quarta-feira, 12 de dezembro de 2012




3.3- O POETA/ARTISTA ESTÁ CONDENADO NO MUNDO DOS  BÁRBAROS


3.3.1- O BOM COMBATE DO CAVALEIRO

Em muitos poemas, EP vê o artista, ou o poeta, empenhado num bom combate, o combate pelo ideal, pela Beleza. Esta é personificada no soneto “Dama”, transcrito abaixo. O artista é equiparado, nessa luta, a um cavaleiro andante dos tempos medievais (referências a esses tempos são recorrentes no livro). Num “mundo inóspito”, o cavaleiro está em luta permanente contra os inimigos da Beleza, contra aqueles que “Urdem contra a Beleza as coisas mais abjetas...”, i.e., os bárbaros:


A noite em claro, o mundo inóspito, e dessa arte
Urdem contra a Beleza as coisas mais abjetas...
Reina o Pesar, mas como um Rei, por toda parte; (1)
E ordena Herodes que degolem os poetas...

5          Cavaleiros por terra e plumas inquietas;
Esqueletos, que importa? a rir... Hei de vibrar-te (2)
Aos quatro ventos, e com formas obsoletas,
Ó gládio nu! meu esotérico estandarte!

Delírio!  assim no ar este sinal eu traço...
10        Escarótico, pois? É bem! Vibrião do Ganges? (3)
Combaterei se for mister, num circo d’aço...

Combaterei, embora eu saiba que me perdes,
Com versos d’oiro, que reluzam como alfanjes, (4) 
Dama! com teu orgulho! ó dama de olhos verdes!
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(1)     Cf. a comparação
(2)     Cf. o sarcasmo de “esqueletos a rir”
(3)  Escarótico= que produz escaras (escara= “Crosta escura proveniente da mortificação de partes de um tecido”); vibrião= gênero de bactérias (dic. Aurélio). Ganges= rio da Índia. “Vibrião do Ganges” sugere alguma doença (cf. a expressão “vibrião da cólera”). O poeta estaria como que tomado por essa “doença”, associada ao rio sagrado dos hindus, ou por extensão à tradição cultural hinduísta que, como vimos, exerceu influência sobre ele. 
(4)  Alfanje= “Sabre de folha curta e larga” (dic Aurélio); cf. a comparação


Destaque-se, no v.1 do soneto, o uso de uma expressão bem coloquial --“noite em claro” , que traz consigo a conotação de preocupação com coisas vitais para o protagonista. Destaque-se também a imagem do v.3, do Pesar reinando por toda parte, em que o verbo “reinar”  induz à evocação da figura do Rei. 

“Plumas”, referidas no v.5, dá nome à primeira seção de “Ilusão”. É um atributo do cavaleiro, e adquire no livro um valor simbólico.  A palavra  também aparece em “Lied”, associada ao jovem cavaleiro andante:   “Plumas todo verdes, lírios todo brancos...”  Em “Uma carta”,  consta este polissíndeto que emprega o vocábulo e é revelador da maneira como o poeta vê o cavaleiro:
Julguei ser um herói, mas um herói d’antanho,
De pluma e capacete e lança e boldrié. (*)
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(*) Boldrié= “cinturão ou correia a tiracolo à qual se prende a espada, ou outra arma”

Em “SolidãoV, os versos finais apontam igualmente para uma paisagem de luta. O poeta está no meio de escombros, “no cimo” (sugerindo a “torre de marfim”, onde o artista se refugia), “dentro deste horror sombrio, como um Rei” (vide adiante o comentário sobre essa forma de ver o artista). O protagonista está “entre os abutres e entre as Desesperanças”. “Abutres”, em sentido figurado, refere-se aos bárbaros, conforme “Solidão”:

 Nós fugiremos, pombos ideais,
 Longe destes abutres e chacais.

mas também conserva aqui o significado próprio, sugerindo a presença de cadáveres no campo de batalha.

O artista sabe que está condenado a perecer em combate, conforme o último terceto de “Dama”, transcrito acima. Ele sempre será derrotado no mundo dos bárbaros.

Vencidos”, refere-se à possibilidade de uma certa maldição de Roland cair sobre os poetas-cavaleiros, pois serão “mortos pela injúria”. Mas os “grandes” também serão batidos um dia, e servirão de pasto aos vermes, para regozijo do poeta rancoroso.  O soneto é assim:

Nós ficaremos, como os menestréis da rua, (1)
Uns infames reais, mendigos por incúria,
Agoureiros da Treva, advinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penúria?

5          Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua
Maldição, ó Roland?... E, mortos pela injúria, (2)
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?

Seja. Os grandes um dia hão de cair de bruço...
10        Hão de os grandes rolar dos palácios infetos! (3)
E glória à fome dos vermes concupiscentes!

Embora nós também, nós, num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos (4)
Partamos! inquietando as estrelas dormentes!
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(1)     Cf. a comparação
(2)     Roland é o modelo do cavaleiro cristão e tema da canção de gesta francesa mais antiga, do século XII, segundo o “Petit Larousse”
(3)     Infeto= infecto= “Que tem infecção. Que lança mau-cheiro; pestilento” (dic. Aurélio)
(4)     Cf. a metáfora


É interessante salientar que, ao longo do soneto, há uma predominância de sons brandos, nasalados, envolvendo fonemas com m ou n, além de palavras em ão,  que dão o tom para a música dos versos.  

            No terceto final, os nervos dos poetas são associados às cordas do violão, enquanto “Partamos” apresenta duplo sentido (“partir” pode significar “seguir viagem, morrer”, ou significar “quebrar, romper”, no caso, as cordas do “violão dos nervos inquietos”, quando os poetas morrem). A morte dos poetas inquieta as estrelas, pois eles se relacionam, os poetas ou sonhadores amam as estrelas (cf. “Prólogo”, “A cigarra e a estrela”).

Como disse antes, a “dama” do soneto com esse título é a Beleza personificada, por quem o cavaleiro se bate. Seus olhos  são verdes, a cor da esperança. O artista espera conquistá-la. Em “Desde que comecei...” , a amada também se identifica com a Beleza (embora esta não seja citada explicitamente) e as expressões associadas a ela lembram a sua nobreza, pois são atributos da realeza (“manto real”, “fausto dum Castelo”, “Fulgor”). Ela também é chamada de “Ilusão”, e isso ajuda a identificá-la (cf. “Prólogo”: “E a Beleza não é mais do que uma Ilusão!”). O soneto -- após o poeta afirmar que tudo deixou cair aos pés dela, “Como flores”, “Este Símbolo”, “Versos” -- conclui assim:

És tudo, meu amor! E hás de olhar para mim?
onde a impressão de mágoa decorre da incerteza, por parte do artista, de ser correspondido em seu amor pela Beleza (i.e., de ter alcançado a beleza).

A “Dama d’olhos verdes” será mencionada também na quinta estrofe de “Ideal”, com um tom sarcástico (que EP adota, sobranceiramente, quando se refere à morte):

E tu, cruel, que assim me perdes,
Ó vício! Ó Dama d’olhos verdes!
Torcida como um caracol?

Na segunda estrofe, a Esperança dá ao poeta uma lança, pois vão matar a  irmã deste (= o Ideal). Ao longo do poema, o Ideal, além de “Dama d’honor”, é chamado, sucessivamente, de vela num mar de sangue (o sangue derramado no bom combate), de Espada, lança e arnês, pertences do artista-cavaleiro, empenhado nesse combate nobre:

Ideal! Ideal! que me tortura!
Ó fogo fátuo! ó vã loucura!
Dama d’honor! Lança e Arnês! (*)
Além, além, é um mar de luzes!
No meio d’ossos e de cruzes?
Que importa? Irei sangrando os pés!
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(*) Arnês= “Antiga armadura completa de um guerreiro” (dic Aurélio)

O último terceto de “O enigma”, refere-se à “peleja”, à “refrega”, em que se empenha o idealista:

Anseia para ver no meio da peleja,
Dessa refrega, desse ardor que relampeja,
Se ainda pode iludir a cruel Decepção!...

(o termo Decepção ocorre algumas vezes, e significa o reverso da Ilusão, a frustração em alcançar  os objetivos superiores do ser humano)


Nas quadras de “Lied”, o “cavaleiro andante”, que representa o artista empenhado no bom combate, quando jovem, esperançoso (cf. a cor das plumas) e inocente (cf. a cor dos lírios), 


Caminha p’ras guerras em tempos de paz  (*)
Plumas todo verdes, lírios todo brancos...
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(*) Cf. o paradoxo; quanto ao simbolismo das cores, acrescente-se ainda que o seu cavalo, como os lírios, também é branco, conforme o primeiro verso do poema


O cavaleiro ”Vai correr o Mundo pelas aventuras...”.
Reiteradamente, o poeta adverte ao jovem idealista, com armaduras que “fulgem” e “espada d’oiro” (cf. o simbolismo): “Cavaleiro, não vás!” (o seu mau presságio é reforçado pela referência às “estrelas más” do v.6). O poeta quer poupar o jovem cavaleiro das frustrações que advirão com certeza. Mas, na última estrofe, ele afirma ao cavaleiro triste (já desapontado pelas experiências da luta inglória), sem a sua dama e com gilvaz:

Cavaleiro triste (ceifa a lua nova) (1)
--Que é da sua dama? Que é do seu gilvaz? –  (2)
Entra p’los salgueiros caminho da cova ...
--Não direi que não vás!”.
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(1)     A lua é personificada como “a ceifeira” --  representação tradicional da Morte
(2) Gilvaz= “golpe ou cicatriz no rosto”

O “cavaleiro andante”, que está condenado por antecipação na realidade dos bárbaros, vai encontrar agora a sua verdadeira pátria, pois neste mundo o artista não é feliz (vide adiante). Não realiza integralmente as suas potencialidades. Não alcança os seus objetivos, visto que “ama o impossível” (de alcançar), conforme “Prólogo”.

A propósito, “lied” (palavra-título do poema), segundo o dicionário Aurélio, é  um “poema estrófico, geralmente sentimental, e destinado ao canto”. 
     
                                                       *

O combate não se dá apenas por uma causa estética, embora a luta pela Beleza seja a mais mencionada. Ele também pode ocorrer por objetivos éticos. Por exemplo, em “Justiça”, personificada como uma “mulher que se perdeu”, caída no chão, derramando sangue. O poeta tem o furor de arrancar a espada e “alevantar a voz” em seu favor. Chama a si, para o combate, com a espada em punho

Cegos e surdos que não querem ouvir nada...
Heroísmo, e juventude, e glória, e luz de um dia, (1)
Que bom de ver surgir uma cavalaria,
Que te erguesse do chão, como uma flor, enfim!” (2) 
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(1)     Cf. o polissíndeto, recurso frequentemente empregado por EP
(2)     Cf. a comparação, recorrente 

 Também em “Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!III, o pré-requisito para a ascensão espiritual do poeta é ele se “bater”

Gládio nas mãos, assim como um artista doudo, (*)
Contra o Pecado vão /.../
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(*) Cf. recorrência do uso de “doudo” ou “doido”, que objetiva excepcionalizar o artista


Em “Punição do herege”, a imagem da espada retorna, sugerindo o bom combate, nestes versos:

Sei que foste, Jesus, uma espada em favor
Da justiça, do bem, da luz e do amor;
Hoje, porém, estás do lado do carrasco, 

De modo geral, percebe-se nos versos uma identificação do belo com o bem, e do feio com o mal, ou seja uma identificação da estética com a ética (a mais nítida expressão disso está contida em “Glória”, quando o paraíso celeste -- destino final dos seres eticamente superiores -- também é o ideal de realização do artista, i.e. a posse da beleza).

Assim, no soneto “Orgulho”,  EP afirma:

Nasci para viver no meio do que é belo.
A miséria me causa um horror sem igual.
Eu não posso tocar de leve com o escalpelo
Numa ferida, sem que isso me faça mal. (*)

Nasci para viver no meio d’um castelo,
Onde eu domine, mas com um gesto senhorial.
Não quero conhecer o mal, não quero vê-lo;
O manto dum artista é um manto imperial.
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(*) Cf. a metáfora

 Aqui, como se vê, o feio é identificado com o “mal”, o que nos permite inferir, por simetria, que o belo é o bem, que a “miséria” mencionada antes não é somente estética, mas também  moral. No mesmo poema, EP afirma preferir o Ódio à Piedade, antes quer “rugir, do que chorar de dor”, quer também para si

O furor de brandir nas mãos, como uma lança,
Este orgulho, que enfim é uma giesta em flor!

O orgulho do artista é comparado, não por acaso, a uma lança, instrumento de luta do cavaleiro. O poeta quer sentir ódio porque está empenhado num combate ...

Em “Para que todos que eu amo sejam felizes”, o poeta pede “aos deuses”  que essas pessoas que ele ama

Não compreendam jamais /.../
..................................................................
Que há serpentes cruéis e babas de serpente,
E monstros, e reptis, e charcos e venenos; (1)
Mas simplesmente, olhai, mulheres como Vênus, (2)
Belezas ideais, beijos unicamente! (3)
---------------
(1)     Cf. o polissíndeto
(2)     Cf. a comparação
(3)   Cf. a recorrência de “ideais” 

Uma vez mais, o mal abrange um sentido ético e estético, simultaneamente, subentendendo-se que as “Belezas ideais” são também o bem. 1

No baudelaireano “Canção do diabo”, o artista é amado por Satã, quando coloca a estética acima da ética:

O teu furor pela beleza,
Indiferente ao bem e ao mal

E em “Cavaleiro”, a juventude, por ser bela, mas “cega”,  também não distingue o bem do mal:

A galope, pela estrada
É como um cego afinal,
Não vê nada, não vê nada,
Nem o bem, e nem o mal.

Por fim, em “Hércules”, datado de 1912 (que integra o livro póstumo “Setembro”), há um apelo explícito ao homem contemporâneo para que entre na batalha pelo bem, e ao artista , em particular, para que comprometa sua arte com esse objetivo, conforme estas quadras:

Homem, levanta e vem para a campanha rude,
Ergue-te para a luz, ergue-te para o bem,
Tu que inda sentes n’alma o ardor da juventude,
A sede desse azul, a fome desse além... (1)
...........................................................................

Vem manejar o estilo, em prol dalguma idéia,
Vem fazê-lo vibrar intenso, como se
Vencesses o leão rugidor da Numéia, (2)
A hidra feroz de Lerna, o bruto javali ...
---------------
(1)     Cf. as metáforas
(2)     Cf. a comparação

O homem envolvido nessa luta é considerado como Hércules. Alguns de seus doze trabalhos são mencionados, inclusive na segunda estrofe citada, aos quais é comparado o engajamento da arte “em prol dalguma idéia” (essa afirmação revela o amadurecimento de EP, que em “Alegoria”,  lançado em 1903, criticava, em várias ocasiões, a arte comprometida socialmente). 2

Ressalte-se ainda, com relação a  “Hércules”,  a originalidade e a audácia desta imagem, associada aos rastros na água “vistos” pelas naus, animisticamente consideradas:

As naus, que vão partir por esse mundo fora,
Miram vaidosamente as caudas de pavão...

No final da batalha (pelo bem) o homem  sucumbirá,

Mas belo como um deus, coroado de louros.  (*)
---------------
(*) Cf. a comparação




            3.3.2- CARACTERIZAÇÃO ADICIONAL DO ARTISTA 

            Além da imagem do cavaleiro-andante, em combate pela sua dama, ao artista/ poeta  também estão associadas outras imagens, tais como as do rei, de  D.Juan, de Erisicton, do eremita e da criança (em “Vencidos”, os poetas são chamados ainda de “menestréis da rua”).                        


a)     O poeta é um rei

No soneto “Salomão”, transcrito anteriormente (no final do item 3.1.a), o coração do poeta é comparado a esse rei bíblico, de quem possui os atributos. Saliente-se que, em várias ocasiões, EP faz referência ao seu coração, ou dirige-se a ele diretamente, como em “Um violão que chora” VII e VIII, “Coração livre” etc. 

Nessa comparação com Salomão, ordenando-se os termos empregados no soneto para caracterizar o coração do poeta, constata-se a intenção de:
a) elevar ao máximo a condição do artista: justificativa para a menção à sua “glória”, “luxo”, “fausto”, “requinte”;
b) destacar a consciência de sua superioridade, frente às atividades desenvolvidas pelos “bárbaros”: referência a “orgulho”, “vaidade” (a palavra “orgulho” é recorrente nos poemas, significando – conforme o dicionário Aurélio – não só o “sentimento de dignidade pessoal; altivez” mas também o ”conceito elevado de si próprio”, ou “aquilo de que se tem orgulho”. Por exemplo, em “Ovídio”, este tem “o orgulho de beijar /.../ O corpo mais gentil do lupanar de Roma”).

Em “O meu orgulho levantou-me”, o orgulho, personificado, levanta o poeta pelo braço e lhe diz “Mas tudo há de ficar um dia sob teus pés!” numa cena que lembra a passagem bíblica da tentação de Cristo no deserto pelo demônio (a formação judaico-cristã de EP influencia fortemente os seus poemas). Evocando essas imagens do Evangelho, EP está associando o orgulho ao demônio, i.e. o está criticando, implicitamente, ao contrário de “O orgulho”, em que este é elogiado. Porém, o orgulho que EP elogia no artista será relativizado mais tarde, quando ele considerará, na estrofe 15 de “Para que todos que eu amo sejam felizes”, o orgulho e a vaidade os seus maiores pecados;   

c) salientar as aspirações do artista: menção ao que ele “ambiciona”;
d) indicar o seu arrebatamento, na busca da beleza: menção ao seu “furor”;
e) assinalar o sofrimento causado por essa busca: as palavras “crueldade” e “ferocidade” são mencionadas (o coração do poeta é cruel porque o faz passar pelos  tormentos relativos à expressão da Beleza, ou do inefável; é cruel também por causa da  sua  hipersensibilidade, da sua suscetibilidade diante de um meio adverso).

            A imagem do rei associada ao artista se explica pela intenção de destacá-lo da multidão, i.e. da população do reino. Suas preocupações são superiores às preocupações banais da maioria das pessoas, que se resumem na busca do dinheiro, dos bens materiais e do poder sobre as outras pessoas. Daí possuir, figurativamente, os atributos reais,  o luxo, o fausto, o orgulho, o requinte etc, o que também se relaciona às criações resultantes de sua nobre atividade:  “O manto dum artista é um manto imperial”  (“Orgulho”).

EP lhe reserva, assim, um lugar no topo da hierarquia social, como um monarca, justamente porque isso não se verificava na sociedade (burguesa) em que vivia (e tampouco se verifica hoje), sociedade essa marcada pelo utilitarismo e a busca de objetivos menores, em que a poesia ou a arte não eram (não são) valorizadas por si mesmas, e sim pelo que representavam para as convenções sociais ou para o mercado...

Também o soneto “SolidãoV conclui comparando o poeta a um rei: “E dentro desse horror sombrio, como um Rei!”. 

Finalmente, nos dísticos de “De como vim cair aos pés de Deus”, de “Setembro”, constam  alguns versos que explicitam um pouco mais a concepção de EP sobre o artista:

E como Salomão, magnífico e profundo,
Cuja pompa de sol foi a maior do mundo,

Rei que amava o perfume, a vida heróica e rude,
A púrpura, o ideal, a força, a juventude,

O delírio do luxo, a flor das coisas fátuas, (*)
O vinho e a mulher, os poemas e as estátuas,

E era, como em geral é todo fino artista
Um grande sensual e um grande pessimista,

Eu ia por aí, nesse redemoinho,
Vertiginoso e atroz, rolando o meu caminho,
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(*) Fátua= “tola, insensata”


b) O poeta é D.Juan


Em “D.Juan” o artista compartilha das mesmas características desse personagem lendário espanhol:

/.../ Porém, D.Juan era um artista,
E portanto cruel, nervoso, pessimista,
E de resto, o infeliz nunca se satisfez!

O artista é “cruel” porque é implacável com os inimigos da Beleza e do Ideal, “nervoso” porque é hipersensível, “pessimista” porque tem se frustrado em alcançar a beleza e “insatisfeito” porque nunca se realiza plenamente, está sempre em busca de novas manifestações da beleza. Daí a sua infelicidade ...

Para EP, em “Não sei que poeta...”,  D.Juan é um rei (pois possui “manto de rei”), é um “herói” (cf. o vocativo), é “o símbolo de um sonho” e a “flor ideal e eterna da Ilusão” (recorrência do termo “ideal”). O sonho associado a D. Juan é o sonho da Beleza (de possuí-la), pois ele está sempre em busca de novas representantes dela, daquela que lhe parecer mais promissora. Mas no final será desapontado, ansiando por uma mulher aos pés de outra (“E finalmente o último...”). Em tudo semelhante ao artista...

J.G.Merquior ilustrou com o terceto final desse último soneto sua observação relativa ao “humor coloquial, um pouco entre a ironia de Laforgue e a chalaça de Artur Azevedo, de Perneta; quando virá, pergunta o poeta, a hora de--

Já fatigado, já, de tudo sim, de tudo,
Desses teus olhos vãos, mais caros que o veludo,
Ansiar ao pé de ti, mas por outra mulher?...”

                                                                                                    *  

Referi-me acima ao pessimismo do artista, vale dizer às suas expectativas negativas quanto ao futuro (o pessimista acredita que a sorte sempre lhe será adversa). Cito a seguir evidências dessa atitude em diversos poemas de EP, e incluo, no final deste tópico, comentário sobre seu antológico poema “Azar”.

Em “Quadras”, o poeta afirma:

            Eu de certo não sei, se venho dum gorila,
Ou se venho talvez do paraíso terreal...
Em todo caso pó, e quando muito argila...
Achei-me um dia aqui; quem sabe por meu mal!

(as palavras finais do último verso citado constituem expressão recorrente: cf. “por seu mal” no v. 45  de “Estátua”).

Em “Vencidos” os poetas estão condenados, suas cantigas os conduzirão à “maldição” de Roland. Em “Bruxa” o poeta se frustrou em alcançar o que a bruxa lhe dissera, quando menino; ele espera o bem, mas “é o mal que vem”. Em “Sol d’inverno” há uma menção ao “Esqueleto que estás a rir...” e ao “13, diabo, Azar”. Em “Versos para embarcar” o poeta anseia pela viagem (final), ainda que “arriscando na sorte”, só lhe saia o azar, i.e., o Inferno:

É bem possível que eu, arriscando na sorte,
Notasse que por fim só me saía o azar,
E o diabo,e tudo,e o mais, e tudo, e a própria morte, (*)
E ainda tudo, porém, que ânsia de viajar!
---------------
(*) Cf. o polissíndeto

Em “Lied” (que Gonzaga Duque destacou de “Ilusão”) o poeta recomenda, repetidamente, ao cavaleiro andante – “não vás!” (o presságio é mau, pois o cavaleiro galopa “sob estrelas más”). Na “Canção do diabo” a sorte é personificada. Ela é uma prostituta, “mais nua que Laís”, que quis todo o mundo, mas não quis ao poeta. Em “Sombra” assim o poeta dirige-se à amada, que lhe sobrevive:

Hás de ficar aqui, ó frágil criatura,
Atirada aos baldões cruéis da sorte má, (*)
Ora de lá pra cá, ora de cá pra lá...”
---------------
(*) Baldão = “Onda grande e larga”. “Azar, desventura” (dic Aurélio)

Em “Tristeza” há a personificação do mau-agouro, que leva o poeta para os antros infernais. EP se conforma com o seu destino adverso, como ocorrerá também em “Para que todos que eu amo sejam felizes”,  onde o poeta se rende ao destino do artista, destino mais ingrato com este do que com as outras pessoas:

Eu sei que meu destino é como aquela espada
De Breno a reluzir sobre minha cabeça,

 (Breno é o chefe militar que, cerca do ano 390 a. C., lançou a sua espada sobre a balança onde se pesava o ouro com que os romanos derrotados pagariam pela partida dos gauleses, exclamando “Vae victis!” – “Ai dos vencidos!”4. Também o destino exige um “resgate adicional” dos artistas...).

O poeta adota então uma postura fatalista:

Tudo que vier é bom: é porque eu merecia. 

 “Azar” é sobre um Cavaleiro que chega e só anuncia notícias ruins para o Rei, tanto relativas à sua família (a filha está cega; a Rainha fugiu com um vassalo; as noras  mataram os maridos) quanto ao seu reino (as pragas, seca e peste, atingem o reino; a frota perdeu-se em alto-mar; os exércitos morreram lutando; a plebe está insurgente; os criados saqueiam o palácio). Depois, o Cavaleiro segue adiante, para   pregar  “a Doença, a Noite, o Frio” em outro reino.

A figura do Cavaleiro, que é recorrente, aparece aqui em primeiro plano, tendo como contraponto a do Rei. Mas o poema contém uma dubiedade quanto à participação deste último personagem, pois ora sugere que o Rei é o interlocutor direto do Cavaleiro, ora o Rei é tratado na terceira pessoa, como um morto, após o seu envenenamento. Ou seja, EP quebra a unidade de interlocução ao longo do poema. Este é composto de cinquenta versos, sob a forma de dísticos, e inicia assim:

A galope, a galope, o Cavaleiro chega:
-- Rei, ó meu bom senhor! com tua filha cega.

-- Hoje, teu advinho assim traçou no ar:
A frota d’El Rei perdeu-se no alto mar!

Depois do poeta sugerir o seu envenenamento, vem

Ó ventos! ó corvos! que estais grasnando no ar!
Eis o cadáver do bom Rei de Baltazar!

Dlom! dlem! Dlom! dlem! Ouve, bom Rei, de serro a
                                                                 serro,
Os sinos dobram, ai! dobram por teu enterro.   

Assim, ao Rei é atribuído um nome, o mesmo de um dos três Reis Magos. Há, certamente, sugestão esotérica -- como há na “Divina Comédia” -- na evocação (no caso, implícita) desse número e na menção explícita às “três donzelas”, que vêm dar notícia ao Rei de que os filhos dele foram mortos pelas esposas. Da mesma forma, o número treze é referido em

O povo reza, que doçura! É bom que reze!
Pela tua alma... Já são horas...Quantas? ...Treze

Por outro lado, os dísticos que iniciam com as palavras onomatopeicas semelhantes ao som dos sinos dobrando lembram a citação famosa de John Donne (“And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee”).

A desgraça do Rei é tanta  que prossegue mesmo depois dele morto, o que acentua sua intensidade dramática, e o caráter expressionista do poema, que adquire um tom sarcástico:

Dlom! dlem! dlom! dlem! Bom Rei, teus ossos não são
                                                                       teus
Nem o teu trono é teu! Louvado seja Deus!

Nem a tua alma é tua, ó Rei, depois de morto,
Pois demônios estão dançando num pé torto!    

Segundo o poema, todos são amaldiçoados (pela sorte), tanto quem é Rei, como quem não o é (cf. semelhança com as idéias de “Vencidos”):

Maldito seja quem trono nem reino tem!
Maldito seja o Rei! Maldito seja! Amém!

Esses versos (vv.23-4) são repetidos no final (vv. 47-8), antes da afirmativa de que o Cavaleiro vai partir para outro reino, para pregar “a Doença, a Noite, o Frio” (como fez com o que acaba de deixar).
O Cavaleiro assim é o mensageiro da desgraça, ou a personificação do azar, título do poema. A figura do cavaleiro tem aqui um significado diferente ao dos poemas em que se identifica com o cavaleiro andante dos tempos medievais, e com o artista. Em “Ideal!”, tal figura é identificada com o próprio poeta; em “Cavaleiro” é a personificação da juventude sonhadora. Guarda semelhança, contudo, com o sinistro cavaleiro de “Canção”, que retorna da guerra para matar Guiomar.        
Também “plumas”, “broquéis” etc referem-se ao Rei, e não possuem o sentido que possuem em outros poemas, associados ao cavaleiro-artista. Aqui o Rei representa todo o reino, toda a sua população, e ambos (o rei e os súditos) estão sujeitos à má sorte.
Devo ressaltar ainda a citação de muitos animais ao longo do poema, que sugerem a influência exercida por forças irracionais, misteriosas, no seu enredo. Além disso, cumprem diferentes funções nos versos, ilustrando respectivamente 1) a deslealdade da Rainha e do vassalo (cf. referência ao canto do galo: este, nos Evangelhos, é associado à negação de Pedro); 2) o heroísmo dos combatentes (comparados com leões); 3) uma das pragas (a de gafanhotos); 4) o uivar da plebe insurgente (lobos); 5) a derrota do Rei (diadema, cetro etc “sob a pata dos corcéis”) e 6) os inimigos do Rei, à espera de seus ossos (“cães”), ou do seu cadáver (“corvos”). 

c)     O poeta é Erisicton


O poeta (ou o seu coração, cf. recorrência) é também comparado a esse personagem da mitologia greco-latina que ofendeu Ceres, deusa da agricultura,  cortando árvores do seu  bosque sagrado 5.  Ele foi castigado, por isso, com uma fome tão insaciável, que, para satisfazê-la, vendeu tudo o que tinha, reduzindo-se a “uma extrema penúria”. Depois, vendeu  a própria filha, Metra, e por fim passou a devorar a si mesmo.

Também o poeta tem essa fome insaciável (pela Beleza, pela Glória, identificada com o paraíso celeste), consumindo-se nesse anseio.

Meu coração é como esse infeliz que um dia (1)
Ceres, p’ra o castigar, deu-lhe fome roaz (2)
Deu-lhe uma fome tal que quanto mais comia,
Mas queria comer e não ficava em paz.   
..........................................................
Mas a fome cruel daquele esfaimado
Uivava como os cães, os lobos e os chacais, (3)
Nem bem tinha engolido o último bocado,
Sangrando de desejo, ela pedia mais...  (“A fome de Erisicton”)
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(1)     Cf. a comparação
(2)     Roaz= que rói; voraz (dic Aurélio)
(3)     Cf. a metáfora

O sentido  que  Nestor Vítor dá a esse poema  é  o  da   autodestruição  do artista, decorrente de sua revolta contra o mundo hostil, que o torna “amaldiçoado” e o faz assinar um “pacto com o Inferno”. No comentário, o crítico refere-se aos “versos soberbos” desse “lindo poema” 6.

           
d)     O poeta é um eremita


O isolamento desejado pelo poeta, no mundo dos bárbaros, a fim de voltar-se para as questões fundamentais da existência, deixa-o em condição semelhante à do eremita.

Os sonetos “Solidão I a III, que integram “Ilusão”, intitularam-se inicialmente “Ermitágio”, e foram publicados com esse título na revista “Victrix”, de 1902 (essa revista, com “propósitos de elevado ideal e misticismo”, foi a primeira fundada e dirigida por EP, segundo Cassiana Lacerda Carollo 7). E “SolidãoV intitulou-se anteriormente “O ermitágio”, e assim foi publicado em “Stellario” numa edição  de dezembro de 1905 (cf “Esparsos” em “Ilusão & outros poemas”, op cit, p.206 e nota, na p. 220. Na realidade, não se trata de poema “esparso” pois foi incluído em “Ilusão” com o título de “Solidão V” assim como não são “esparsos” quatro outros poemas que aí constam, uma vez que estão contidos em “Músicas”, o primeiro livro de EP). “Ermitágio” significa o mesmo que “eremitério” (palavra também usada por EP), i.e., o local onde se refugia o eremita. Nos versos de EP, tal local pode ser a torre (de marfim), o castelo, o quarto do poeta ou a pequenina aldeia, habitada por gente muito simples... 

O soneto “O enigma”, por outro lado, é um elogio explícito ao eremita, ao sonhador intrigado com a solução do Mistério, e aí se inclui, naturalmente, o poeta.

Em “Ode à solidão”, o poeta refere-se a si mesmo como “pálido ermitão”.   


e) O poeta é uma criança

A criança, na tradição cristã, é símbolo da inocência, da pureza de espírito, que são atributos também do idealista-sonhador. Nos Evangelhos consta a afirmação de que os seres humanos só serão admitidos no Reino dos Céus se forem semelhantes às crianças...

A criança, em suma, simboliza o bem, e a identificação do poeta com ela,   feita por EP, reforça a tese de que em sua poesia a dimensão estética coincide com a  ética. 
 
            Já citei os versos de “Um violão que chora...III, nos quais ocorre a identificação do poeta com a criança:

O poeta é a eterna criança,
Correndo atrás da ilusão,
Que lhe foge, e ele não cansa
De tanto correr em vão

            A mesma identificação ocorre no v.4 do soneto “Dama”:

E ordena Herodes que degolem os poetas...

            E numa quadra de “Felicidade”, o poeta faz esta comparação:

            E que esperança doce, e que esperança,
            Nunca teve no mundo encanto igual:
            Eu a correr atrás, como criança,
           Dessa, que corre e foge, por meu mal!


f) O poeta como ele mesmo: o sonhador infeliz.


Para EP o artista, ou o poeta, é um ser especial, diferente das outras pessoas, dos bárbaros, rudes e insensíveis.

O poeta é um sonhador, alguém que tem sempre nos olhos a “Quimera” (a Ilusão). Como já mencionei, tudo palpita na natureza com o seu nascimento. Isso mostra como ambos – poeta e natureza – estão unidos:

/.../ tudo palpita, o monte,
O céu, a flor, a luz  /.../

É um barulho de rio, um murmúrio de fonte,
Uma palpitação universal de estrelas;  
..........................................................

Depois,

Chegam os anos e vêm os cabelos brancos...
Todavia, ele só, em pé sobre a montanha,
Inda sonha, inda crê, inda deseja e espera!...
 (“Quando um poeta nasceu...”)

A referência à “montanha”, associada à elevação do espírito, é recorrente nos poemas. Por outro lado, Wilson Martins considera este último um dos “versos lapidares” de EP 8.

 “Punição do herege” é um poema narrativo, sobre um poeta que, em 1713, foi vítima do tribunal da Inquisição, contra quem  “Ninguém ousava erguer os olhos nem a voz.

O poeta é chamado de “um fazedor de castelos no ar” mas “essa águia, que subia...” é malvisto pela Igreja Católica, por ter “gênio” e não ter “fé”, sendo considerado um herege. A certa altura, o poderoso abade Manuel (amante da rainha) diz a Helena, esposa do poeta, “jovem mulher formosíssima”, loura (“Que era como se fosse o aroma de uma rosa,”), a respeito dele:

Simbólico, através do símbolo, porém,
Ele diz o que quer, e à cabeça lhe vem.
É o inimigo, pois, mais duro e mais violento,
Que investe contra nós, porque ele tem talento.
Mas é um doido também, um pobre doido, que  (*)
Não sabe contra quem está lutando, crê...
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(*) Cf. a recorrência de “doido” 

Por aí se vê que mesmo um poeta simbolista pode incomodar o poder estabelecido...
A vida em família (abrangendo o poeta, sua esposa e a velha mãe dele) é descrita com sensibilidade:

Elas metidas em lucubrações tamanhas (1)
Dia e noite a tecer como duas aranhas. (2)
Teciam com amor, com singeleza e com
Arte, o lindo ideal, o lindo puro e bom.(3)
Ele, sempre febril, mas de aspecto risonho,
No mármore do verso ia gravando o sonho...(3) 
Mas com tal limpidez e com graça tal
Como um raio de sol que ferisse um cristal. (2) 
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(1)     Lucubração= “Trabalho prolongado e paciente feito à noite e à luz” (dic Aurélio)
(2)     Cf. a comparação
(3)     Cf. a metáfora

Entretanto, pelas suas características, o artista não é feliz. “A cigarra e a estrela”, -- um poema em dísticos -- trata dessa infelicidade do artista (do poeta, representado pela cigarra, que “canta”).

No bosque uma pobre cigarra vivia,
Cantando, a coitada, de noite e de dia.
Cantava tão cheia de um vivo prazer,
Que feliz não sendo, parecia ser.

Mas, em certa noite, “por desgraça dela”, viu uma estrela (também personificada), e tudo quanto ela vira antes -- tudo o que "Fulgira-lhe aos olhos, como diamantes” --, já não olha mais.

A estrela simboliza uma manifestação superior da beleza, mais elevada do que outras manifestações, da natureza, mencionadas no poema, como “aqueles campos”, “esses vales” etc, i.e. manifestações terrenas da beleza. A beleza da natureza é ofuscada por uma beleza superior.

Dentro desse inseto rude dos pauis, (*)
Houve como um sonho de amplidões azuis...
            ---------------
(*) Pauis= pântanos (dic Aurélio)

Ela fica tão deslumbrada com a estrela que mais parece “um doido perfeito” (cf. a recorrência de “doido” )

E durante a noite pálida, estrelada,
Ambas conversavam, sem dizerem nada. 

(Note-se a linguagem ilógica, própria da poesia, que se diferencia, sob esse aspecto, da prosa).     
            Depois, chega o inverno para hostilizar a cigarra (metáfora do mundo hostil ao artista) em seu relacionamento com a estrela. O inverno ameaça matar a ilusão:

Aparece o inverno, bem como um leão, (1)
Entre as ovelhinhas brancas da ilusão.  (2)
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(1)     Cf. a comparação
(2)     Cf. a metáfora

A imagem das ovelhinhas brancas sugere a geada, ou neve, do inverno que chega (mais indiretamente, sugere também “nuvens”, enquanto “ilusão” lembra o que esta vida é, em face do “outro mundo”).

Mas a cigarra tem a resistência do povo:

Porém a cigarra, como a alma do povo, (*)
Se chorava agora, ria-se de novo.
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(*) Cf. a comparação

e “por mais que a pobre fosse uma infeliz”, seu canto tinha “o colorido
De um amor que sabe que é correspondido...

(correspondido pela estrela, naturalmente, o que versos anteriores põem em dúvida). Para a cigarra, não importa que isso seja ilusão, que “Tudo quanto via fosse apenas sonho”,
ela continuará  a sonhar (cantar), embora

/.../ encerrada dentro do pesar
Como numa torre, sem poder voar; (*)
---------------
(*) Cf. a comparação

E EP conclui elogiando a fome insaciável dos artistas pela beleza:

Porém que loucura mais rara e mais bela
Do que esse delírio de amar uma estrela?
(“A cigarra e a estrela”)  
           
Esse poema data de 1907, e revela alguma influência do soneto famoso de Olavo Bilac que começa com “Ora (direis) ouvir estrelas”, integrante do volume intitulado “Poesias”, de 1888.

Segundo Andrade Muricy, em seu livro de memórias, o poema foi inspirado por Hortênsia do Rio Branco, filha do Barão, que nos visitou por essa época representando seu pai, nas homenagens que o Estado lhe fazia pela recuperação do território das Missões. Hortênsia, de refinada educação, teria despertado no poeta provinciano uma paixão efêmera....9
            Também na “Canção do diabo”,  formada por trinta e uma quadras, em vinte e cinco das quais Lúcifer fala, a condição deplorável do artista é caracterizada. Em seu quarto, sozinho, à noite, o poeta está “a ruminar” “O tédio amargo, o atroz pesar”:

            Eu meditava quanto a vida
            Me foi cruel, me foi cruel:
            Supus que fosse uma bebida
Doce, mas foi veneno e fel!
E sobretudo que ato breve
Dessa tragédia para rir...  (*) 
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(*) Cf. a metáfora da vida, considerada sarcasticamente

Satã fala da “primavera” que fugiu dele (i.e., a mocidade), assim como os “sonhos”, “o céu”, o “próprio Deus”, a “sorte” e as “damas”:

A sorte, mesmo, a prostituta,
Inda mais nua que Laís (*),
Funambulesco ser, escuta,
Quis todo mundo; e a ti não quis. 
O seio abriu, que tanto exala,
Ao proxeneta, e ao ladrão;
A ti, porém, indo beijá-la,
A fêmea torpe riu-se: não!
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(*) Laís= nome de cortesã grega (“Petit Larousse”)

Com relação às damas, Satã as menciona nesta quadra, de comparação pouco comum, que deve ter causado muita estranheza na época:

As damas, bem como um cavalo,
Sobre esse coração d’abril,
Passaram, quase sem olhá-lo,
Nem abraçá-lo, poeta sutil. 

Na poesia de EP ocorrem frequentemente versos estranhos, pois para ele a poesia devia ser única, pessoal, conforme sua crítica aos falsos estetas em “Alegoria”, que consta em sua “Prosa”, op. cit., p.38: “A Poesia? Mas era uma beleza equívoca e banal. O soneto d’um era o soneto de todos.”  Cf. também estes versos finais de “Soneto”, em “Setembro”, que causaram na época admiração pela estranheza, servindo de tema para zombarias, conforme nos informa Andrade Muricy 10. Seria por isso que o poema, datado de 1902, não foi incluído em “Ilusão”?:

Mas nada, nem sequer ao menos, eu, torcido
O tronco nu, o gesto doido, o pé no ar,
Hei de ver Salomé dançar como S. Guido!

(“dança de S.Guido” é, como se sabe, o outro nome da coréia, doença nervosa “que se manifesta por frequentes movimentos convulsivos” (dic Aurélio). EP assim, ludica e modernamente, apega-se à linguagem em si, e explora a imagem contida naquela expressão, relacionando-a à dança de Salomé).

Voltando à “Canção do diabo”, somente Satã entendeu e amou esse “ser infeliz”. Oferece-lhe a sua glória e o elixir da juventude. O poeta então, optando por ele, diz que será seu irmão.
Esse poema inicia referindo-se ao local onde está o poeta: em seu quarto, só, “a ruminar”, enquanto

O vento fora pela noite,
Demônio que blasfema em vão,
Cortava rijo como o açoite
Uivava triste como um cão. (*)
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(*) Cf. as comparações, indicadas por “como”

Essa é uma ambientação semelhante à do soneto “Espectro”, quando também, a certa altura, entra pela porta um visitante sobrenatural.
Em “Canção do diabo” o artista é chamado de “Um anjo mau, anjo revel” pelo arcanjo Lúcifer, que ao entrar no quarto do poeta, à noite, o ilumina todo, “Como se fosse dia”.
            Também “Ode à solidão” reitera, indiretamente, a idéia de que o artista é infeliz, pois a beleza fugidia, efêmera, faz sofrer: 

            É tempo de dizer a tudo quanto passa
                        O meu adeus final,
            Às rosas e aos rosais, à mocidade e à graça,
                        Tudo que me fez mal.

Em “Um violão que chora...” IV, o poeta dirige-se ao seu coração, personificado. Lamenta que a sua união com ele cause sofrimento a ambos. Propõe, no final, a separação.

A mesma idéia de separação entre o poeta e o seu coração vai ocorrer em “Bruxa”, estrofe 7, e seguintes. EP, como Pascal, autor da célebre frase “Le coeur a ses raisons que la raison ne connait point”, separa o coração da razão (o coração, no caso, seria a sede fictícia da capacidade de sentir).  Em EP, o coração sempre prevalece sobre a razão. Ele desconfia da Ciência e recusa a visão positivista do mundo ...

Esta é a primeira estrofe de “Um violão que chora...IV, que mostra o coração do poeta ambicionando demais e contribuindo, por isso, para a sua infelicidade:

Tantos bens ambicionei,
Que por mal dos meus pecados,
Nunca os vi realizados,
E talvez nunca os verei.
Que, ó meu passarinho verde,
Tanto quisestes e eu fiz,
Que, como por lá se diz,
Quem muito quer, muito perde...

EP o chama aqui de “passarinho verde”, metáfora originada numa expressão coloquial (“ver passarinho verde”) de sentido sugestivo, relacionado a uma  disposição de espírito contente e esperançosa dos enamorados... Luís da Câmara Cascudo registra a origem dessa expressão em seu livro -- “Locuções Tradicionais no Brasil”.  

No poema seguinte da série, “Um violão que chora...V, o poeta continua a dirigir-se ao seu coração, personificado. Tarde da noite, ele se debruça sobre a janela, enquanto um “violão suspira” e a “flauta chora”.  Está totalmente decepcionado com a vida, sente-se um “pobre grão d’areia” no “vasto mar”, de quem ninguém se lembrará no futuro:
            .................................
            A tua vida é morta,
            Ó pobre coração,
            A ti que bem te importa
            Que alguém soluce ou não!
            .................................
            Tu os ouvidos fecha,
            E a tua porta; a ti
            Que importa a flor que ri,
            Que importa aquela queixa? 

Quando se está morto, não importa a dor dos outros (a expressão artística dessa dor é representada pelos dois instrumentos musicais citados, que “suspiram” ou “choram”). O artista hipersensível condoeu-se tanto, sofreu tanto, que tem por ideal essa indiferença (jamais conseguida) aos dramas alheios, e à arte ...  
           
Em “Um violão que chora...” VII, mais uma vez o coração do artista é personificado. O poeta é o confidente desse “pobre Aflito” (cf. ocorrência dos ii, associados ao vermelho do sangue, conforme o verso citado mais adiante):

Pobre meu coração, aqui no meu ouvido, (*)
Conta-me tudo, vá, porém baixinho, assim, 
Ó pobre Aflito, que tens subido e descido
Tantas vezes a Dor, uma montanha, enfim!
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(*) Trocadilho com “olvido”   

Ele está cansado, e esteve há pouco extraviado,

A mão furada, o pé descalço, e perseguido;

o que sugere a figura de Cristo, em sua paixão. Isso desperta pena no poeta, que sabe do

/.../ sangue que rolou,
Tão grande que inundou quase a cidade inteira... (*)
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(*) Cf. a hipérbole

            No final, o poeta pergunta a esse “Voluptuoso” o que mais ele quer, se “tudo se acabou”, e não há mais “plumas” nem “flores”, i.e., não há mais cavaleiros nem damas (ideais) por quem lutar: os tempos atuais não são os (miticamente) heroicos do passado. 

            Em “Bruxa” -- poema narrativo -- está presente essa personagem que detém um saber não-científico, associado ao sobrenatural. O poeta frustrou-se em alcançar o que a bruxa lhe prometeu, quando menino:

            Espera e crê. Serás feliz,
            Muito feliz! Tem esperança!

            Sua sorte será ainda mais bela do que a “noite imensa, infindos céus”. Ele seria “um deus”. Mas:
            Os anos têm-se sucedido
            Numerosíssimos, porém,
            Cada vez mais surpreendido,
            Espero o bem e é o mal que vem.

            Todavia, seu coração continua “a correr” “atrás dessa esperança.” O artista, como está implícito, em “O meu orgulho levantou-me”, só pode viver com a crença de que alcançará a glória, a autorrealização pessoal, a comunhão com o Sublime e o Inexpressível (cf. o capítulo 3.1).   

Ao fazer o elogio da vida simples, de aldeia, o poeta inveja a sorte do homem do moinho, num soneto de marcante sabor lusitano ou ibérico (cf. referências ao “fado” e à “cornamusa”, ou gaita galega), que revela  forte influência da poesia portuguesa (EP está consciente disso, assim como o está com relação à influência francesa, homenageando, por exemplo, Baudelaire em muitos poemas, pela escolha dos mesmos temas- cf. “Embarque para Citera”, “Canção do diabo”, poemas sobre o próprio poeta, sobre o tédio, o vinho etc):

Eu não seria mais do que um moleiro.
Ocupado, ocupado, o dia inteiro, (*)
Sem ambições jamais do que não vi.
Nem cornamusa alegre de pastores,
Nada! Nem tudo me seriam flores...
Mas quem me dera não sair dali! (“Solidão” I)
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(*) Cf. a repetição de “ocupado”, para enfatizar a azáfama

            Em outro poema, o poeta inveja a sorte de um velhinho muito pobre, que nada tem e nada sabe, despido da Ilusão:

Aquele que ali vai nesse caminho,
Todo despido, todo, da Ilusão,
Não tem um manto, o pobre, não tem linho,
Não tem mulher, não tem sequer irmão.
É mais pobre que Jó , o pobrezinho,
De seu não tem, senão esse bastão,
....................................................... (“Solidão” III)

Note-se, em todo o soneto, a importância da repetição de palavras para a obtenção do ritmo desejado, assim como a repetição de sons – rimas internas – do último verso citado.

O poeta também desejaria ser um simples lavrador. Após um árduo dia de trabalho, desejaria

Entrar em casa, a mesa posta, os seus
Em derredor, a consciência em paz,
E tudo em paz, louvado seja Deus!  (“Solidão” IV)

Nesse poema, a noite que chega é “dum roxo frio de lilás”, ocorrendo aí, de novo, a sinestesia. “Frio”, evocando uma impressão sensorial, sugere a morte (também a cor referida). Trata-se da morte do dia, mas não só dele. Os versos passam a sensação da perda de uma ordem que havia no passado, talvez na infância do poeta, quando ele ainda não desejava o impossível, ou quando havia certezas no mundo, decorrentes da crença religiosa. 

         Para concluir, ressalte-se que esse poema, como “Flora” e alguns outros, é descritivamente pictórico. Aproxima-se da pintura com palavras.


3.3.3- O MUNDO É DOS BÁRBAROS


Como vimos, o soneto “Dama”, já comentado, inicia assim:

A noite em claro, o mundo inóspito, e dessa arte
Urdem contra a Beleza as coisas mais abjetas...
Reina o Pesar, mas como um Rei, por toda parte;
E ordena Herodes que degolem os poetas...

Para EP, os poetas vivem num “mundo inóspito”, cujas cabeças são pedidas pelos detentores do poder (“Herodes”). Esse é o mundo dos inimigos da beleza e do ideal, contra quem os artistas lutam. É o mundo dos “bárbaros” (por quem EP tem o maior desprezo), dos “abutres e chacais”, mencionados no poema “Solidão” (o “chacal” não é uma espécie animal americana, mas EP não se importa com isso. Para ele, o que interessa é o significado simbólico do animal. O mesmo ocorre com a hiena, citada em  “Esse perfume”).

Abaixo dos dísticos de “Versos de outrora”, EP não escreveu a data e sim— “Num País de Bárbaros”. Essa é a expressão que ele usa para qualquer lugar, aqui ou alhures (para o Paraná ou Minas Gerais, onde viveu por algum tempo)11 em que as coisas do espírito não são valorizadas o bastante (diferentemente da França ou Europa, mitificadas, dos seus sonhos). No País de Bárbaros, nem a infância é boa (cf. v.2 de “Versos de outrora”). Quando o poeta é alegre ou sincero, chamam-no de louco. As amadas (Ema ou Ester) o desprezam e ele é chamado de imoral por querer a nudez na arte. 

O poeta frustrou-se quando foi sincero. O mundo dos bárbaros é o mundo da falsidade, da hipocrisia.  Em “SolidãoV,  EP afirma:

O meu lugar não é no meio de vocês
Homens rudes e maus, de semblante risonho.
Não é no meio de tamanha insipidez,
Dum egoísmo atroz, dum orgulho medonho!

Esses homens são “rudes”, i.e. insensíveis à Arte. São “maus”, mas apresentam “semblante risonho”, vale dizer, dissimulam seus verdadeiros sentimentos na falsidade do semblante. Por outro lado, a sinceridade do poeta é reafirmada em “Um violão que chora...” IV,  quando ele diz, dirigindo-se ao seu coração, que lhe causa sofrimento:

Eu peco por ser sincero,
E vós por não terdes leis,

Também em “Soneto”, o albergue em que o poeta vai dormir “É o covil da traição que envenena e apunhala...

Predomina no mundo dos bárbaros a insipidez (porque eles são insensíveis às coisas belas), o egoísmo e o orgulho, o que significa que EP valoriza eticamente, por oposição, a generosidade e a humildade, além da  sinceridade antes referida.    

Chamaram o poeta de imoral pela sensualidade erótica de seus versos.  Assim, a hipocrisia também se expressa pelo puritanismo, quando criticam o que consideram imoralidade. O mesmo sujeito que chamava o artista de imoral devia ser aquele que frequentava os bordéis, comuns na época. Aliás, na poesia de EP há referências a prostitutas (cf. “Borboleta”  e “Outro soneto de D.Juan”), lupanar (“Ovídio”) e prostíbulo (“Heliogábalo”). 

Os bárbaros são os senhores desse mundo hostil ao artista, ou a qualquer sonhador, que nele está condenado previamente (cf. “A cigarra e a estrela”). Os bárbaros dominam a realidade presente, objeto da crítica do poeta, uma realidade em que não tem vez a beleza, a justiça, a sinceridade, a generosidade, a humildade, o amor, enfim.  Essa é uma “época sem luz que não sabe o que quer./ Não sabe nada;” (”Donzelas). Em “Justiça”,  o poeta, com a espada em punho, chama a si, para o combate, os homens de sua época, “Cegos e surdos que não querem ouvir nada ...”

Quando o amigo Cruz e Sousa morreu, em 1898, EP escreveu uma crônica em que diz, a certa altura:

A cor negra, o talento, a impressionabilidade doentia e o orgulho haviam-no isolado da Multidão. E o pouco de convivência que ele teve com os bárbaros, forçado pelas contingências da vida, só lhe trouxe amarguras sem nome. 12 

Em “Um violão que chora...VI o poeta, em perigo, no mar, invocou a proteção de Sant’Ana, e se salvou; mas como em terra sofreu tantos males (“danos”, “tristeza”, “revés”, “fúria”, “guerra”, “Desenganos”) pensa que seria melhor não ter sido salvo  (o mundo dos bárbaros é o mundo de tais males).  Sant’Ana, para ele, é a

Mãe dos pobres pescadores,
Dos que vivem a pescar
Os enganos e as dores,
Por essas ondas do mar...

(Note-se o trocadilho com “pescadores”)
   
 Em “Vencidos”, como já assinalei, há uma oposição entre os “grandes” e os poetas, ambos condenados a perecer. Mas os “grandes”, um dia, hão de “rolar dos palácios infetos”, para a satisfação do poeta, que se regozija com a sua queda, e com a “fome dos vermes concupiscentes”, identificando assim claramente quem são os seus inimigos. 

Por outro lado, a gente simples, pobre, desperta nele enorme simpatia -- cf. poemas de “SolidãoI a IV.  Ele desejaria mesmo ser como essa gente simples, que não tem ilusão; sofreria menos (o artista é infeliz) se não estivesse permanentemente voltado para o sonho, se só tivesse preocupações práticas, como o moleiro ou o lavrador mencionados naqueles poemas. No soneto  “SolidãoII, o poeta se rejubila em interromper a sua “viagem” (metáfora da vida) pois descobriu, “por felicidade”, um local onde vive gente muito simples, em que ele também gostaria de morar (então “fecharia a porta” ao “Orgulho” e à “Vaidade”, aquele identificado com o lobo, pois “uiva”, e esta, personificada):

Oh! esquisita flor que se descobre: (*)
De viver entre os pobres como um Pobre,
Entre os humildes como Jesus Cristo!
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(*) A palavra “esquisito(a)”, recorrente na poesia de EP, relaciona-se, como vimos, ao francês “exquis” que, segundo os dicionários, significa “delicado”, “refinado, “delicioso”.  

Em um dos melhores poemas de EP, “Setembro”, de 1916, também há referências elogiosas ao lavrador, e à natureza (a condenação à guerra aqui não é mero expediente retórico, mas tem um significado bem concreto, pois a 1a. Grande Guerra estava em andamento):

Vestido de aldeão, com o meu chapéu de palha,
Eu vi quanto era bom um homem que trabalha.

Deslizando através desses caminhos todos
Eu pude ver também como os homens são doudos.

E no meio banal dessa rusticidade
Quanto o campo é melhor, mil vezes, que a cidade.

E tudo mais sincero, essa flor que se admira, (*)
Essa água que se bebe, esse ar que se respira...

Tudo mais natural, e mais perfeito, tudo:
..................................................................................
Bendita seja a paz! Maldita seja a guerra!
Bendito sejas tu, ó lavrador da terra,

Que desde o alvorecer da luz, até o sol posto,
Amassas o teu pão, com o suor de teu rosto!”
---------------
(*) Note-se a recorrência da personificação dos elementos da natureza, que são “sinceros”

Também na bela “Oração da Noite”, incluída no livro póstumo “Setembro” (e musicada por Brasílio Itiberê II), o poeta chama Maria, “sua filha”, para rezar por todos os lutadores “Que andam de arado em punho e de enxada na mão”.

Como resultado da constatação do mundo hostil, dominado pelos bárbaros, o poeta quer isolar-se dele. Por isso, faz o elogio da solidão.

Em “Solidão”, poema em dísticos, esta é personificada. O poeta afirma que sempre quis bem à Solidão; para os outros ela causava medo, para ele alegria;   mas ela não foi dele, nem ele foi dela; contudo eles ainda pertencerão um ao outro, conforme estas metáforas que só envolvem animais:

s fugiremos, pombos ideais,
Longe destes abutres e chacais,

O poder espiritualizador da solidão é elogiado no final do poema:

Ó doce paz, o meu doirado asilo,
De um azul melancólico e tranquilo, (*)

Ó ilusão, ó mãe das ilusões,
Filosofias e religiões,

Mãe de tudo que é belo e que irradia,
Mãe do Silêncio e da Sabedoria! 
---------------
(*) Observe-se o contraste das cores (doirado x azul)

Solidão, Soledade, Silêncio, Sabedoria estão intimamente associadas. É recorrente a associação de Solidão com Silêncio. Por exemplo, em “SolidãoVI . O Silêncio aí é identificado com Apolo – deus das belas-artes, da música e da poesia, enquanto a Solidão, nos versos abaixo que contêm um polissíndeto, é identificada com Vênus—deusa do amor e da beleza: 13

E tem a graça, e o gesto, e o beijo, e o colo
De Vênus Afrodita – a Solidão!” 

Os sons sibilantes ocupam um lugar muito importante na sonoridade dos versos de “Solidão” (naqueles citados acima, tais sons estão destacados em negrito).  EP refere-se aí ao seu “doirado asilo”. Ele busca refúgio na vida de sonho, voltada para a Beleza, isolando-se na “torre de marfim”, que é a sua forma de expressar toda a sua aversão a uma realidade que não lhe agrada.

A expressão “torre de marfim” consiste numa “loa da ladainha lauretana de Nossa Senhora” conforme o Glossário contido no “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, v. III, de Andrade Muricy, que afirma a propósito:

Apesar de os simbolistas não abstraírem dos interesses humanos, na sua ’turris eburnea’, a expressão, hoje, é empregada na acepção restritiva de arte egoisticamente subjetiva 14.

Por outro lado, o “Dicionário de Termos Literários”, de Massaud Moisés, afirma que se trata de

Expressão bíblica (“Cântico dos Cânticos”, 7:4) posta em uso literariamente por Sainte-Beuve, em 1835, para designar a atitude quimérica, aristocrática, idealista, egocêntrica e  melancólica de certos poetas /.../ 15.

A realidade presente é a da miséria (ética e estética), que lhe causa horror, conforme o soneto “Orgulho”. Tal realidade também é expressa pela metáfora da “ferida”:

Nasci para viver no meio do que é belo.
A miséria me causa um horror sem igual.
Eu não posso tocar de leve com o escalpelo
Numa ferida, sem que isso me faça mal.

Nasci para viver no meio d’um castelo,
Onde eu domine, mas com um gesto senhorial.
Não quero conhecer o mal, não quero vê-lo;
O manto dum artista é um manto imperial.


Embora EP adote uma postura altiva, aristocrática, imperial nesses versos, a predisposição natural do seu espírito é a “Piedade”, o “chorar de dor”, o “pesar” (por tal mundo) que lhe invade o coração, expressões empregadas no primeiro terceto desse mesmo soneto.

Sua preocupação maior aqui é, naturalmente, de ordem estética. Adotando essa postura aristocrática, ele enfatiza o seu desprezo pela realidade dos bárbaros, num mecanismo psicológico de compensação, resultante do menosprezo que essa mesma realidade devota aos ideais que persegue. 

A menção a “castelo”, nos versos acima, sugere a “torre de marfim”, pois o artista refugia-se no mundo do sonho ao constatar essa realidade brutal. Esse mundo é o da dedicação à arte – da sua fruição, ou criação – em oposição ao das atividades insípidas, prosaicas, dos bárbaros, atividades essas voltadas para a  busca obsessiva do dinheiro, ou para o exercício de seu poder, desvirtuador das relações humanas.

Entretanto, os versos de “SolidãoV, em sua bela concepção plástica, não sugerem um plácido isolamento, mas um cenário de combate, e mostra o poeta isolado em seu castelo em ruínas, como um sobrevivente da boa luta:

Oh! para que sair do fundo deste sonho,
Que o destino me deu, e que a Vida me fez, (1)
Se eu quando, a meu pesar, casualmente, ponho
Fora os pés, a tremer, volvo, ansiado, outra vez.

5          O meu lugar não é no meio de vocês,              
Homens rudes e maus, de semblante risonho,
Não é no meio de tamanha insipidez,
Dum egoísmo atroz, dum orgulho medonho!

O meu lugar é aqui, no seio desta ruína, (2)
10        Destes escombros, que reluzem como lanças, (3)
E destes torreões, que a febre inda ilumina! (2)

Sim, é insulado, aqui,  no cimo, bem o sei!
Entre os abutres e entre as Desesperanças,
E dentro deste horror sombrio, como um Rei! (3)
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(1) Cf. a personificação
(2) Cf. a metáfora. Torreão= “Torre larga e ameada, sobre um castelo” (dic Aurélio)
(3) Cf. a comparação

Já comentei o segundo quarteto desse soneto anteriormente, a propósito da falsidade, e outros aspectos negativos, da realidade dos bárbaros. Também já me referi antes aos “abutres” e ao “clima” de combate (pela Beleza e pelo Ideal) que os versos sugerem.

Acrescento agora que a “febre “ do artista é fonte de luz, pois “ilumina” os torreões, conforme a metáfora do v. 11. Note-se também a comparação dos escombros reluzindo “como lanças”, a arma do artista-combatente.       

Quanto ao aspecto formal do poema, destaque-se a sua musicalidade, decorrente da presença de rimas internas (“pesar”/ “lugar”; “meio”/ “seio”), da repetição de palavras (“que”, “aqui”, ”entre”) e expressões (“o meu lugar” e “não é no meio”, anáforas) e ainda da assonância do v. 12.

Em “Ideal!”, dentre as diversas metáforas a ele associadas constam estas: “Torre d’oiro da minha Fé! (...) Turris eburnea!” (ebúrneo= de marfim). Em “Espectro”, o quarto – refúgio do poeta na noite hostil – equivale à torre de marfim. A hostilidade da natureza (a noite “gelada”, o vento rugindo, a chuva batendo “desesperada” nos vitrais) assume um caráter simbólico, representando a própria hostilidade do mundo dominado pelos bárbaros.

Mas a solidão (o isolamento do artista) nem sempre é elogiada. Em “Soneto”, o poeta afirma:

Eu não tenho por mim ninguém, não tenho nada.
Tenho a noite, este horror, esta cruel quimera,
A minha solidão, que a mim me desespera,
E o vento a soluçar, e a túnica gelada...

O vocábulo “gelada” intensifica a sensação de desamparo, de solidão; por outro lado, a repetição de palavras nessa estrofe -- que também ocorre em outras, do poema – é importante para a definição de seu ritmo.

Em “Sol d’inverno”, o doente de hospital, quando o sol parte, sente frio e solidão: “Frio, frio!... (Que é de um Amigo?)”  

Os versos abaixo mostram que EP não pôde viver em solidão, apesar de ter optado por isolar-se na província (esses versos provêm de “Solidão”, poema em que os sons sibilantes têm muita importância, como já assinalei):

E era, bem compreendo, era no meio
Desse florido e aveludado seio,
          
Que eu devera passar a vida, e não
Como a passei, aqui, ó Solidão,

Entre enganos cruéis e desenganos,
Dias e dias e anos e anos!  

Uma outra faceta da crítica ao mundo dos bárbaros consiste na idealização do passado, que adquire caráter mítico (não é por acaso que há tantas referências medievais nesses poemas):

Os tempos não são mais de dança nem de lança, (1)
E o mundo vai talvez ainda pior do que eu
Supunha: todos nós perdemos a esperança,
É o naufrágio, e este horror, e tudo pereceu...(2)  (“Justiça”)
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(1) Tempos de dança e lança = tempos heróicos; cf. a rima interna
(2) Cf. a metáfora: situação do mundo = naufrágio

Mais adiante, nesse mesmo poema, ele faz uma comparação antissemita (apesar de EP ser filho de “cristão novo”), quando se refere a este mal “duro como um judeu”.

O lodo, a lama são os símbolos deste mundo, o da matéria, em contraposição às estrelas, aos astros, símbolos de um outro mundo, o do espírito, que para ele é o único que importa. 

A mão...” se refere ao mundo em que o poeta vive, identificado com o mal, e dele é salvo pela Mão Ideal e branca:

Babilônias de horror, e montanhas de lodo,
E torres de Babel, sangrentas como lava, (*)
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(*) Cf. a comparação e metáfora

Babilônia e torre de Babel -- aqui empregadas no plural, como substantivo comum --, remetem-nos ao seu significado bíblico. Babilônia é a cidade do diabo, por oposição a Jerusalém, cidade de Deus, conforme  o  Livro da  Revelação. 16  Por outro lado, Babel é a palavra hebraica para Babilônia. 17 A torre de Babel é o símbolo da presunção ou orgulho do homem, e está associada à confusão dos espíritos, uma vez que é a explicação mítica para a diversidade das línguas no mundo.

    Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!” I  inicia caracterizando  este mundo

Sangue e lodo
E podridão
O mundo torcia-se todo (*)
No meio da imundície e da dissolução...
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(*) Notar que a expressão “torcia-se” sugere a imagem de um verme  

Ouviam-se também aí “Os uivos tristes da ferocidade”. No meio dessa “escuridão”, “andavam todos de rastros”. Mas as “Almas sentimentais” (cf. as metáforas)

Misérrimos galés (*)
Dessas prisões da Vida,
Imundas enxovias,
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(*) Galés=indivíduos sentenciados a trabalhos forçados (em “Punição do herege”, o poeta, posto no calabouço -- aqui, “enxovia” -- pela Inquisição, está com os pés “Algemados, assim como os pobres galés...”)

anseiam por uma saída:

E no meio da mágoa que sobrevinha,
Os corações se abriam de repente,
Como janelas se abrem à noitinha, (*)
Silenciosamente,
Na esperança de ver bruxulear,
De longe, embora, ao menos,
Mais doce do que Vênus, (*)
A luz crepuscular... 
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(*) Cf. a comparação e metáfora

Eles anseiam pelo outro mundo, por ascender espiritualmente (subir a montanha). Embora EP adote uma postura metafísica, transcendente -- expressa pela oposição mundo atual x outro mundo -- a perversidade do mundo em que ele vive tem causas bem objetivas, imanentes, nas quais os bárbaros, certamente, desempenham um papel importante ... (pois quem pratica a “carnificina”, os “crimes mais vis” que ele menciona, quem concebe a vida apenas como sinônimo de mulheres e bebidas, sem “passar além daquele bacanal”, quem faz de “Messalina” a “imperatriz”?) 

Essa realidade atual do mundo recebe a sua crítica feroz, em termos simbólicos:

O mundo quase que a rolar de podre,
O mundo todo cheio de piolhos,
Transbordando de vinho como um odre,
Coberto de gafeira até os olhos,(*)
(“Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!”, II)
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(*) Gafeira = sarna de cão


Na parte III desse mesmo poema (um “tríptico de Natal”, na expressão de Andrade Muricy), o poeta, para evoluir espiritualmente, deve vencer seus pecados e arrastar “na lama o manto de veludo”, i.e., sujar as mãos (como na peça de Sartre), envolvendo-se nas coisas terrenas, ou seja, empenhando-se no bom combate, agora com ênfase maior nas questões éticas.

            O poema II de “Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!” explora o mito cristão do Natal, em que o nascimento de Cristo simboliza o ideal, a salvação, a saída, para o mundo degradado que EP caracterizou antes, no poema I.

Mas Cristo não é mencionado explicitamente. São mencionados apenas Belém e um brilho no céu à noite, uma luz que aumenta continuamente, fazendo com que o pastor saia correndo atrás dela. Também correm certos elementos da natureza, conforme estes versos insólitos:

Vendo-o partir, os vales e as montanhas,
Ó que suave música falaz! (*)
E as árvores e as flores mais estranhas,
Tudo saiu logo correndo atrás ...
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(*) Falaz= enganadora; enganosa, quimérica (dic Aurélio)

            Essa luz arrebata a todos, opera milagres. A noite fica cada vez mais clara. O pastor

            Dentro daquela túnica estrelada,
            Da túnica de prata do ideal,
            Ia sorrindo sem pensar em nada,
Sem se lembrar do bem e nem do mal...

A convicção da superioridade de seu espírito (espírito do idealista/artista) o robustece no confronto com as adversidades (= o mundo dos bárbaros):

Podiam atirá-lo sobre brasas,
Às bestas-feras, aos leões, dum salto; 
Que lhe importava, se agarrado às asas, (*)
Ele voava cada vez mais alto?
....................
Que lhe importava a lama e o ódio profundo,
Com que o feriam, se ele tinha fé,
Se ele sabia desprezar o mundo,
Se ele, caindo, ia cair em pé?...
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(*) Cf. a metáfora

O desprezo pelo mundo é, a rigor, por um certo tipo de mundo, aquele criado pelos bárbaros, o mundo do sangue (carnificina, crimes, i.e. da violência), da ferocidade, da imundície e da devassidão, conforme os versos já citados (poema I).

            Os idealistas/ artistas -- representados pela figura do pastor, que veste a “túnica estrelada”, a “túnica de prata do ideal” -- sabem que estão condenados previamente no mundo dos bárbaros. Todavia, eles cairão aí “em pé” (note-se que em ”Cavaleiro” a imagem da “túnica” tem a mesma conotação).

            A exploração do tema natalino não significa necessariamente opção pelo Cristianismo. O que EP faz é aproveitar o mito cristão do Natal, assim como ele aproveita temas da mitologia greco-latina, da Bíblia ou da literatura universal (D.Juan) para servir aos seus propósitos. Esses propósitos estão relacionados, nesse poema, à concepção de que a opção pelo Ideal, pela Arte, pelo Sonho, é a saída para o mundo degradado em que vivemos.

Também quando EP identifica o Ideal com o mito bíblico da Arca de Noé (cf. “Ideal”) tem em mente essa idéia de salvação.   
 
Por outro lado, no soneto “Graças te rendo...”, há uma convivência explícita da mitologia clássica com a cristã, quando o poeta dirige-se a uma “preciosa Senhora” (que, pela linguagem, lembra a Nossa Senhora dos católicos, a qual possui o dom de elevá-lo espiritualmente) mas invoca os “deuses” no v. 10. No belo terceto final, reaparecem os símbolos do mal, ou desta realidade que lhe repugna (lama, víboras, espinhos):

Que onde fores pisar, que por onde tu fores:
A lama se transforme em pétalas de rosa,
As víboras em fruto, os espinhos em flores!

Aliás, ocorre com certa frequência, nos poemas de “Ilusão”, o uso de linguagem religiosa (“hissope”,“estamenha”, “sobrepeliz” etc), inclusive expressões da ladainha de Nossa Senhora (Regina Coelorum, Mater Dolorosa, e outras).

EP expressa otimismo em “Graças te rendo...”, pois essa “preciosa Senhora” faz o poeta acreditar que o coração humano “veste” (cf. a metáfora) não o lodo mas “O linho que fulgura em pleno azul-celeste...” 

Também em “Metamorfoses” ele é otimista, embora critique a miséria -- física e moral -- de sua época. EP demonstra aqui preocupação social, ao contrário do que se poderia pensar de um poeta “torre de marfim”:

Sei que há nudez e sei que há muito frio, (*)
E uma voracidade horrível, um furor
Tão desmedido que, quando eu acaso rio,
Quantos não estarão torcendo-se de dor.
---------------
(*) Cf. a anáfora: repetição de “sei que”

Ele sabe também que há de encontrar o “ódio sombrio” aonde quer que vá, comparado a um escaravelho, enodoando “até o seio de uma flor.” Mas o poeta confia na evolução:

/.../ havemos de subir montanhas e montanhas,
/.../ a Natureza avança e o Homem faz-se luz ...”

A Vida, comparada ao Sol (por sua vez, identificado com “um alquimista louro”)

Tem o dom de poder mudar a lama em ouro,
E em límpidos cristais esses rochedos nus!” 

Em “Metamorfoses” ocorrem palavras que, pelo contexto em que são empregadas, nos diversos poemas, adquirem a condição de símbolos. Citam-se aqui: “flor”- tudo que é belo, delicado (a mulher é, frequentemente, comparada á flor); “montanha”- símbolo da elevação espiritual; “luz”- a dimensão superior do espírito; “Sol”- o Inexpressível, o Sublime; “lama”- a condição humana degradada.

Também é de se registrar que “nudez” e “frio” estão associados ao mal (“ódio sombrio”) enquanto  “Sol”, “luz” ao bem (implicitamente, ao amor).

Apesar do otimismo de “Graças te rendo...” e “Metamorfoses”, nos poemas geralmente predomina um tom pessimista (vide capítulos seguintes) com relação às expectativas do poeta neste mundo.

                                                                             

Ao concluir este capítulo, gostaria de salientar que, nos dias que correm, o termo “bárbaros” tende a ser associado ao de “burgueses”, no que estes têm de mais materialista, utilitarista, escravizado às convenções sociais etc. Mas EP não considera sinônimos esses termos. Em sua concepção, poderá haver bárbaros, ou civilizados, tanto na burguesia quanto em qualquer outra classe social. O uso que EP faz do qualificativo está em função da maior ou menor sensibilidade do indivíduo às coisas do espírito, da maior ou menor subordinação da vida a valores mesquinhos, e independe da posição do indivíduo no sistema produtivo. Assim, não seria considerado bárbaro o lavrador sensível à beleza da natureza ou o burguês refinado que busca o prazer estético, mas o seria o camponês bronco ou o membro da burguesia que vivesse só para acumular capital, ou que considerasse o poeta imoral porque ama a nudez na arte, conforme está implícito nos  “Versos de outrora”.


Notas ao capítulo 3.3


1. Na sexta estrofe de “Para que todos que eu amo sejam felizes”, o poeta assim se dirige aos deuses:

Sim, permiti que o mal que tenha porventura
De um dia os abater, como vítima imbele, (*)
Caia por sobre mim, que sei que tenho a pele
Sobre os ossos, porém, insensível e dura.
---------------
(*) Imbele= não belicosa (dic Aurélio)

Gostaria, data venia, de registrar aqui uma recordação de caráter pessoal: também a minha avó Arabela, nascida em Curitiba em 1890, formulou algumas vezes (quando sua mãe e depois seu marido adoeceram) o mesmo pedido expresso nessa estrofe. Aliás, a palavra “ara”, que integra o seu nome, foi incluída no rol daquelas típicas do vocabulário simbolista, conforme o “glossário” anexo ao volume III do “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, de Andrade Muricy, p.314 (ara= “altar primitivo”; “a pedra do altar”). Também estes versos de “Um violão que chora...III me trazem recordação dela:

Alegar o bem não há de
O coração, mas foi tal
A vossa malignidade
Que o alegar não faz mal.

Vale registrar ainda que o seu primo-irmão, Raul Munhoz, então alferes do Exército, foi um dos três “queridíssimos companheiros e amigos” a quem EP dedicou o folheto, publicado em 1905, contendo os discursos que proferiu por ocasião do lançamento da pedra fundamental e, mais tarde, na inauguração do monumento ao Marechal Floriano Peixoto  em Curitiba, como nos informa a nota da p.214, de “Prosa”, 1º volume das Obras Completas de Emiliano Perneta- Curitiba, Gerpa, 1945.

2 Cf., por exemplo, esta passagem de “Alegoria”:  “/.../ uma arte social, que os Estetas, de resto desprezavam, por isso que jamais quiseram ser eunucos, ocupados em rufiar mulheres para os outros /.../”  (in “Prosa”, 1º v. das “Obras Completas de Emiliano Perneta”, op cit, p. 30)

3 MERQUIOR, José Guilherme — “De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira” – I, 3a. ed, Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, p. 190

4 “Petit Larousse Illustré” – Paris, Larousse, 1983

5 ZIMMERMAN, J.E. – “Dictionary of Classical Mythology”, New York, Bantam Books, 1985

6 “Obra crítica de Nestor Vítor”- v.I, Ministério da Educação e Cultura/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1969,  p.429

7 “Dicionário Histórico-Biográfico do Estado do Paraná”- Curitiba, Livraria Editora do Chain/Banco do Estado do Paraná, 1991- p. 466  (verbete “Simbolismo, revistas”).

8 MARTINS, Wilson – “História da Inteligência Brasileira”, 2ª ed., S.Paulo, T A Queiroz, Ed., 1996- v.V, pp.471-2

9 MURICY, Andrade—“O Símbolo à Sombra das Araucárias”— Conselho Federal de Cultura e Departamento de Assuntos Culturais, 1976, p. 233

10 MURICY, Andrade – “Emiliano Perneta”- col. Nossos Clássicos nº 43- 2a. Ed-  Rio de Janeiro, Agir, 1966, p. 62 

11 Cf. nota de Erasmo Pilotto, organizador de “Prosa”- 1º v. das “Obras completas de Emiliano Perneta”, op cit, p. 77, ao conto “O inimigo”, que está assim datado: “País de Bárbaros, 1894”. Nessa época, ele residia em Minas Gerais (v. a Nota Biobibliográfica  nos “Anexos”).

12 “Prosa”, op. cit., p. 202. Nessa mesma crônica, EP afirma que esteve diariamente com Cruz e Sousa durante três anos, a partir de 1890. Aliás, segundo Andrade Muricy, foi EP, quando secretário de redação da “Folha Popular”, quem proporcionou a primeira colocação de Cruz no Rio, como repórter daquele jornal (cf. MURICY, Andrade- “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, v. I, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1952, pp. 101 e 217

13 ZIMMERMAN, J.E. – “Dictionary of Classical Mythology”, op cit

14 MURICY, Andrade – “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, vol.III,  Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1952, p. 332

15 MOISÉS, Massaud – “Dicionário de Termos Literários”- 6a. ed., São Paulo, Cultrix, 1992, p. 494

16 BIEDERMANN, Hans – “Dictionary of Symbolism”-- Great Britain, Wordsworth Editions Ltd., 1996, p. 27

17 “The Oxford Companion to the Bible”—Bruce M. Metzger, Michael D. Coogan, editors --- New York, Oxford University Press, 1993, p. 170

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