim, num êxtase inocente:
As
árvores em flor, os pássaros, os ramos...
---------------
(*)
Cf. a personificação
O pastor afirma que a natureza
nunca foi tão bela antes, o que equivale a dizer que a natureza fica mais bela
com a crença em Deus. Assim, o poeta agora assume uma postura religiosa, não
panteísta -- pois Deus é considerado de modo independente da natureza --, e
atribui a esta um outro significado.
Desses poemas religiosos, o
mais tocante é a “Oração da noite”. Sobre ela, diz Andrade Muricy,
também crítico musical:
Do geral agrado com que foi recebida essa “oração”,
concebida à maneira hugoana, possivelmente através de Francis Jammes, é
testemunho a Cantata do mesmo nome, sobre o texto de Emiliano Perneta, para
solista, coro feminino a cappella ou coro misto a cappella,
talvez a obra-prima de Brasílio Itiberê II (1945). 3
No poema, o poeta chama Maria,
“sua filha” para rezar: que ela bendiga a luz, a terra, os animais, as árvores,
toda a criação. Pede a ela para rezar por todos, pelos seus, pelos
agricultores,
Na
verde catedral, chamada Natureza,
Única
onde se pode inda falar com Deus.
EP adota aqui a concepção de
Baudelaire, de que “La Nature est um temple
/.../”, o verso inicial do soneto “Correspondances”, já citado. Ele
rejeita outros templos, ou catedrais, pois a Natureza é a única catedral,
não há outras onde se possa “falar com Deus”.
Fica clara aí a sua rejeição a qualquer igreja organizada...
O poema, datado de 1912, é
composto de dez quadras, com versos alexandrinos (adequados ao seu andamento
sereno), e inicia assim:
Já
de sombra se encheu o vale, que murmura,
Já
se envolveu na treva a montanha, e o mar,
Ao
longe, não é mais do que uma nódoa escura...
São
horas de dormir; Maria: vem rezar.
Ajoelha-te
aqui, em face das estrelas,
E
em primeiro lugar, minha filha, bendiz
A
luz, que te criou formosa entre as mais belas,
E
que te fez alegre, e portanto feliz.
Em
seguida, bendize a terra e aqueles pobres
E
mansos animais, e toda a criação:
A
ovelha que te deu a lã, de que te cobres,
O
boi que te ajudou, hoje, a ganhar o pão.
Abençoa
também as árvores, o ramo
Carregado
de fruto, as aléias em flor,
Onde
correste mais ligeira do que um gamo, (1)
A
fronte a rorejar em gotas de suor. (2)
---------------
(1) Cf. a comparação
(2) Rorejar= “Brotar em gotas (qualquer líquido)” (dic.
Aurélio)
Mesmo nesse poema,
caracterizado pela suavidade do ritmo, surgem imagens insólitas, que destoam
pela sua singularidade (o que é recorrente em EP), como na sétima quadra:
Vê
que silêncio tem a noite, e quão secreta
E
misteriosamente, a lua apareceu,
Descabelada,
assim como uma Julieta, (*)
Doida,
a correr, atrás dum pálido Romeu...
---------------
(*)
Cf. a personificação e a comparação; recorrência da menção a personagens
literários, e de “doido(a)”
Nos versos iniciais da última
quadra, também há uma imagem estranha, quando ele aconselha Maria, referindo-se
ao sono, a sugar “como um vampiro esse doirado
vinho”:
Finalmente,
abençoa a carícia do sono
Que
eu já vejo descer sobre os teus olhos nus,
Inda
mais leve do que uma folha d’outono,
Mais
leve do que o som, mais leve do que a luz. (1)
Suga
como um vampiro esse doirado vinho, (2)
Que
nos faz esquecer tudo de uma só vez,
.....................................................................
---------------
(1)
Observe-se a ocorrência de sinestesia novamente, produzida pela materialização
de algo abstrato,
do “sono”, cujo “peso” é comparado com algo concreto (a
“folha d’outono”), e também
com elementos imateriais ( “o som” e “a luz”)
(2) Cf. a comparação e a metáfora
*
Apesar do gosto pela liturgia
católica, EP não é um católico. A despeito de usar extensamente a mitologia
clássica, EP não é pagão. É sim crente em Deus, e cristão. Seu humanismo está
profundamente marcado pela concepção cristã do mundo, sintetizada na fórmula do
amor ao próximo, que encontra sua expressão acabada no poema “Para que todos
os que eu amo sejam felizes”, de “Ilusão”, composto em quadras, com versos
alexandrinos (esse foi o poema que EP recitou quando da sua coroação, em 1911,
como “príncipe dos poetas paranaenses”, em cerimônia realizada em Curitiba, no
Passeio Público). Ele, nesse poema, não pede nada aos “deuses” para si, e sim
para quem ele ama; que eles sejam felizes; que o mal caia sobre ele, e não
sobre os outros; que eles vivam em meio à beleza e ao sonho.
EP, a essa altura da vida,
revela-se conformado, submetendo-se resignadamente ao seu destino, ou ao
Mistério:
Tudo
que vier é bom: é porque eu merecia.
Na terceira estrofe, numa
atitude tipicamente cristã (amor ao próximo, inclusive aos inimigos), ele chega
a bendizer os bárbaros:
Bendita
seja, pois, a mão que me assassina,
Bendito
o que me fere e o que me apunhala,
E
encheu-me de pavor os caminhos de opala, (1)
E
fez cair os meus castelos em ruína... (2)
---------------
(1) Cf. a metáfora
(2) Cf. a metáfora do castelo, que representa o
refúgio do poeta, a torre de marfim
Ao longo do poema, EP expressa
votos de felicidade para aqueles que ele ama. “Felicidade” é identificada nos
versos com a juventude, a beleza, a ausência ou a ignorância do mal, o amor, o
sonho, as viagens, a bondade, a ausência de orgulho e vaidade (pecados que ele
constata em si mesmo).
Apesar do caráter cristão do poema, seu apelo é dirigido aos “deuses”,
como os da mitologia greco-latina. O poeta, embora infeliz (para EP, o artista
não é feliz, como se viu), quer ao menos ver felizes aqueles que ama:
Que não sendo feliz, ao menos possa vê-los
Felizes, a gozar o
prazer que não pude:
O aroma dessa
flor-de-lis da juventude, (1)
A alegria de ser sempre
moços e belos.
Ele quer que eles não compreendam
Que há serpentes cruéis e babas de serpente, (1)
E monstros, e réptis, e charcos, e venenos; (2)
Mas simplesmente, olhai, mulheres como Vênus, (3)
Belezas ideais, beijos unicamente!.
Que sobre eles, assim como uma auréola
em brasas (3)
Possa resplandecer o sonho de tal modo
Que nem toquem sequer com os pés sobre o lodo; (1)
Por isso que sonhar é o mesmo que ter asas...
E que bem como faz à tarde uma andorinha, (3)
De um para outro país, em vindo a primavera,
Emigrem: que isso foi minha melhor quimera,
E eram essas também as ambições que eu tinha.
E transpondo esse mar, que brame e ruge
e espelha (4)
Julguem sempre, a sorrir, que tudo é um sonho vago,
E que esse mar não é senão um doce lago,
De ondulações azuis e bom como uma ovelha. (3)
....................................................................
E possam sempre ouvir o amor, quando segreda, (5)
.............................................................................
Essas canções em flor, lânguidas açucenas, (1)
..................................................................
E não vejam senão a doçura da vida,
E
não ouçam senão o fresco idílio eterno: (6)
Primavera,
verão, outono, e o próprio inverno,
Como
quem vive ao pé de uma mulher querida. (3)
E sabendo que são puramente bondade,
Alegria
e canção, e luz, e alvoroço, (7)
Não
queiram ser jamais esse monstro e esse poço
Que
sou, e sempre fui, de orgulho e vaidade. (1)
...............................................................................
--------------
(1)
Cf. a(s)
metáfora(s)
(2)
Cf. as
metáforas do Mal e o polissíndeto
(3) Cf.
a comparação
(4) Cf.
o animismo
(5) Cf.
a personificação
(6) Idílio= “Pequena composição poética de caráter
campestre ou pastoril” (dic. Aurélio)
(7)
Cf. as
metáforas e o polissíndeto
Nestor
Vítor inclui “Para que todos que eu amo sejam felizes” dentre os poemas
de “Ilusão” que destaca, em seu ensaio de 1911, referindo-se às suas “lindas quadras, /.../ tão comoventes”.4 E Wilson Martins
considera esse poema “um dos mais belos de nossa
literatura”.5 Ambos
os críticos têm razão. Trata-se realmente de um belo poema.
Para
concluir, devo afirmar que EP também valoriza o amor ao próximo pela crítica
ao
seu oposto. Assim, em “Esperança” ele
mostra toda a sua repulsa ao Ódio nesta comparação sua com um verme,
quando está odiando: “Quando aos pés me não
calca o Ódio,
como um verme”
Notas
ao capítulo 3.5
1
“Obras Completas
de Emiliano Perneta”- 1º v.- “Prosa”- Curitiba, Gerpa, 1945, p. 185
2 MURICY, Andrade – “Suave Convívio”. Ensaios
críticos. Rio de Janeiro, Ed. Anuário do Brasil, 1922- p. 204. Apud Santos,
José Nicolau – “Emiliano Perneta”, Curitiba, Editora da Universidade Federal do
Paraná, 1982, pp.221-222
3 MURICY, Andrade—“Emiliano Perneta”. Col.
Nossos Clássicos nº 43- 2a. ed.- Rio de Janeiro, Agir, 1966, p. 65-
nota
4 VÍTOR, Nestor- “Obra Crítica”, v.I, Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1969, p. 436
5 MARTINS,
Wilson- “História da Inteligência Brasileira”, v.V (1897-1914), 2a.
ed., São Paulo, T.A.Queiroz, 1996, p.471
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