quarta-feira, 12 de dezembro de 2012



  
3.5- Crença em Deus & humanismo cristão



Como foi dito no capítulo anterior, EP é acometido, intermitentemente, pelo tédio. Nesse estado psicológico, acentua-se a sua inquietude diante da vida, o seu desejo de viajar, “seja para onde for”. Sente-se, na verdade, um exilado neste mundo, e aspira pela “pátria verdadeira”, a do espírito. Tal característica ele tem em comum com o homem religioso, embora EP não tenha optado por nenhuma religião em particular. Pelo apego a certos aspectos externos da liturgia católica, inclusive a linguagem desta, e pela afeição à Virgem Maria, sua opção natural seria a do catolicismo. Todavia, ele não a faz, tendo mesmo incluído um poema anticlerical em “Ilusão” (“Punição do herege”), e estes versos em “Azar”: “Ouvem os Arlequins missa, todos de tochas,/ E estão vestidos de sobrepelizes roxas.” Tornou-se, entretanto,  cada vez mais, um poeta cristão, como mostram os poemas religiosos do livro póstumo “Setembro”, embora “Ilusão” já o prenuncie como tal, em alguns poemas, comentados abaixo. 

EP é sensível a certos aspectos exteriores, ritualísticos, da religião católica, como aliás outros poetas (românticos e simbolistas) antes dele.

Em sua “Prosa”, há um texto em que ele relata uma visita que fez, após o jantar, a uma igrejinha do interior, durante um “terço”, e nota-se aí todo o seu encantamento pela cerimônia que se realizava. Nesse texto, descreve o altar, e afirma que depois do celebrante e dos três acólitos rezarem baixinho em latim, “cantaram à Virgem Mãe de Deus versos de uma doçura, de uma simplicidade e singeleza, como não há nem haverá jamais em outra poesia que não seja a poesia anônima do povo.1

Todas aquelas pessoas (como eu próprio) que foram formadas na  religião católica -- ainda que na vida adulta a abandonem – sentem o mesmo, em ocasiões semelhantes. São emocionalmente afetadas por tais eventos, que estão associados à sua própria experiência de vida, à doce memória da infância, quando iam à igreja acompanhados da mãe... É algo que sensibiliza o coração, ainda que a razão não o compreenda...

                                                          *

Antes de abordar os poemas religiosos de “Setembro”, gostaria de avaliar rapidamente “Ilusão” sob esse prisma.

Em sua obra principal o poeta se apresenta não propriamente como um crente em Deus, mas como alguém que deseja crer. Acredita na sobrevivência da alma. Explora poeticamente o tema cristão do Natal e louva Nossa Senhora em dois poemas, embora não só o cristianismo mas também alguma coisa da concepção hinduísta do mundo também esteja aí presente.

Em “A mão...”, ele afirma que não crê, mas ao mesmo tempo diz que tem sido salvo dos “abismos do mal” por u’a mão “miraculosa” que   “Tudo pode abrandar, os ventos, e a mim mesmo” (mais tarde, na “Oração da manhã”, datada de 1919, essa mão será identificada como a mão de Deus).

Em “Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!” III, ele se pergunta quando virá a luz que lhe indicará um certo caminho, entendido como aquele que o levará a Deus. É um caminho árduo de subir pois terá de vencer os seus pecados (EP considera-se “homem luxurioso”, “incréu”; terá de “recurvar” a “espinha dorsal tão dura e inflexível”, de vencer “as cóleras mais cegas”, o “Enojo”, i.e. o tédio, etc)

O “despontar da luz”, ou do Sol, é o tema de um de seus melhores poemas, que encerra “Ilusão” (“Sol”). No sentido religioso, o nascer do sol identifica-se com o despontar da crença, que o poeta constata em si mesmo. Toda a Natureza exulta com a vinda do Sol (ou de Deus). Mas o poema mantém a sua ambiguidade, podendo ser lido também como um poema panteísta, em que o Sol é entendido como ele mesmo, o que não descarta,  de qualquer forma, um certo sentido simbólico... E o poema é mais belo assim.

O poeta, personagem do poema, o conclui, com estes versos:


—Ah! que sombria dor e que profunda mágoa
De não poder ser eu aquela gota d’água,
Que depois de fulgir, assim como uma estrela, (*)
Derrete-se na luz, funde-se dentro dela!
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(*) Cf. a comparação

O poema II de “Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha” é sobre a noite de Natal, em Belém. Um pastor e os elementos da natureza correm atrás de uma luz crescente do céu, que deixa “a noite cada vez mais clara”.

A crença na sobrevivência da alma está implícita em diversos poemas, por exemplo, em “Sombra”, apesar de seu tratamento pagão (referência ao Orco, ou Hades, terra dos mortos na mitologia greco-romana).

Em “Vozes”, EP está mais próximo da tradição hinduísta. Há aqui sugestões de vidas anteriores, ou da crença na reencarnação (que a Igreja Católica não aceita), quando EP fala em

Vozes tristes, vozes doces que me chamais,
Com a saudade cruel e a lembrança completa
De um outro mundo, que eu perdi, não acho mais.

O elogio ao mito cristão de Nossa Senhora é feito nos belos poemas “Em seu louvor” e “Graças te rendo...”, comentados um pouco mais extensamente a seguir.

 “Em seu louvor” abrange sete quadras em louvor da Virgem Maria, que é chamada pelos diversos nomes da tradição católica, metáforas, em sua maioria (“Lírio do Cedron”, “Rosa do Carmelo”, “Regina coelorum”, “Lira de marfim”, “Rosa do Assor”, “Mater Dolorosa”).

O poeta a evoca por esses nomes, sequencialmente, como numa ladainha. Seu elogio inclui estes versos:

Sombra que perfumas como o benjoim... (*)
Teu passo ressoa por sobre o veludo,
Quando tu caminhas, Lira de marfim.
...........................................................
Campo é teu olhar elísio de verdura,
Cordeirinhos brancos andam a pascer...-
...........................................................
Ó Virgem Maria! Mater Dolorosa!
Minha alma a teus pés é uma criança a rir...
Que teus pés me calquem – brancos pés de rosa!
Tão bem eu me sinto! deixa-me dormir...
--------------- 
(*) Cf. a comparação. Benjoim= bálsamo aromático (dic. Aurélio)

Quanto aos versos citados, cabe ressaltar: 1) a sinestesia na sombra que sensibiliza o olfato e não a visão; 2) o exagero expressionista do som dos passos dela sobre o veludo; 3) a referência aos “campos elísios” (região mitológica onde moravam os heróis e justos, após a morte), associado à “verdura” do seu olhar (que lembra os “olhos verdes” daquela que personifica a Beleza em “Dama”); 4) a referência aos “cordeirinhos brancos”, que lembram as nuvens (além de estarem associados a “cordeiro de Deus”). Assim, o poeta estabelece múltiplas associações para sugerir o caráter celestial, sobrenatural, da Virgem. Nos últimos versos, há ainda outra imagem sugestiva – os pés dela são “pés de rosa”...

O outro poema, o soneto “Graças te rendo...”, é dirigido a uma “preciosa Senhora”,

Que, num simples olhar de ternura, tiveste
O dom de me elevar, assim como o fizeste,
Entre os brasões do amor e as púrpuras d’aurora...

A elevação (do espírito) que tal Senhora provoca é de caráter nobre (indicado pela menção a “brasões” e “púrpuras”; a cor deste tecido luxuoso também é funcional na referência à “aurora”).

A linguagem do poema lembra a religiosa (cf. uso das expressões “Graças te rendo”, “votos” e “Sê /.../ bendita”). “Senhora” lembra a Nossa Senhora dos católicos; também as sugestões do v.8—“O linho que fulgura em pleno azul-celeste” (linho= tecido de linho; cf. a presença da cor nesse soneto: “púrpuras”, “linho”, “azul-celeste”). Mas o v. 10 refere-se “aos deuses”, afastando a hipótese de uma opção religiosa mais definida e fazendo o soneto permanecer no reino do mito, quer pagão, quer cristão.     

O artificialismo da metáfora, no segundo quarteto desse soneto, do “lodo” revestindo o coração humano, é compensado pela espontaneidade (e beleza) do último terceto, que apresenta imagens em movimento, acusando já a influência do cinema, em seus primórdios:

Que onde fores pisar, que por onde tu fores:
A lama se transforme em pétalas de rosa,
As víboras em fruto, os espinhos em flores!

                                                                         *
                                                          
O livro póstumo “Setembro” inclui muitos poemas religiosos, em que EP afirma, afinal, sua crença em Deus (“Creio!”), superando hesitações anteriores (“”, “Soneto”, “Christe, audi nos”), impressionado com o espetáculo das forças da natureza (“De como vim cair aos pés de Deus”). Apela para que seja reverenciada a obra do Criador e elogia a oração (“Oração da manhã). Chama Maria, “sua filha”, para rezar (“Oração da noite”), pede ao Senhor por alguém que ama (“Por Maria”), louva o Senhor quando sente aproximar-se a sua hora (“Louvado sejas tu”) e celebra o Natal com o poema “Vamos”, que é um apelo para que os homens vão para a luz, i.e. para Deus.

Hesitações sobre sua fé ainda aparecem em “”, quando se refere a um “sonho vão” e a uma “esperança/ Vaga de abrir os olhos outra vez”; em “Soneto” -- que traz a inscrição “No álbum de D. Anita Philipowski” -- ao assumir que é guiado pelo sentimento, e não pela razão nessa matéria (ele admite, no segundo quarteto, a possibilidade de que não passe de fantasia a fé que ele tem; mas senteque no seio de Deus” adormecerá “feliz”) e em “Christe, audi nos”, nos comentários paralelos de Satã – como um alter ego – duvidando de sua crença e referindo-se ao seu orgulho, enquanto o poeta reza ao Senhor. Esse quase-monólogo é o que caracteriza formalmente o poema, que inclui os seguintes versos (ditos por Satã) com  imagens impressivas:

—Alma, dentro de ti mora um triste coveiro,
Mudo e gelado, como em um tanque a boiar...  (*)
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(*) Cf. a comparação

Não basta ao poeta apenas evocar o coveiro, para sugerir a morte na alma. A sugestão é reiterada pela imagem do próprio coveiro morto, a boiar no tanque... 

No soneto “Creio!”, cujos versos espontâneos transmitem sinceridade, o poeta se rejubila com sua fé recém-conquistada. Retoma a imagem do passarinho, e do “orgulho de ter asas”,  que já fora explorada em “Sol”:


Eu creio. Pude crer. Ah! finalmente pude,
Rompendo das paixões o espesso torvelinho, (1)
Vibrando de prazer as cordas do alaúde, (2)
Ver a estrela da fé brilhar em meu caminho!

E sinto-me tão bem dentro deste alvo linho, (2)
Que até me refloriu a graça e a saúde;
Ando quase a voar, sou quase um passarinho,
E penso que voltou a flor da juventude...

Que doirada ilusão! Que divina loucura!
Só me arrebata o olhar a luminosa altura,
Onde fulgem de amor todos os astros nus... (2)

Beijo embriagador! Oh! fogo que me abrasas! (2)
Quanto me faz febril a idéia de ter asas,
E de poder fugir para a infinita luz!
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(1)     Torvelinho= redemoinho
(2)     Cf. a(s) metáfora(s)


Nesses poemas religiosos de EP fica evidente o seu caráter cristão, em especial pelo elogio que faz à humildade, pois EP a valoriza justamente por constatar em si o orgulho como um de seus maiores pecados, o que já ocorria em “Ilusão”. 

Assim, no “Soneto” que traz a inscrição “No álbum de D. Annita Philipowski” ele afirma, após reconhecer que não é o “herói moderno”, descrente, sem fé:

Sei que é belo exclamar que não existe nada;
Que a flor das ilusões, como rútila espada, (1)
A dúvida voraz ceifou pela raiz...

Sei de tudo; porém, sob o céu que nos cobre,
Sinto,elevando as mãos,e humilde como um pobre, (2)
Que no seio de Deus adormeço feliz!
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(1)     Cf. a metáfora e a comparação
(2)     Cf. a comparação. Note-se a oposição entre “Sei” e “Sinto”, entre a razão e o coração. 


Em “Por Maria” a condição humilde do poeta perante Deus é sublinhada, neste verso autodepreciativo: “Eu que não sou senão um pobre verme obscuro”.  Em sua opção pelo Cristianismo, o poeta se autodeprecia para compensar o orgulho que constata em si.

No poema, ele pede ao Senhor por uma pessoa querida, chamada Maria.  A propósito, Andrade Muricy dá o seguinte depoimento em “Suave Convívio”:

E quando, no dia seguinte ao dos funerais, que teve, um amigo foi visitar-lhe o túmulo, encontrou uma jovem, bela, estrangeira, a cobrir o túmulo de flores e de pranto dos seus olhos veludosos, talvez aquela mesma “Maria” por quem o alto poeta tanto orou em seus últimos versos. 2

Na “Oração da manhã”, o seu cristianismo também é bem evidente:

Todos somos irmãos, filhos do mesmo ventre.
Filhos do mesmo amor e da mesma embriaguez.

O poeta crente despreza o reconhecimento social, refugiando-se na natureza:

Que te importa o clamor da glória, que se perde
Como fumo no ar, se apagado entre os teus,(*)
Podes viver feliz, com a graça de Deus!” 
Mais obscuro, talvez, que aquele ramo verde, (*)
---------------
(*) Cf. a comparação

Mais adiante, esse poema elogia a oração assim:

Não há nada tão bom, de força mais estranha,
Do que seja, meu filho, a simples oração:
A oração é capaz de erguer uma montanha, (1)
E é mais leve que a luz, e mais suave que o pão. (2)

Quando te punja a dor, quando te vença a mágoa,
Que, às vezes, sobre nós, como uma flecha cai,
Ajoelha-te e verás, os olhos rasos d’água,
Meu filho, como Deus é um verdadeiro pai!  
---------------
(1) Cf. a metáfora
(2) Cf. as comparações. Note-se a recorrência do “peso” de coisas abstratas – “oração”, “luz”. A ênfase na leveza da oração sugere a facilidade de sua elevação aos céus.  

O poema conclui expressando o sentido que o poeta atribui à oração, de integração mística com a natureza, considerada a esta altura como “obra do Criador”:

Orar é se fundir no seio do universo,
É se fundir em Deus, é se fundir em luz!

Observe-se a associação, agora explícita, entre Deus e a luz, que “Oração da Manhã”, datado de 1919, contém, o que não ocorria em “Sol”, de “Ilusão”, que pela sua ambiguidade ainda podia ser lido como um poema panteísta. 

Em “Louvado sejas tu”, um poema em dísticos, cujo ritmo expressa serenidade e conformação, o poeta louva o Senhor quando sente que vai dormir um sono profundo. Louva esse “grande Semeador (*)

Que semeias a luz e ao mesmo tempo a dor;”
---------------
(*) Cf. o trocadilho, uso de um recurso moderno

O poeta anseia por ele em sua dor, que é elogiada:

Louvado sejas tu! O sofrimento é luz,
O sofrimento é amor, santíssimo Jesus!

EP compartilha assim da mesma opinião de Cruz e Souza, autor do verso famoso-- “Vê como a Dor te transcendentaliza!” -- sobre o poder espiritualizador da dor...    

Vamos”, um auto de Natal, de 1917, dá um novo tratamento ao tema de “Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!II, de “Ilusão”.  Os pastores de Belém também admiram-se com a luz de uma estrela na noite em que Jesus nasceu. Mas ocorre agora uma menção explícita a Deus. Um pastor encerra o poema assim:

Nunca, desde que existo, achei a natureza,
De tão rico esplendor e tão rara beleza.
Tudo vive, e palpita, e murmureja em festa:
A cascata, o arroio, as fontes, a floresta.
Tudo em ouro gorjeia, e reverdece, e canta:
O ninho, a rosa, o verme, o lago, a fera, a planta.
Tudo freme, e ondeia, e corre e se desliza;
A água, a vida, o aroma, a cor, o som, a brisa,
Tudo para o espaço abre o lábio risonho, (*)
E foge para a luz, e voa para o sonho...
Tudo vai para Deus, miraculosamente,
Num enlevo sem fim, num êxtase inocente:
As árvores em flor, os pássaros, os ramos...
---------------
(*) Cf. a personificação


O pastor afirma que a natureza nunca foi tão bela antes, o que equivale a dizer que a natureza fica mais bela com a crença em Deus. Assim, o poeta agora assume uma postura religiosa, não panteísta -- pois Deus é considerado de modo independente da natureza --, e atribui a esta um outro significado.

Desses poemas religiosos, o mais tocante é a “Oração da noite”. Sobre ela, diz Andrade Muricy, também crítico musical:

Do geral agrado com que foi recebida essa “oração”, concebida à maneira hugoana, possivelmente através de Francis Jammes, é testemunho a Cantata do mesmo nome, sobre o texto de Emiliano Perneta, para solista, coro feminino a cappella ou coro misto a cappella, talvez a obra-prima de Brasílio Itiberê II (1945). 3

No poema, o poeta chama Maria, “sua filha” para rezar: que ela bendiga a luz, a terra, os animais, as árvores, toda a criação. Pede a ela para rezar por todos, pelos seus, pelos agricultores,

Na verde catedral, chamada Natureza,
Única onde se pode inda falar com Deus.

EP adota aqui a concepção de Baudelaire, de que “La Nature est um temple /.../”, o verso inicial do soneto “Correspondances”, já citado. Ele rejeita outros templos, ou catedrais, pois a Natureza é a única catedral, não há outras onde se possa “falar com Deus”. Fica clara aí a sua rejeição a qualquer igreja organizada...

O poema, datado de 1912, é composto de dez quadras, com versos alexandrinos (adequados ao seu andamento sereno), e inicia assim:



Já de sombra se encheu o vale, que murmura,
Já se envolveu na treva a montanha, e o mar,
Ao longe, não é mais do que uma nódoa escura...
São horas de dormir; Maria: vem rezar.

Ajoelha-te aqui, em face das estrelas,
E em primeiro lugar, minha filha, bendiz
A luz, que te criou formosa entre as mais belas,
E que te fez alegre, e portanto feliz.

Em seguida, bendize a terra e aqueles pobres
E mansos animais, e toda a criação:
A ovelha que te deu a lã, de que te cobres,
O boi que te ajudou, hoje, a ganhar o pão.


Abençoa também as árvores, o ramo
Carregado de fruto, as aléias em flor,
Onde correste mais ligeira do que um gamo, (1)
A fronte a rorejar em gotas de suor. (2)
---------------
(1)     Cf. a comparação
(2)     Rorejar= “Brotar em gotas (qualquer líquido)” (dic. Aurélio)

Mesmo nesse poema, caracterizado pela suavidade do ritmo, surgem imagens insólitas, que destoam pela sua singularidade (o que é recorrente em EP), como na sétima quadra:

Vê que silêncio tem a noite, e quão secreta
E misteriosamente, a lua apareceu,
Descabelada, assim como uma Julieta, (*)
Doida, a correr, atrás dum pálido Romeu...
---------------
(*) Cf. a personificação e a comparação; recorrência da menção a personagens literários, e de “doido(a)”

Nos versos iniciais da última quadra, também há uma imagem estranha, quando ele aconselha Maria, referindo-se ao sono, a sugar “como um vampiro esse doirado vinho”:

Finalmente, abençoa a carícia do sono
Que eu já vejo descer sobre os teus olhos nus,
Inda mais leve do que uma folha d’outono,
Mais leve do que o som, mais leve do que a luz. (1)

Suga como um vampiro esse doirado vinho, (2)
Que nos faz esquecer tudo de uma só vez, 
.....................................................................   
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(1) Observe-se a ocorrência de sinestesia novamente, produzida pela materialização de algo abstrato, 
do “sono”, cujo “peso” é comparado com algo concreto (a “folha d’outono”), e   também com elementos imateriais ( “o som” e “a luz”) 
(2)  Cf. a comparação e a metáfora

                                   *

Apesar do gosto pela liturgia católica, EP não é um católico. A despeito de usar extensamente a mitologia clássica, EP não é pagão. É sim crente em Deus, e cristão. Seu humanismo está profundamente marcado pela concepção cristã do mundo, sintetizada na fórmula do amor ao próximo, que encontra sua expressão acabada no poema “Para que todos os que eu amo sejam felizes”, de “Ilusão”, composto em quadras, com versos alexandrinos (esse foi o poema que EP recitou quando da sua coroação, em 1911, como “príncipe dos poetas paranaenses”, em cerimônia realizada em Curitiba, no Passeio Público). Ele, nesse poema, não pede nada aos “deuses” para si, e sim para quem ele ama; que eles sejam felizes; que o mal caia sobre ele, e não sobre os outros; que eles vivam em meio à beleza e ao sonho.

EP, a essa altura da vida, revela-se conformado, submetendo-se resignadamente ao seu destino, ou ao Mistério:

Tudo que vier é bom: é porque eu merecia.

Na terceira estrofe, numa atitude tipicamente cristã (amor ao próximo, inclusive aos inimigos), ele chega a bendizer os bárbaros:

Bendita seja, pois, a mão que me assassina,
Bendito o que me fere e o que me apunhala,
E encheu-me de pavor os caminhos de opala, (1)
E fez cair os meus castelos em ruína...  (2)
---------------
(1)     Cf. a metáfora
(2)  Cf. a metáfora do castelo, que representa o refúgio do poeta, a torre de marfim

Ao longo do poema, EP expressa votos de felicidade para aqueles que ele ama. “Felicidade” é identificada nos versos com a juventude, a beleza, a ausência ou a ignorância do mal, o amor, o sonho, as viagens, a bondade, a ausência de orgulho e vaidade (pecados que ele constata em si mesmo).

            Apesar do caráter cristão do poema, seu apelo é dirigido aos “deuses”, como os da mitologia greco-latina. O poeta, embora infeliz (para EP, o artista não é feliz, como se viu), quer ao menos ver felizes aqueles que ama:

            Que não sendo feliz, ao menos possa vê-los
            Felizes, a gozar o prazer que não pude:
            O aroma dessa flor-de-lis da juventude, (1)
            A alegria de ser sempre moços e belos.
                       
Ele quer que eles não compreendam

Que há serpentes cruéis e babas de serpente, (1)
E monstros, e réptis, e charcos, e venenos; (2)
Mas simplesmente, olhai, mulheres como Vênus, (3)
Belezas ideais, beijos unicamente!.

Que sobre eles, assim como uma auréola
em brasas (3)
Possa resplandecer o sonho de tal modo
Que nem toquem sequer com os pés sobre o lodo; (1)
Por isso que sonhar é o mesmo que ter asas...

E que bem como faz à tarde uma andorinha, (3)
De um para outro país, em vindo a primavera,
Emigrem: que isso foi minha melhor quimera,
E eram essas também as ambições que eu tinha.

E transpondo esse mar, que brame e ruge
e espelha (4)
Julguem sempre, a sorrir, que tudo é um sonho vago,
E que esse mar não é senão um doce lago,
De ondulações azuis e bom como uma ovelha. (3)
....................................................................

E possam sempre ouvir o amor, quando segreda, (5)
............................................................................. 
                Essas canções em flor, lânguidas açucenas, (1)
            ..................................................................
            E não vejam senão a doçura da vida,
            E não ouçam senão o fresco idílio eterno: (6)
            Primavera, verão, outono, e o próprio inverno,
            Como quem vive ao pé de uma mulher querida. (3)

E sabendo que são puramente bondade,
            Alegria e canção, e luz, e alvoroço, (7)
            Não queiram ser jamais esse monstro e esse poço
            Que sou, e sempre fui, de orgulho e vaidade. (1)
            ...............................................................................
            --------------
(1)     Cf. a(s) metáfora(s)
(2)     Cf. as metáforas do Mal e o polissíndeto
(3)     Cf. a comparação
(4)     Cf. o animismo
(5)     Cf. a personificação
(6)     Idílio= “Pequena composição poética de caráter campestre ou pastoril” (dic. Aurélio)
(7)     Cf. as metáforas e o polissíndeto

            Nestor Vítor inclui “Para que todos que eu amo sejam felizes” dentre os poemas de “Ilusão” que destaca, em seu ensaio de 1911, referindo-se às suas “lindas quadras, /.../ tão comoventes”.4 E Wilson Martins considera esse poema “um dos mais belos de nossa literatura”.5 Ambos os críticos têm razão. Trata-se realmente de um belo poema.

            Para concluir, devo afirmar que EP também valoriza o amor ao próximo pela crítica
 ao seu oposto. Assim, em “Esperança”  ele  mostra toda a sua repulsa ao Ódio nesta comparação sua com um verme, quando está odiando: “Quando aos pés me não calca o Ódio, 
como um verme
 



Notas ao capítulo 3.5


1         “Obras Completas de Emiliano Perneta”- 1º v.- “Prosa”- Curitiba, Gerpa, 1945, p. 185

2  MURICY, Andrade – “Suave Convívio”. Ensaios críticos. Rio de Janeiro, Ed. Anuário do Brasil, 1922- p. 204. Apud Santos, José Nicolau – “Emiliano Perneta”, Curitiba, Editora da Universidade Federal do Paraná, 1982, pp.221-222

3  MURICY, Andrade—“Emiliano Perneta”. Col. Nossos Clássicos nº 43- 2a. ed.- Rio de Janeiro, Agir, 1966, p. 65- nota

4  VÍTOR, Nestor- “Obra Crítica”, v.I, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1969, p. 436

5  MARTINS,  Wilson- “História da Inteligência Brasileira”, v.V (1897-1914), 2a. ed., São Paulo, T.A.Queiroz, 1996, p.471

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