quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


 3.4.4- A mulher


O tema do amor sensual ocupa um espaço muito importante na obra poética de EP. Nas palavras de J.G.Merquior, “Perneta é antes de tudo um bom lírico erótico”.18 Já bem antes dele, em 1911, Nestor Vítor dissera a esse respeito:

Ora, o que representa na maioria de suas páginas a “Ilusão” é um diário de amor. Nesse ponto elas nos são bem patrícias, são bem meridionais, bem do trópico mesmo, indo da  ternura desinteressada até a extrema lascívia pelas mulheres.

E prossegue o crítico paranaense afirmando que, nessas páginas, EP nada tem “daquela atitude quase impassível de esteta exclusivo que ostenta nas suas estrofes inigualáveis” Charles Baudelaire.19

Além dos poemas com esse tema, apresentados abaixo, recebem um tratamento erótico determinadas situações em poemas sobre outros assuntos, mencionados ao longo deste trabalho, como, por exemplo, aquele belo verso, destacado por Merquior, de “Baucis e Filemon” – “Tarde de olhos azuis e de seios morenos”, ou a fala da floresta dirigindo-se ao sol:

— Ó delírio brutal! Quando me mordes tu  
A carne toda em flor, o seio todo nu,
Com teus beijos de fogo, eu como a flor do nardo
Rescendo de prazer, e de luxúrias ardo... (“Sol”)

                                              *

A mulher representa, para o poeta, a esperança (cf. título do soneto cujos tercetos são transcritos abaixo) dele superar o tédio:

Tudo, tudo me causa horror. A vida, enfim,
Como um castelo desabou neste momento... (1)
Mas, ah! que uma mulher passa a roçar por mim...

E eu esquecido já do mal que ela me fez,
Vendo-A sorrir, assim, mais leve do que o vento (2)
Atrás dela saí correndo, inda uma vez!...  (“Esperança”)
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(1) Cf. a comparação
(2) Cf. a comparação (recorrente) entre o “peso” de algo (no caso, do sorriso) e o do vento, ambos metaforicamente materializados, para produzir sinestesia

No soneto “Embarque para Citera”, o amor também subordina o desejo de viajar, de evasão ou de morte (o poeta menciona a viagem pelo mar nos versos precedentes aos citados abaixo). Citera, referida nos versos de Baudelaire, é uma ilha do arquipélago a noroeste da ilha de Creta que, na Grécia antiga, era consagrada a Vênus. Após nascer das ondas do mar, essa deusa tocou em terra firme, pela primeira vez, nessa ilha 20:

Quando o encanto, porém,  sorri, quando me vejo,
Ora num coração, ora noutro, que esteve
A palpitar por mim de orgulho e de desejo;

Ah! quando vibro assim! É melhor, na verdade,
Que se andasse no mar, numa trirreme leve,
De prazer em prazer, de cidade em cidade...  

Além de “Embarque para Citera”, outros poemas também fazem o elogio do amor, ou da amada:

 “Versos doirados”, por exemplo. Os versos são “doirados” porque expressam a alegria, a glorificação da relação amorosa na juventude, quando se está

Envolto no ouro de um silêncio de veludo, (1)
Coroado,como um deus,dos pâmpanos de enganos,(2)
E das rosas em flor dos vinte e poucos anos,”
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(1) Cf. a sinestesia
(2) Cf. a comparação. Pâmpanos = ramos tenros de videira (dic. Aurélio).

            Também o elogio ao amor feito pelo poeta Aminto no banquete de núpcias de “Pena de Talião” inicia referindo-se à juventude:

            Céfalo e Prócris, ergo a minha taça,
            Para beber, amigos, à saúde,
            À glória, à força, à primavera, à graça,
            À frescura, à beleza e à juventude...
            ..................................................................
            Depois, o poeta aconselha aos nubentes:

            Fundi-vos, pois, no amor. É o que nos resta
            Ainda de bom, por estes belos dias;
            Quem ama, vive numa  eterna festa,
            Porque a beleza é a flor das alegrias. (1)

            Nos róseos lábios da mulher, que se ama,
            No seu contacto de veludo e arminho, (2)
            Há mais embriaguez e há maior chama
            Do que em todos os cíatos de vinho... (3)
            .......................................................................

            Fazei do amor uma canção querida, (4)
            É isso o que de mais puro vos desejo;
            E que possais dizer, no fim da vida,
            Que a vida foi um luminoso beijo; (4)

            Que os vossos dias foram como as rosas, (3)
            E as vossas noites, lânguidas e belas,
            Noites de prata, noites radiosas,
            Inúmeras e finas, como estrelas!... (3) (Ato I, Cena III)
            ---------------
(1)     Cf. a metáfora, e também a recorrência da identificação da beleza com a alegria
(2) Cf. a sinestesia. Arminho= pele “macia e alvíssima    no inverno” de um mamífero das regiões polares (dic. Aurélio)
(3) Cf. a comparação. Cíato= “Vaso com asa, com o    qual se tirava o vinho da cratera para despejá-lo nos copos dos convivas” (dic. Aurélio)
(4)     Cf. a metáfora

            Nas estrofes omitidas, o poeta aconselha os noivos a envolverem seu amor com a natureza, que seus beijos tenham a beleza, o gosto, o cheiro etc  “Dos campos, e das frutas, e das flores...”  A natureza assim fornece a referência estética para EP, pois ela, i.e. o mundo material -- conforme as idéias expostas na introdução ao capítulo 3.2 -- está em correspondência com o mundo espiritual, fonte de beleza e de outros valores do espírito superior, na concepção do poeta.

            Em “Posto que já...” há um elogio à beleza da amada que envelhece:

            Posto que já esse frescor, e esse
            Brilho com que uma vez me seduziste,
            Não fuljam tanto, a primavera existe,
            E inda canta, e inda sonha, e inda floresce...

            Saliente-se, na quadra acima, a personificação da primavera, assim como  a anáfora do verso em que ela “canta” e “sonha”, verso semelhante, na estrutura, ao de “Quando um poeta nasceu...”: “Inda sonha, inda crê, inda deseja e espera!...”

            No soneto “A uma desconhecida”, de “Setembro”, a beleza da mulher também sofre a passagem do tempo. Ela é chamada, no v.9, de “ó doce fim de outono”, comparando-se, implicitamente, a vida humana ao ano, dividido em quatro estações. 21 A imagem do outono, estação que antecede o inverno, com suas consequências sobre a natureza, é explorada, e é metaforicamente associada à beleza daquela “desconhecida”. Por sua vez, o poeta se compara ao vento:

            Ah, pudesse eu falar-te, um dia, voluptuosa,
            Sem palavras, assim como uma sombra estranha, (1)
            Como zéfiro fala ao ouvido da rosa! (2)
            ---------------
(1)      Cf. a comparação; note-se a conotação decorrente do uso da palavra homônima “cem” em vez de “sem”; note-se também o uso dos sons sibilantes em toda estrofe, relacionados à ação do vento
(2)      Cf. a personificação

Esse poema é um exemplo a mais de como a imagística de EP, em suas diversas áreas temáticas, procura conscientemente associar-se aos elementos da natureza, de acordo com os pressupostos estéticos dessa poesia.

A associação entre a passagem do tempo e o amor também ocorre no soneto “Entre essa irradiação”. O poeta afirma aí que poderia ter encontrado uma certa mulher, idealizada, em meio a uma “irradiação enorme” (irradiar= expelir raios luminosos), “Como a sonora luz de Vênus Afrodita” (cf. a comparação e a sinestesia), sem ele saber se seus cabelos seriam negros ou dourados, ou a cor dos olhos

Os olhos de que cor? Não sei. Porém suponho
Que seriam assim tão grandes como um sonho...(1)
Mas já passei a vida, e não a pude ver! (2)
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(1)     Cf. a comparação
(2)     Note-se o uso insólito do verbo “passar” nesse verso

Essa mulher poderia ser aquela “dama de olhos verdes” pela qual o cavaleiro de “Dama” se bate...ou seja, a Beleza personificada. Mas o soneto não revela a sua identidade, permanecendo no terreno do mistério. Conforme Andrade Muricy, o poema “Revive o tema do “Mon rêve familier”, de Verlaine, em versão subtropical, com aquele ‘girassol’ realmente solar22 (o soneto afirma que ela é um girassol, que de dentro do poeta desabrocharia “para a luz infinita”).

Em “A felicidade”, de “Setembro”, a passagem do tempo também ocupa um papel importante. Nesse soneto incomum,de versos bem espontâneos, o poeta se dirige a uma bela mulher, de quem acaba de receber flores e lhe é promissora. Ele esperou muito tempo por ela, no passado.Mas agora,que ela chega,é tarde demais... 
 
                                                                                             * 

            Os “Versículos de Sulamita”, compostos das seis quadras abaixo, são diretamente inspirados no “Cântico dos Cânticos”, e consistem, certamente, no poema de maior sensualidade erótica. É ela quem fala, nos versos. Sulamita, como é chamada a noiva naquele livro bíblico, arde de desejo por Salomão, e compraz-se em oferecer seu corpo a ele, referindo-se ao seu seio, umbigo, coxas etc: 

I
Ontem, atrás de ti, por essas ruas, toda
Furiosa, caminhei, nesta Jerusalém;
Mas supondo talvez que eu estivesse douda,
A guarda me espancou e me feriu, meu bem.

II
Vem, Salomão gentil, vem, ó meu rei amado,
Toda a noite passei velando, não dormi
Um instante sequer, de anseio e de cuidado...
Tenho fome de ti, tenho sede de ti! (1)

 III
Os meus seios estão mais rijos que uma pera, (2)
Túmidos de desejo e de suspiros vãos,
Que bom de me fundir, como se fosse cera, (2)
Ao calor ideal dessas pálidas mãos!

IV
Tu dizes, meu amor, que meu umbigo é como (2)
Uma taça a ferver de espuma e embriaguez;
Vem beber esse vinho e comer esse pomo, (1)
Vem te embriagar de mim e da minha nudez...

V
Estes lábios são teus, estas coxas são tuas,
Vem, ó rei Salomão, meu corpo é todo teu,
Vem devorar aqui as minhas pomas nuas, (3)
O fruto saboroso e ácido que sou eu... (1) 

VI
Vem, que morro por ti! Pois mal te sinto e logo
Com a mão a gotejar, como um destilador, (2)
A mirra, abro-te a porta, as entranhas em fogo, (1)
Rugindo, como se fosse incêndio, de amor!” (2)
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(1) Cf. a(s) metáfora (s)
(2) Cf. a comparação
(3) Pomas= seios (dic. Aurélio)


Em primeiro lugar, destaque-se a forte influência da Bíblia sobre os versos de “Ilusão”, de seus personagens (cf. relação no capítulo 4) e situações, em que deve ter desempenhado algum papel a ascendência judaica do poeta (que também descendia da nobre raça negra).

A Bíblia representa um conjunto de lendas e mitos, que expressam o caráter da civilização ocidental, assim como a mitologia greco-latina, também muito presente nos poemas. Ambas contêm verdades sobre a nossa natureza mais recôndita, mascaradas pelas aparências da ficção. Trata-se da verdade que o mito sempre encerra... 

Quanto ao poema em questão, é de se salientar -- além da recorrência do nome “Sulamita”, que aparece também em outras composições como sinônimo da jovem sensual – as referências à natureza, nas metáforas e comparações relativas ao corpo dela. Assim, os seios são comparados à “pera”; ela é um “pomo” ou um “fruto saboroso e ácido” a ser provado, e suas “entranhas em fogo” rugem de amor (rugir é próprio de um certo tipo de animais, os quais representam a força dos instintos) 23. Também os eufemismos em certas situações eróticas, nas duas últimas estrofes, devem ser destacados (eufemismos aparecerão também em alguns outros poemas). Houve certamente alguma influência do Naturalismo, então em voga, na composição desses  versos carregados de erotismo, explícito ou velado. A propósito, cabe lembrar que EP foi colega de redação de Júlio Ribeiro, o autor do famoso romance naturalista “A Carne”, e sobre ele escreveu uma crônica elogiosa, quando o escritor faleceu. 24

O poeta não hesita ainda em estabelecer comparações pouco convencionais (os seios vão se fundir “como se fosse cera” ao calor das mãos dele) para acentuar a sensação do tato, ou da visão (a mão dela goteja a mirra “como um destilador”). Seu umbigo é comparado a uma taça espumante, e o paladar é evocado explicitamente neste verso: “Vem beber esse vinho e comer esse pomo,

Em “Súcubo”, a amada, que está longe, é comparada a esse “demônio feminino que, segundo velha crença popular, vem pela noite copular com um homem, perturbando-lhe o sono e causando-lhe pesadelos"25. Quase todas as noites ela o visita, invocada pelo poeta:

E de leve, em redor do meu leito flutuas,
Ó Demônio ideal, de uma beleza louca, (*)  
De umas palpitações radiantemente nuas!

Até, até que enfim, em carícias felinas,
O teu busto gentil ligeiramente inclinas,
E te enrolas em mim, e me mordes a boca!.
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(*) Cf. a metáfora, e recorrência de “ideal” 

A imagem implícita, no último verso citado, é a da serpente, em que se disfarçou o diabo para tentar Eva no Paraíso, conforme, mais uma vez, a Bíblia. 

 “Adultério de Juno” é o título de uma série de três poemas, envolvendo personagens da mitologia clássica, que aí aparecem muito humanos, e por isso verdadeiros.

No poema I, Juno é caracterizada como uma mulher virtuosa em oposição a sua irmã Vênus, uma devassa. Juno, todavia, era terrivelmente ciumenta de Júpiter, seu marido (o mais poderoso dos deuses):

Quando tinha ciúme, era uma fera,
Mais furiosa que uma loba em cio. (1)  

Todos desejavam Juno: 

Por toda parte palpitavam beijos,
Mais lindos do que a flor do asfodelo, (2)
E os desejos mais sôfregos, desejos
De despir esse corpo e de mordê-lo...
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(1) Cf. a comparação
(2) Cf. a comparação, e a sugestão obscena do nome da planta citada, coerente com os dois últimos versos da estrofe. É a flor que cresce no Hades (terra dos mortos),segundo  o “Dictionary of Classical Mythology”, de J.E. Zimmerman, op cit.
  

Outros personagens mitológicos aí citados são: Vulcano (= deus romano do fogo e do trabalho em metal), náiades (= ninfas dos rios e das fontes), hamadríades (= ninfas dos bosques, que nasciam e morriam com as árvores que lhes eram destinadas, e onde se admitia que elas morassem) e um sátiro (= semideus lúbrico, habitante das florestas, que se pareciam com homens, mas tinham  chifres curtos e pés e pernas de bode) 26


O Olimpo enfim era uma borracheira, (1)
Era uma gargalhada, um grito insano;
Foi só para enganá-lo a vida inteira,
Que Vênus se casou com o deus Vulcano.

Via o infiel correr, ébrio de vinho, (2)
Náiades, hamadríades, e tudo
Quanto encontrava sobre o seu caminho,
Como se fosse um sátiro cornudo. (3)

Via-se desejada como a fêmea,
Cujo perfume era o da própria rosa,
Sua única irmã, sua irmã gêmea,
E entretanto teimava em ser virtuosa.
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(1) Cf. a metáfora. Borracheira= bebedeira (dic. Aurélio)
(2) Correr= pôr a correr; afugentar (dic. Aurélio)     
(3) Cf. a comparação 

O poema II diz que Juno vivia sempre só. Tinha apenas a alegria de correr, com seu coche azul, pelos campos:

E dentro do seu coche azul, clara e florida, (1) 
Levada por pavões, corria a toda brida.
Era um vôo através de campos verdejantes, (2)
De palmeiras gentis, serros de diamantes.
Cidades ideais, como lírios na fralda (3)
De uma montanha de pérolas e esmeralda,
Rios, vales em flor, floresta colossal,
Lagos polidos como espelhos de cristal, (4)
Nesse doirado mês de outubro, o mês risonho;
E ela passava assim como se fosse um sonho. (4)
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(1) Coche= “Carruagem antiga e suntuosa” (dic. Aurélio)
(2) Cf. a metáfora
(3) Cf. a comparação. Fralda= sopé (da montanha)
(4) Cf. a comparação

Numa manhã, porém, ela quis passear a pé, “como qualquer burguesa”. Passou tão metida em seus pensamentos que calcava as flores sem as ver:

Vendo-a passar por sobre as suas hastes em flor,
Inquietas de prazer, e histéricas de amor,
Diziam a sorrir lânguidas açucenas: (1)
‘Quem passou por aqui foi uma sombra apenas!’ (2)
Ia Juno, porém, de tal modo metida
No fundo do seu eu, da sua própria vida,
Que sem vê-las talvez, pálida e desdenhosa,
Calcava sob os pés a violeta e a rosa...
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(1) Cf. a personificação
(2) Cf. a metáfora  

No poema III, Juno, enfim, se desvia do bom caminho, entregando-se a  pastor muito bonito, que encontra (dormindo) em seu passeio. Ele é identificado com Endimion, o pastor da mitologia grega amado por Selene (a deusa lua).  

As relações amorosas entre Juno e o pastor são comentadas pelos faunos, sátiros, dríades (ninfas dos bosques) e um pássaro, presentes na natureza:

Outro sátiro:
..................................
Toda descoberta,
Sem nenhum receio,
Cada vez o aperta,
Mais junto do seio...

Com tal abundância,
Com tal alvoroço,
Que ela é quem mais ânsia
Tem daquele moço.
.................................
Um pássaro:
-Despiu-se toda. Está inteiramente nua...
Um sátiro:
-Nua, de uma nudez mais nua do que a lua... (*)
---------------
(*) Cf. a comparação, rima interna, assonância e aliteração presentes nesse verso

Outro jovem fauno:
.................................
E ambos, que loucura,
Ambos, que desordem,
Nessa luta obscura,
Como eles se mordem!
.....................................

No final, Júpiter cai “como um raio entre os dois” amantes (cf. a comparação).

Adicionalmente, citam-se estes outros personagens mitológicos: Hércules, Tântalo, Flora e Sileno. Hércules, famoso pela sua força, realizou os Doze Trabalhos.Tântalo roubou ambrosia e néctar dos deuses para dá-los aos homens. Como castigo, estava próximo da água, e não podia bebê-la, da comida e não podia comê-la. Além disso, uma enorme pedra estava sempre prestes a cair sobre a sua cabeça. Flora é a deusa das flores, dos jardins e do amor. Sileno é o seguidor de Baco, representado como um velho gordo e alegre, montado num burro, coroado de flores e sempre embriagado. 27 

Os faunos não são apenas espectadores do relacionamento amoroso entre Juno e o belo pastor. Em seus comentários, eles se mostram ressentidos, invejosos do pastor.

O poema I é composto por quadras, com versos de dez sílabas. O poema II  contém versos de doze sílabas, rimados dois a dois. E o poema III inicia com versos de cinco sílabas, em quadras, e depois prossegue com versos de doze sílabas, quando os elementos da natureza, personificados, falam, incluindo porém, intermitentemente, quadras com versos de cinco sílabas, que descrevem a relação entre Juno e o pastor, num ritmo mais ligeiro, coerente com a sofreguidão da transa

                                                                 *

            As mulheres a quem se referem os poemas podem ser “pálidas” ou “morenas”. Os versos sempre referem-se à sua nudez:

            Era  uma confusão. Pálidas e morenas,
            Cada qual, cada qual, como Deus a formou,
            Não foi uma, nem dez, porém foram centenas
As mulheres por quem D.Juan desesperou...   (“D.Juan”)

            Mas a mulher pode ser branca e loura como em “Gata”:

            Quando eu tomo esse teu cabelo ondeado e louro,
            E o cheiro, e palpo o teu corpo branco e felino,
            Como te torces, pois, minha serpente de ouro! (*)
            ---------------
(*) Cf a metáfora recorrente
(mulher=serpente=demônio)

            Aqui, a sensualidade dos versos se apoia na evocação do sentido do olfato, além de outros.

            Nesse soneto, de caráter descritivo, a amada tem a “carícia” “e a moleza de gata”:

O teu andar sutil é doce como a pata
            Desse animal pisando um tapete sombrio...
           
É uma comparação tão sugestiva quanto aquela de Juno pisando as flores em “Adultério de JunoII – “Quem passou por aqui foi uma sombra apenas!”. Mas num poema em louvor à Virgem Maria, o andar desta produz estranho efeito:

            Teu passo ressoa por sobre o veludo,
            Quanto tu caminhas, Lira de marfim. (“Em seu louvor”)
             
            Na sequência de “Gata”, é dito que a amada tem “uma morbidez lânguida de sonata”, mais uma evocação do sentido da audição, também referido no verso final: “Animal de voz rouca e gesto silencioso!” (a sensualidade, nesse soneto, apresenta-se, em suma, em termos visuais, táteis, olfativos e sonoros).

            Nas mulheres está sempre presente o Mal, simbolizado pela serpente e o verme:

            Lírio ou rosa, não sei, nenhuma flor tocou,
            Que uma serpente vil não tivesse manchado,
            E um verme também não exclamasse: aqui ‘stou! (“D.Juan, mas porque foi...”)   

            Anteriormente, os versos se referem à “alma de Ariel” dessas flores (=mulheres) angelicais (Ariel é um anjo rebelde, no “Paraíso Perdido” de Milton). D. Juan estremece, ao constatar a malícia delas,

            Abrindo os corações, todos, de par em par,
            Apenas ele quis transpor o limiar,

(cf. o eufemismo acima, que também ocorre em “Um dos sonetos de D.Juan”, quando o poeta, “como um colibri”, quer “palpitar” sobre ela, afirmando: “E que ânsia de poder fundir-vos num só beijo,”) 

Uma boa amostra de como se apresentam esses versos lírico-eróticos é o soneto antológico “Esse perfume”, em que o poeta faz o elogio do perfume da amada (cf. recorrência da  evocação do sentido do olfato): 

Esse perfume – sândalo e verbenas – (1)
De tua pele de maçã madura,
Sorvi-o quando, ó deusa das morenas!
Por mim roçaste a cabeleira escura.

Mas ó perfídia negra das hienas!
Sabes que o teu perfume é uma loucura:
-- E o concedes; que é um tóxico: e envenenas
Com uma tão rara e singular doçura! 

Quando o aspirei – as minhas mãos nas tuas –
Bateu-me o coração como se fora
Fundir-se, lírio das espáduas nuas! (2)

Foi-me um gozo cruel, áspero e curto ...
Ó requintada, ó sábia pecadora,
Mestra no amor das sensações de um furto!   
---------------
(1)     Sândalo= tipo de árvore cuja madeira é aromática. Verbena= tipo de planta com flores perfumadas  
(2)     Espádua= ombro (dic. Aurélio)

O perfume é da pele “de maçã madura” da “deusa das morenas”. O poeta o aspira como quem furta, quando está com ela. Por isso ela é “Mestra no amor das sensações de um furto!”, último verso do soneto. Sua perfídia é “negra” e é  “das hienas”, porque concede esse perfume, sabendo que ele é uma “loucura” e um “tóxico”, duas metáforas. Outra metáfora é chamá-la de “lírio”.  Como já disse, é recorrente nos poemas a identificação da mulher com a flor. Nesse caso, lírio pode designar tanto a planta quanto a sua flor, de cor branca  que,  aqui, contrasta com a cor “escura” da cabeleira da amada e com sua perfídia “negra”, produzindo um efeito visual interessante.       

Em “Incoerência”, o poeta está com a amada  “Em abraços, em beijos loucos e febris,” e lhe ocorre que, em vez de estar ali, poderia estar na rua, sofrendo, à procura de um remédio para um irmão que morre.

O poema pode ser lido como o registro da culpa judaico-cristã associada ao sexo, ou como uma metáfora da sensação de culpa pela arte alienada (a amada, como vimos, pode representar a beleza, a arte, ou a pátria desta, sugestão que decorre da referência à “flor de lis”, no v.2.).

O poeta poderia sobrepor a ética à estética, poderia, em vez da arte, dedicar-se às causas sociais mais urgentes:

Exposto ao vento, à chuva, à neve, ao frio, ao lodo,
Pálido de suor, carregado de tédio,
A procurar em vão, nervoso e quase doudo,
Para um irmão, que morre, um extremo remédio!

A destacar ainda, na quadra anterior a essa, os versos

Que em vez de estar aqui, abraçando-te nua,
Por sobre este peplum de seda, /.../”
---------------
(*) O dicionário Aurélio não registra “peplum” e sim “peplo”= “túnica sem mangas que os antigos traziam presa ao ombro por fivela”

Note-se a ênfase atribuída à nudez da amada por baixo do peplum, o que é explicado pelo estado mental do amante tomado pelo erotismo. No soneto “Ovídio” -- poeta a quem EP chama de Mestre, certamente por ter tratado antes de temas mitológicos e relacionados ao amor sensual -- Roma antiga está viva no terceto final:

E o orgulho de beijar, que nem o exílio doma,
O corpo mais gentil do lupanar de Roma,
Júlia, e basta, Nazão, filha do Imperador!...

Aliás, EP tem a habilidade -- conforme notou Péricles Eugênio da Silva Ramos -- de tratar de temas relacionados à Grécia e Roma antigas, e sua mitologia, com muita vivacidade, “sem nenhum ranço clássico”. 28 

Neste tópico, deve-se mencionar também “Heliogábalo”, em que um prostíbulo romano “vê” (cf personificação) entrar na cidade, como um deus, o novo imperador. O soneto conclui assim:

/.../ O monstro excedeu as crápulas de Roma! (*)
Heliogábalo é um homem e é uma mulher!
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(*) Crápula= devassidão, desregramento (dic. Aurélio)

Heliogábalo, segundo o “Petit Larousse”, foi imperador de 218 a 222 e introduziu em Roma o culto do deus Baal solar. Por isso, certamente, no soneto, é chamado de “filho do sol”.

Em “Súplica de um fauno”, um fauno, após descrever “a mais pomposa das lupercais” (= festas em honra do deus Pã), ocorrida no dia anterior -- em que diversas divindades mitológicas se divertiram -- lamenta seu amor infeliz por Diana e deseja, por isso, estar cego, ou ser transformado em estátua “Mais insensível do que o mármore de Paros” (essa é a sua súplica, conforme o título).

O poema descreve, com muita vivacidade, Vênus traindo Vulcano com Adônis.  Mirto, “ébria”, está enlaçada com um sátiro e Apolo corre atrás de Leucotéia, ao som da flauta de Pã:

—Foi neste bosque, olhai, que ontem a mais pomposa
Das lupercais eu vi. Coroada de rosa,
Dos loureiros em flor à sombra, que perfuma,
Vênus o corpo ideal, mais claro que uma espuma, (1)
Cedeu ao teu furor, ó Adônis, à tua (2)
Fome, como se fosse uma bacante nua... (1)
................................................................
E que algazarra vã daquela juventude,
Ouvindo Pã soprar na sua flauta rude, (2)
.................................................................
E que riso cruel, tonitroante e louco,
Quando Vulcano aparecendo daí a pouco,
Entre outros braços nus, que não de seu esposo,
Vênus veio encontrar delirando de gozo...
---------------
(1) Cf. a comparação
(2) Adônis= famoso pela sua beleza, era o favorito de Vênus; Pã= “deus grego dos rebanhos e pastores, das florestas e da vida selvagem, e da fertilidade; protetor dos pastores e caçadores. Parte homem, parte bode, com orelhas, chifres, cauda e pernas traseiras de um bode – brincalhão, lascivo, imprevisível, sempre luxurioso. Inventou a flauta com sete juncos /.../” Nome romano: Fauno. 29

 A figura do fauno é recorrente nos poemas. Além do soneto “De um fauno”, comentado abaixo, consta em “Setembro” um outro poema, com o mesmo título, ambos identificando o poeta com o fauno. Na realidade, o fauno representa qualquer homem dominado pelo instinto sexual. Converte-se assim em símbolo, como aliás muitos outros personagens mitológicos.

O soneto incluído em “Setembro” está datado de 1895, mas não foi incluído em “Ilusão”. Por que motivo?Talvez pelo seu conteúdo comprometedor...:  o poeta- fauno, ao lado de Ema, que acordou mais cedo, em seu “roupão de linho”, inveja o noivo desta por quem ela espera, naquela manhã  “cor de rosada e fria” (como acontece frequentemente em Curitiba, em certas épocas do ano). Na “Prosa” de EP consta uma crônica, datada de 8/5/1905, sobre o relacionamento do poeta com Ema, que era loura e falava alemão...30 (certamente membro de alguma família germânica de imigração mais recente para o Estado, pois ainda fala a língua dos ancestrais).

Também nos “Esparsos”, recolhidos em “Ilusão & outros poemas”, op cit,  consta um curioso “Soneto”, que começa por “Vejo-te sempre, Dona, ao sol das cinco,”, datado “Num País de Bárbaros—93”, que não foi incluído em “Ilusão”, decerto pelo mesmo motivo. Nesse soneto, o poeta vê passar uma mulher (com o marido e as filhas) de quem tem recordações eróticas.

Ris ao passar. A minha face cora ...
-- Estremeço. Recordo formas nuas ...
Lembro arrancos histéricos... Senhora!...

O poeta o conclui lamentando pelas filhas pequeninas dela. 

Em “De um fauno”, desejaria despir uma “Juno”, que passa por ele

Ah! quem me dera, quando passa em meu caminho
Juno! com seu andar de névoa que flutua,
Poder despi-la dessa túnica de linho...
E vê-la nua! Eu só compreendo estátua nua!
                       
Quando ele lhe estende os braços, ela foge dele. Seu desejo, porém, “como um sátiro perfeito”,

Despe-a; carrega-a, assim, despida, para o leito...

e a viola sobre o feno.

Ocorrem em “De um fauno” -- como em muitos outros poemas -- referências à mitologia greco-latina (no caso a Juno, Apolo e a um sátiro). Por outro lado, ele quer ver essa Juno nua pois só compreende estátua assim. EP procura “nobilitar” o desejo sexual pelas referências à arte e à mitologia clássica. Isso para nós hoje parece antiquado, uma vez que a poesia não precisa mais, felizmente, usar de tais artifícios para a expressão dos sentimentos humanos... 

A destacar no poema, ainda, estas imagens: o andar dela é “de névoa que flutua”. No soneto, ela, além de Juno e de estátua, é chamada de corça (“essa corça nua é branca, e é como a lua”) que o seu desejo – um gamo – persegue. O poeta, por sua vez, gostaria de ser Apolo (o deus da beleza masculina) para embriagar essa Juno “do seu vinho”. 

                                                         *
 
Na série de D.Juan (oito sonetos), da seção “Sátiros e Dríades”, EP explora o mito desse personagem lendário espanhol que serviu de tema a Tirso de Molina, Molière, Baudelaire, Mozart, Byron e G.B. Shaw. 31

D.Juan constata a presença do mal em todas as mulheres; aliás, em “Donzelas” (que no verso inicial – “Donzelas que passais com esse gesto ameno” --acusa influência de um famoso soneto de Antônio Nobre, incluído em seu livro “Só”, de 1892), o poeta já afirmara que não queria aquelas sem “veneno”, consideradas como “lírios”, com a palidez “duma cecém” (= flor do lírio). O lírio, tradicionalmente, é o símbolo da pureza, daquela “candidez ideal” mencionada no v. 12 do soneto. O poeta se considera vítima de sua época decadente, por isso só quer aquelas com “veneno”, aquelas em que D.Juan constata a presença do Mal... (o vocábulo “veneno” também aparece em “D.Juan, mas porque foi...”). Ressalte-se ainda a musicalidade de “Donzelas”, assegurada pela repetição de palavras, e o ritmo dos versos. A propósito, Nestor Vítor toma como exemplo um verso de “Donzelas” para salientar o uso freqüente que EP faz do alexandrino sem hemistíquio, novidade na época. 32 Assim, em vez de adotar a cesura na sexta sílaba, ele divide o alexandrino em três partes (com a quarta, oitava e décima-segunda sílabas acentuadas), como no verso  “Lírios do campo com figura de mulher,”


D. Juan anseia por diversas mulheres simultaneamente. Tem “ânsia de beijar a todas de uma vez”. Seu coração, comparado a uma lira, suspira “Ora em dó, ora em fá, ora em ré, ora em mi...” (“Um dos sonetos de D.Juan”). A diversidade de tons musicais aqui reflete a diversidade de mulheres por quem o volúvel D.Juan se interessa. Ele gostaria de “Palpitar sobre vós, bem como um colibri?” Esse “palpitar sobre vós” e o “fundir-vos num só beijo” do verso seguinte, com as sugestões decorrentes da semelhança fonética entre este último verbo e outro, de caráter obsceno (como ocorre na referência a “asfodelo” em “Adultério de Juno” I) são amostras de como EP trata, às vezes, de temas eróticos, apoiando-se frequentemente em sugestões. O terceto final refere-se ao corpo das amadas, em “flashes” de suas partes, com estas imagens:
  
Carnes, alvor de luz da manhã, que irradia,
Olhos, inundações furiosas de embriaguez,
Tranças revoltas como uma noite de orgia!
(“Um dos sonetos de D.Juan”)

 (“alvor” tanto significa ”alvura” quanto “brilho”, “esplendor”, permitindo aqui um duplo sentido, que acentua a carga expressiva da metáfora associada às “carnes”, supostamente nuas, das amadas).
  
D. Juan está condenado a querer uma mulher luxuriosa, que “todo o mundo beija”. Essa “luxuriosa flor” também é chamada de “fogo de Babel”, nome hebraico da Babilônia, cidade associada ao pecado na Bíblia, mais uma referência a esse livro, dentre tantas outras. 33  Ele está condenado a querer essa mulher, e a ter por destino

A infâmia de beber no fundo de uma taça
Onde eu sei que bebeu um beberrão qualquer!...  (“Outro soneto de D.Juan”)

Compare-se esses versos com  “Borboleta”, em que há tambérm menção às prostitutas. Num dia de sol, a borboleta persegue o poeta, roça nele, “como uma tentação”, sobe e desce, de tal modo que lhe parece

Essas que andam de lá pra cá, coquetemente,
À noite, nos jardins, a seduzir a gente...

Em outro soneto, D. Juan anseia por uma mulher chamada Sodoma (cf. as conotações desse nome, relacionadas ao Mal e ao pecado, pois é o mesmo nome da cidade bíblica destruída por ser pecaminosa, junto com Gomorra-- Gen. XVIII-19). Sodoma, nesse poema, é chamada sucessivamente de “flor maravilhosa”, “pálida rosa” (a flor sempre associada à mulher), “pérola preciosa”, “carne voluptuosa” e “rainha”.
    
D.Juan também anseia por alguém cujos olhos “são uma voracidade”, assim como são os seus. Os olhos dos amantes, nos dois tercetos, são personificados. “Correm a se agarrar, trêmulos de paixão...” Os olhos pelejam, querem se destruir, mas em vão... É lamentável que o resultado obtido nesses tercetos não seja satisfatório—mas a primeira estrofe do soneto apresenta agradável sonoridade, devida, em boa medida, ao polissíndeto:

Quando te vejo assim passar como um lampejo,
Não imaginas tu, causa de meu prazer,
O anseio, e o fulgor, e o horror, com que te vejo,
E o orgulho, e a ambição, e a fome de te ver.
(“Ainda outro...”)

Saliente-se o paradoxo aí existente, pois a amada causa “prazer” e ao mesmo tempo “horror”, certamente devido ao sofrimento antecipado pelos tormentos da relação amorosa:

E é um punhal este amor, e é um dardo este desejo,(*)
E nada satisfaz a ânsia de te querer
---------------
(*) Cf.as metáforas

No soneto seguinte, D.Juan elogia obsessivamente uma mulher mas, no final, aguarda a hora de ansiar por outra, ao pé da primeira (presença de “humor coloquial” nos versos, segundo J.G.Merquior, já assinalada, cf. item 3.3.2.b). Nos dois quartetos de “E finalmente o último...”, as múltiplas formas de D.Juan referir-se à amada sugerem a multiplicidade das próprias mulheres que lhe despertam o interesse:

Meu encanto, meu bem, rosa de Alexandria,
Minha tulipa, meu ideal, minha ilusão,
Minha loucura, meu amor, minha agonia,
Meu céu aberto, que parece uma prisão:

Minha esperança e meu pesar de cada dia,
Ó minha luz, tu és o meu desejo vão,
E a espada, e o broquel, e a pluma, e essa alegria,(*)
E esse delírio, e a flor da desesperação!”
--------------------------
(*) Broquel=  “Escudo antigo, redondo e pequeno” (dic. Aurélio)

A repetição dos possessivos “meu” (sete vezes) e “minha” (seis vezes) é importante para definir o ritmo dos versos, quebrado no último verso da primeira estrofe. Na estrofe seguinte, tal função é exercida não só pelo segundo verso, mas principalmente pelo polissíndeto, que lhes imprime uma nova sonoridade.

Além da identificação da amada com a flor (“rosa”, “tulipa”, “flor da desesperação”), ocorre aqui a oposição dos termos (ela é o “pesar de cada dia” e é “essa alegria”, ela é o “céu aberto” e uma “prisão”, é a “esperança” e a “flor da desesperação”). Ressalte-se ainda que ele a chama pelos nomes dos pertences de um cavaleiro (“espada”, “broquel”, “pluma”), além de chamá-la de seu “ideal” e sua “ilusão”. Assim, o cavaleiro-artista-D.Juan vê, na mulher, algo que ele equipara a um pertence seu, que lembra a figura do cavaleiro que se bate pela Beleza. Esta é seu “ideal”, sua “ilusão”, sua “agonia”, sua “luz”, sua “loucura”, seu “pesar”, esse “delírio”, sua “esperança” e a “flor da desesperação”. D.Juan, conforme já foi mencionado, é como o artista: ele está sempre em busca da Beleza, mas não consegue possuí-la plenamente.

Nos tercetos, após todos os elogios à amada feitos nos quartetos, ele  invoca o moinho de vento (símbolo da sua volubilidade?) e se indaga quando será a hora em que poderá, já fatigado de tudo,

Desses teus olhos vãos, mais caros que o veludo, (*)
Ansiar ao pé de ti, mas por outra mulher?...
---------------
(*) Vãos= enganadores, ilusórios

Note-se a comparação insólita, dos olhos da amada com o veludo: os olhos dela são mais “caros” – queridos, ou de alto preço – do que o “veludo”, o qual também evoca uma cor para os olhos dela. Qual? aquela que o leitor quiser lhe atribuir, de acordo com a sua fantasia...  

Finalmente, cabe mencionar ainda, neste tópico sobre D. Juan, a menção  a ele em  “Punição do herege”, quando o poeta descreve o abade luxurioso do poema:

Tinha de D.Juan a maneira cortês,
O olhar, o gesto, a voz, o manto e a languidez.
.........................................................................
Tinha essas frases vãs, que sempre uma mulher
Acolhe com desdém, mas ouve com prazer.

                                                          *

O amor que causa sofrimento pode ser representado pelos poemas I a III de “Um violão que chora...”. O poema I dá conselhos sobre o amor. Os versos usam uma linguagem portuguesa antiga, inclusive seu léxico (cf. “oelhos”, em vez de “olhos”). A flor/a rosa são identificados com o amor/a mulher:

            Oelhos por seu gosto
            Não os ponha em flor
            Que lhe causam dor:
Sofre de os não por,
E de os haver posto...
......................................
Amores são rosas
Próprias da Ilusão,
Rosas em botão,
Que é quando elas são
Frescas e cheirosas.
.......................................

Damas, meus senhores,
São todas iguais...
Já porque as olhais,
Nem vos olham mais,
Nem vos têm amores...

No poema II, de “Um violão que chora...”, também escrito em português antigo, o poeta espera pela amada que não vem. Na primeira estrofe, há uma comparação interessante:

Dessa tão ferrenha mágoa
De querer vos esperar,
Meus olhos se encheram d’água
Salgada como a do mar.
............................................
Quando ela vier, talvez ele não se encontre mais lá:

Mas se não me encontrardes,
O que é natural, enfim,
Interrogai estas tardes,
Que hão de vos falar de mim.

Sobretudo este arvoredo,
Que há de vos dizer: “Eu vi,
Ele passeava, em segredo,
Todas as tardes aqui.

Passeava tristonho e mudo,
A pensar em não sei que,
Tão distraído, que tudo
Via como quem não vê...

Andava, não sei, tão cheio
De torturas ideais...
Um dia o pobre não veio,
E afinal não veio mais...”

Saliente-se a simplicidade, espontaneidade desses versos, que, como ocorre em muitos outros poemas, nada tem do “nefelibatismo simbolista”... Destaque-se ainda a personificação de “tardes” e do “arvoredo”. O poeta fala como íntimo da natureza, ela é parte de sua vida,  e ele é (ou será) parte dela também.

No poema III da mesma série, o poeta lamenta o sofrimento causado pela amada, também utilizando um português desusado. Chama a atenção aqui o uso das sinédoques (emprego da parte pelo todo) em “mão” e depois, mais audaciosamente, em “unha”:
    
Tantas vezes hei sofrido
Que desta vez conheci
Que tudo ficou perdido
Nas mãos em que me feri.
E é justo que então vos diga
Que a mão que me faz sofrer,
Bem que me devia ser
Amiga, e não inimiga.
......................................
E como um cego supunha (*)
Que fôsseis só formosura,
E não afiada unha,
Que dilacera e tortura:
.......................................
----------------------
(*) Note-se a comparação, recorrente, do poeta com um cego

No final, ocorre mais uma vez a oposição entre “estrela” (metáfora do amor, da amada, do sonho) e “lama” (metáfora da vida sem amor, de dor, de desesperança):

Também daqui por diante,
Isso a mim próprio jurei,
Por mais que o prazer me encante,
Vista jamais erguerei,
Nem para uma outra estrela,
Nem para uma outra dama;
Pois para que é que hei de erguê-la,
Se tudo que vejo é lama?

O sofrimento causado pelo amor é certamente a razão para a atitude rancorosa do poeta em “Para um coração”, de “Setembro”. Nas quadras desse poema, em vez de chorar junto com a mulher que sofre, ele a chama de Lúcifer,  assim se expressando:

Mas, choras, creio, choras? Onde
Se viu chorar um Lucifer? (*)
Pobre diabo, vamos, esconde
Essas fraquezas de mulher...
---------------
(*) Cf. a metáfora

            Ainda dentro deste tópico, que relaciona o amor ao sofrimento, menção deve ser feita à imagem impressiva, contida nos versos abaixo, de “Palavras a um recém-nascido”, de “Setembro”. O amor aí é chamado de “arma branca”:

            Venha para o amor, pois o amor é como
            Um raro, um saboroso, um esquisito pomo, (1)

            Que, pálido e a tremer de sede e fome, a gente,
            Como um lobo voraz, morde sofregamente... (1)

            Venha para sentir com que febre se arranca
            Lá do fundo do peito o amor, que é uma arma
                     branca, (2)

            Para embebê-la, após, soluçando de anseio,
            Soluçando de dor, dentro de outro seio...
            ---------------
(1)     Cf. a comparação
(2)     Cf. a metáfora

Também podem ser incluídos neste tópico “SolidãoVI e “Espectro”.

Em “SolidãoVI,  o poeta se encontra só, pois

/.../ naquela prisão, onde eu estive,
E onde quisera estar, já não estais /.../,
     
entendendo-se aqui que a imagem de “prisão” refere-se a um relacionamento amoroso, então desfeito. Para ele,

Que o destino cruel bate e repele,
Todo desejo é inteiramente vão?

Resta-lhe o Silêncio e a Solidão, identificados com Apolo e Vênus, que pela sua associação à arte e ao amor, indicariam saídas para a frustração do amante. A amada, no caso, pode ser também considerada como a personificação da Beleza, que em “Desde que comecei...”, o poeta ama, esperando ser correspondido. Apolo e Vênus formam um casal, pois um é personagem masculino e outro, feminino, o que sugere que sua união pode dar frutos, ou seja resultar na produção, que é o objetivo do artista. Apolo é o deus da música, da poesia, da beleza masculina, enquanto Vênus é a deusa do amor e da beleza. Saliente-se ainda, com relação a esse poema, o polissíndeto usado para caracterizar a Solidão personificada:

E tem a graça, e o gesto, e o beijo, e o colo
De Vênus Afrodita – a Solidão!   

Em “Espectro” o poeta se recolhe ao seu quarto numa noite chuvosa e fria, em que o vento “ruge” de dor e a chuva bate “desesperada” nos “vitrais” (além do animismo relativo ao vento e à personificação da chuva, repare-se que “vitrais” sugere construção nobre, talvez um castelo medieval).

O protagonista é visitado por um fantasma, que, após fitá-lo “sem dizer palavra”, sai. O poeta sofre, quer iludir a sua “dor que chora”. Sofre porque está só, e há uma lembrança dolorosa sugerindo a perda de alguém... O fantasma poderia ser a personificação da mágoa, de causa indefinida, que visita o poeta em seu recolhimento... 

O soneto é muito influenciado pela ambientação de “O corvo”, de Edgar Poe (na realidade, é uma homenagem a ele): lá fora, a natureza também é hostil, dentro, o poeta também está só e sofre. Da mesma forma, folheia um volume, que não consegue ler. Até as escolha de rimas, em “ora”, nos quartetos, se assemelha  ao “ore” do original inglês (“never more”, “Lenore” etc). No final, todavia, entra um fantasma, em vez do corvo. Desse fantasma, nada se diz, apenas que olha de frente o poeta (que está sofrendo, cf. v.5) “Melancolicamente e dolorosamente”. Também em “Passarinho verde”, de “Setembro”, sente-se alguma influência de “O corvo”.

Deve-se salientar que EP, como ocorre na tradição literária ocidental, não se importa de retomar um tema já tratado por outros autores. Além destes poemas, lembremo-nos, a propósito, daqueles que exploram os mesmos temas de Baudelaire (embarque para Citera, D. Juan, o vinho), de Verlaine (sonetos à Virgem, “Christe, audi nos”, “Entre essa irradiação”) e dos “Versículos de Sulamita”, em que ele retoma o “Cântico dos Cânticos”, reproduzindo a passagem bíblica à sua maneira. Isso sem falar nas inúmeras lendas da mitologia greco-latina, que EP reelabora habil e vividamente.

                                                          *

O amor que mata pode ser representado por “Para ela”, por “Uma carta” e por “Canção”.

            Em “Para ela”, o poeta atribui a uma mulher a sua infelicidade, e não à sua "imaginação” ou à “mania do verso”, que também são causas de infelicidade.

            Nesse soneto, o poeta se vê como um “funâmbulo” (= equilibrista que anda no arame) caído no chão, no meio do sangue:

            Quem um dia me vir, caído pelo chão,
            Ferido pela dor, que é o meu punhal, Iago,
            No meio do sangue, assim, no meio dum lago,
            Como um funâmbulo torcido, mas em vão...

            Saliente-se a forte presença da vogal i nesses versos. No soneto “Vogais”, de Rimbaud, o i está associado ao vermelho, aqui naturalmente relacionado ao sangue do funâmbulo torcido no chão...

A dor do poeta é comparada a um punhal. Ele afirma isso, dirigindo-se a Iago, o vilão da peça “Otelo”, de Shakespeare, causador de mortes, dissimuladamente (de novo, referência à falsidade, à hipocrisia dos bárbaros).

            Novamente o poeta se vê morto:

            Ao ver a minha face, em terra, friamente,

algo que é recorrente nos poemas, o que pode ser atribuído ao seu desprezo pela matéria (o corpo) e supervalorização do espírito. Como já assinalei antes, quando ele se vê morto, ele é só espírito, está liberto da matéria, e  vive, segundo a sua concepção, na condição verdadeira, e não na ilusória (a condição atual). Paradoxalmente, o poeta valoriza essa mesma matéria ao explorar o tema do amor sensual...

            Nas quadras de “Uma carta”, um poema narrativo, o poeta, moribundo, escreve para a amada, a quem deixou, quando partiu para a guerra; depois de ler notícia sobre ela, em jornal, ele agiu de modo temerário e foi ferido mortalmente. Na carta, ele a faz recordar do início de seu relacionamento:

            Tu te recordas, pois, dessa tarde? Eu me lembro
            De tudo. Foi ao pé de uma giesta em flor... (*)
            Eu te beijei as mãos, o cabelo... Dezembro
Ardia. Enquanto nós mudávamos de cor...
---------------
(*) E´ recorrente, nos poemas, a menção a “giesta” (=“Planta ornamental arbustiva /.../ de folhas pouco numerosas e flores amarelas, de cheiro agradável”- dic. Aurélio)


A referência a dezembro, que arde, situa geograficamente o poema no hemisfério Sul. Em outros poemas, quando EP se refere ao “chacal”, ou a outro animal, ou planta, que não pertence à nossa fauna ou flora, a ótica é a do hemisfério Norte – mais especificamente, a da Europa, integrando-se assim à tradição literária desse continente, e revelando influência de seus poetas preferidos, franceses e portugueses. Lembremo-nos, a propósito, que toda a obra de EP é anterior a 1922, o ano-marco da Semana de Arte Moderna, quando finalmente as coisas da nossa realidade passaram a ser mais valorizadas, adquirindo o “status” literário...

Uma carta” conclui com versos que poderiam ser aplicados ao cavaleiro-artista, lutando pela “dama de olhos verdes” (a Beleza), em confronto com os bárbaros:


            Vibraram-me no peito uma lança, caí
Sob os alfanges nus desses cossacos brutos..
Mas que importa afinal, se vou morrer por ti!
           
Canção” é uma balada medieval, formada por redondilhas (quadras com versos de sete sílabas) não ortodoxas quanto ao esquema de rimas, de forte sabor lusitano. Trata do retorno do esposo (como um cavaleiro sinistro) que mata Guiomar, supostamente, por infidelidade, e depois retorna para as “guerras de Além-mar”. Há um contraste, na primeira estrofe, entre o negro cavaleiro e a cor da lua, ou do luar; na última estrofe, o luar tem “Cor de sangue”. O poema inclui diálogos (na realidade, é pelos diálogos que o leitor conhece a história). Inclui também uma ambiguidade intencional: o esposo e D. Rodrigo são a mesma pessoa, ou não?


Notas ao capítulo 3.5


1         BAUDELAIRE- “Pages choisis”. Classiques Larousse- 17e édition. Paris. Larousse, p. 36

2         LEMINSKI, Paulo—“Cruz e Souza”. Col. Encanto Radical. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 14

3         Apud HAUSER, Arnold- “História Social da Literatura e da Arte”, tomo II, São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1972, p. 960

4         MURICY, Andrade—“Nota biográfica” in “Poesias Completas de Emiliano Perneta”, v.I, Rio de Janeiro, Ed. Zélio Valverde, 1945, p.VIII

5         PILOTTO, Erasmo—“Emiliano”. Curitiba, Gerpa, 1945, pp.156-157

6         SILVEIRA, Tasso- “Emiliano Perneta, poeta de evasão” in revista “Letras”, Curitiba, Universidade Federal do Paraná (15):3-7,1966

7         “Obras Completas de Emiliano Perneta”-1º v.- “Prosa”, Curitiba, Gerpa, 1945, p.23

8         BOSI, Alfredo—“História Concisa da Literatura Brasileira”- 3a. ed., São Paulo, Cultrix, 1987, p.318

9         “Obras Completas de Emiliano Perneta”- 1º  v.- “Prosa”, op. cit., pp. 84-86; cf. também a nota na p.77

10     VÍTOR, Nestor- Obra Crítica- v.I, Ministério da Educação e Cultura- Fundação Casa de Rui Barbosa, 1969- p. 439

11     ZIMMERMAN, J.E.- “Dictionary of Classical Mythology”. New York, Bantam Books, 1985, p. 94

12     ZIMMERMAN, J.E.- op.cit., p.80

13     MOISÉS, Massaud—“A Literatura Brasileira”- v. IV- O Simbolismo (1893-1902)- 2a. ed., São Paulo, Cultrix, 1967, p. 142

14     “A Bíblia” – v.I, São Paulo, Abril Cultural, 1982, p. 15

15     “Seventeenth-Century Poetry”. England, Penguin Books, 1996- p. 17

16     ZIMMERMAN, J.E.- op. cit., p.200 e p.84

17     MURICY, Andrade- “Emiliano Perneta”, Rio, 1919, p.42

18     MERQUIOR, José Guilherme- “De Anchieta a Euclides: Breve História da Literatura Brasileira”-I, 3a. ed.- Rio de Janeiro, Topbooks, 1996- p. 190

19     VÍTOR, Nestor- Obra Crítica, v.I, op.cit.,  p. 432

20     BAUDELAIRE- “Pages choisis”. Classiques Larousse- op. cit., p. 51

21  Essa observação me faz lembrar o belo acróstico que meu pai, Herbert, compôs, a pedido de uma parente, quando faleceu sua prima Olga Soares Gomes, para ser gravado em uma pequena placa no túmulo dela, no Cemitério Municipal São Francisco de Paula, e que ali ainda está:  “O inverno não alcançaste./ Livre estás em pleno outono./ Guarda, agora que acordaste,/ A lembrança de teu sono”. A propósito, no túmulo de Emiliano Perneta, no mesmo Cemitério, consta também uma quadra, dirigida a sua mãe: “Aqui, debaixo desta fria lousa,/ Aqui, ó minha mãe, junto do teu,/ O meu ferido coração repousa,/ Mudo e gelado como quem morreu.”

22 “Emiliano Perneta”. Col.Nossos Clássicos nº 43, 2a. ed., Rio de Janeiro, Agir, 1966, p.         45- nota

23 GUIMARÃES,  Denise Azevedo – “A ânsia do Absoluto na poesia de Emiliano Perneta” in Paraná-Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte- “Textura” nº 2, jul-dez, 1981

24 EP trabalhou com Júlio Ribeiro na redação da “Gazeta do Povo” de São Paulo. A crônica sobre ele foi publicada na “Folha Popular” do Rio em 1890, da qual EP foi secretário e principal redator (cf. “Obras Completas de Emiliano Perneta”- 1º v., “Prosa”, op. cit., pp. 55-56, inclusive nota na p. 56)

25 Novo Dicionário Aurélio- 1ª. ed, 15ª impressão-. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, s/d

26 Cf dicionários Aurélio e de  Zimmerman, J.E.-op. cit.

27 ZIMMERMAN, J.E.- op. cit.

28 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva- “Poesia simbolista. Antologia”. São Paulo, Ed. Melhoramentos, 1965, p. 115

29 ZIMMERMAN, J.E.- op. cit.

30 “Obras Completas de Emiliano Perneta”-1º v.-“Prosa”, op. cit., pp.81-84

31 Hutchinson Encyclopedia. Great Britain, Helicon, 1995

32 VÍTOR, Nestor- Obra Crítica- v.I, op.cit., p.432

33 “A Concise and Practical Dictionary of the Bible” in “The Holy Bibble”- The National Bible Press, 1975  

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