quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


3.2- A NATUREZA:  “FLORESTAS DE SÍMBOLOS”



   Baudelaire, no famoso soneto “Correspondances”, das “Flores do Mal” (1857), considerou a Natureza como um templo de “vivos pilares”, onde estão presentes “florestas de símbolos”:

La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L’homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l’observent avec des regards familiers. 1

A menção a “templo” traz consigo conotações religiosas ou místicas...Por outro lado, a Natureza “fala” ao homem, que deve interpretar a sua mensagem “confusa”.

Conforme comentário a esse soneto, que consta em “Baudelaire- Pages Choisis” (“Classiques Larousse”), “Ver símbolos nas coisas é atribuir-lhes um sentido oculto, místico. É aproximar o mundo material de um mundo espiritual ao qual ele corresponde2

Todavia, a atitude simbolista distingue-se da romântica nessa questão. De acordo com “A Estética Simbolista”,

enquanto o romântico sonhava ascender a um paraíso, o simbolista, embora também espiritualista, fazia, via de regra, do mundo a sua morada, a sua meta./.../ Em síntese, enquanto o romântico deseja abandonar a terra para encontrar Deus, o simbolista deseja encontrar a unidade do material e do espiritual aqui na terra, de modo a recuperar a unidade de um mundo artificialmente dividido. 3

As concepções de EP a respeito não são assim estritamente simbolistas, possuindo também elementos românticos, dentro do ecletismo estético que caracteriza a sua poesia.  

Baudelaire, segundo ainda aquela obra, apresenta em “Correspondances”  sua “proposta de união entre o homem e a Natureza, através das chamadas sinestesias4. Para ele, “no mundo natural, todas as coisas mantêm profunda unidade5, pois, conforme o v.8 do soneto,

Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

A sinestesia, recurso largamente empregado por EP, consiste na “relação subjetiva que se estabelece espontaneamente entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente6 ou, de modo menos restrito, consiste na mera  “evocação de impressões sensoriais pela palavra7.

Qual o sentido das sinestesias? Conforme ainda “A Estética Simbolista”, elas representam

um esforço para recuperar a linguagem original, aquela em que a palavra, mais do que simples representação dos objetos, é também coisa ela própria. Trabalhando com imagens sinestésicas, o poeta deseja representar o instante da percepção de um objeto, de um movimento, sem a incômoda intervenção da inteligência, que tende a separar as sensações em blocos distintos. /.../ Encontrada a correspondência entre os sentidos, ainda segundo  Baudelaire, o homem está apto a participar do mundo da Natureza, em que todas as coisas têm íntima relação entre si, em que o mundo material não está de modo algum dissociado do espiritual. 8 

O poeta deseja assim “se  utilizar  de  uma  linguagem  sensorial  e  alógica – a mais sedutora metáfora da consciência primitiva, intuitivamente relacionada com a Natureza.”  

EP, como os românticos, quer ascender ao paraíso. Mas como os simbolistas quer integrar-se à Natureza, quer ocupar o papel que aí lhe cabe,  irmanando-se aos pássaros e às árvores. Essa integração dar-se-á tanto na vida quanto na morte.

O poeta assim vai embrenhar-se nessas “florestas de símbolos”, sempre relacionando seus versos à natureza, tema que ocupa um papel fundamental na poesia de EP. Deve ser por isso que muitos escritores salientaram o seu caráter panteísta. 

Os símbolos que a natureza encerra estão presentes em seus versos de muitas maneiras. Podem expressar a elevação do espírito (por exemplo, pela presença da montanha, que deve ser escalada, do pinheiro, que é “como uma taça erguida para a luz”, dos pássaros que anseiam por alçar voo). Expressam também a degradação da condição humana, cujos símbolos são não só o verme mas também o lodo, a lama, o charco, que se contrapõem aos astros (as estrelas, o sol), associados sempre às dimensões superiores do espírito, assim como a luz. A luz contrapõe-se à escuridão, assim como o dia á noite, os aspectos risonhos da natureza (o dia ensolarado, a primavera, os jardins floridos) aos seus aspectos hostis ao ser humano (frio cortante, neve, vento comparado ao açoite etc). A flor (a rosa, o lírio etc) geralmente é sinônimo da mulher amada, ou de coisas belas, espiritualmente elevadas, a abelha é associada ao artista, que também produz o seu “mel”, a águia ao poeta, os abutres aos bárbaros, os pombos aos idealistas etc. Tudo, enfim, na natureza, pode conter um significado para além do seu sentido imediato... 


a)     Unidade ser humano-natureza


Essa unidade, preconizada em “Correspondances”, revela-se de várias maneiras nos poemas de EP.

Quando um poeta nasce, a natureza “palpita”: o monte, o céu, a flor, a luz. E as velas desfraldam-se no mar.

É um barulho de rio, um murmúrio de fonte,
Uma palpitação universal de estrelas;
(“Quando um poeta nasceu...”) (*)
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(*) Cf. recorrência da menção às “estrelas que palpitam”

Em “Um violão que chora...II, a amada, se voltar, no futuro, e não encontrar o poeta, deve perguntar por ele às “tardes”, ou ao “arvoredo”, o que revela a intimidade do poeta com esses elementos da natureza, personificados.

Também em “Tristeza”, a identificação do poeta com a natureza é tão grande que ele é até mesmo confundido com um ramo pelo passarinho:

Pensou que eu era um ramo, e veio a mim.

Por outro lado, em “Durante uma enfermidade”, o poeta entende o canto do sabiá:

E de tanto que já o tenho ouvido,
Entendo o que ele diz pelo sentido.


                                                  *

Quando o poeta se regozija com a vinda da amada, a natureza também está em festa, expressando a identificação entre ambos, conforme as duas primeiras estrofes de “Veio”:

Di-lo tanto fulgor maravilhoso, di-lo
Este clarim de sol rubro do meu anseio,
Este verde de mar, como um sono tranquilo,(1)
Este límpido céu azul, como um gorjeio, 
Alto, bem alto, assim, para que eu possa ouvi-lo,
Que ela, vencendo o mar, transpondo o serro, veio,
Todo cheirando, em flor, o perfumado seio,
Bela, sonora, ideal, como a Vênus de Milo..  (2)
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(1) Cf. a associação de “mar” com “sono”, já comentada antes
(2) Cf. a comparação

Como se vê, a sinestesia está presente nestes versos, assim como em muitos outros. Na primeira estrofe, ela ocorre em “clarim de sol rubro do meu anseio”. O sol, identificado com o instrumento de sopro (clarim), produz som (além de luz), lembrando também a clave musical. O som tem cor, é “rubro”, cor associada à emoção intensa (o “anseio” do poeta) e também à letra i, no soneto das “Vogais” de Rimbaud (i aparece com destaque em “Veio”, não só nos versos citados). Note-se também a menção a outras cores (verde, azul).

A sinestesia ocorre ainda na segunda estrofe do poema. A vinda da amada, “como a Vênus de Milo”, como uma obra- de- arte, não sensibiliza só a visão, mas também a audição (“sonora”) e, sugestivamente, o tato, por ela ser comparada a uma escultura. O sentido do olfato também é evocado, pois o “perfumado seio” veio “Todo cheirando, em flor”.
                                    *

Em “Convalescente”, há uma associação da mudança do tempo (que passa de chuvoso a ensolarado) à recuperação da doente. Enquanto a protagonista está doente, há chuva e o céu está “brumoso e feio”. Quando ela melhora, o “céu fulge”, porque há sol. Talvez uma reminiscência familiar, EP, usando uma metáfora e uma comparação, refere-se àquela (parente?, sua mãe, falecida em 1886?) que

/.../ débil, de mansinho, abre a janela...
O sol casquilha, em ouro se derrama, (1)
Fora na balsa, como uma risada... (2)
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    (1)  Casquilhar = “andar casquilho”, i.e. janota, “vestido com apuro exagerado” (dic. Aurélio); cf. a    metáfora
     (2)  “Balsa”: sugere o rio Iguaçu, próximo ao qual situava-se o sítio dos pais de EP (cf soneto “Iguaçu” transcrito adiante); cf. a comparação

O soneto foi publicado na “Quinzena Paulista” de 11 de junho de 1889 10, antes de integrar “Ilusão”.  
                                                  *

Em “Para os que se amam”, há uma interação peculiar entre o ser humano e a natureza: logo de início, quando se define o “cenário” – o lago em que desliza o barco do casal de namorados – o poema afirma:

Sobre esse lago azul, que um sussurro de brisa
Aquebranta de amor e encrespa de desejo, 

Assim, um elemento da natureza (a brisa) atribui a outro elemento (o lago azul) sentimentos humanos (amor, desejo) que, na realidade, se referem ao casal de namorados, e não ao lago. A natureza é então dotada de sentimentos humanos. Nas estrofes finais do poema, para festejar o belo e jovem casal, “Primaveras em flor brotaram de repente” e “encheram-se os jardins de lírios e de rosas...”, ocorrendo aí metáforas “cinéticas” (para usar o termo de Andrade Muricy), que aparecem igualmente em “Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!II, citado acima, e em “Graças te rendo”.
                                                              *

Também em “Adultério de JunoII, a natureza é personificada, quando se admira com a beleza de Juno, a mulher de Júpiter:

/.../ A natureza, quase
Ébria, não tinha mais que uma única frase,
Não tinha mais do que só uma exclamação,
E o êxtase, o silêncio, o gozo, a adoração.

Mais adiante, as açucenas dizem, comentando a passagem de Juno:

     Quem passou por aqui foi uma sombra apenas!

A personificação da natureza representa a expressão mais evidente da unidade entre ela e o ser humano, tal como entendida pelo poeta, que não faz distinção entre o ser humano e os outros seres da natureza. 

                                              *
                                                                                       
Finalmente, com a morte, também ocorre a união do ser humano com a natureza, agora em termos físicos. No belo poema “Baucis e Filemon”, comentado adiante, os dois personagens da mitologia clássica, “bem velhinhos”, ao morrerem, se integram ao reino vegetal. Ela, Baucis, é transformada pelos deuses numa tília, enquanto ele, Filemon, é transformado num carvalho.



b)  A paisagem é um estado d’alma

     Mas a natureza pode mostrar-se indiferente ao drama do ser humano. E adquirir o sentido que este lhe atribuir. Assim, no epílogo do poema dramático “Pena de Talião”, após Céfalo ter matado, involuntariamente, sua amada Prócris, ele afirma:

Tudo me abandonou nesta miséria imensa.
A natureza é sempre a mesma indiferença:
E é sempre mais feliz e de melhor aspecto,
Quando sabe que nós temos o ar inquieto.

                                Apontando as árvores:
Vê de que modo, pois, a esta tragédia assiste:
Não tem uma impressão, um gesto alegre,ou triste,
É o silêncio de um boi, quando rumina e olha:
Eu não ouço bulir, nem sequer uma folha...

                               Olhando o céu:
Daqui a pouco o sol, como ontem e amanhã,
Há de nascer, brilhar, numa festa pagã. 

EP pensa, como o escritor suíço Amiel (1821-1881), que “Un paysage, c’est um état d’âme”, epígrafe que escolheu para “Adultério de Juno”. Desse modo, a paisagem natural, nos poemas, reflete a disposição de espírito do protagonista.   Geralmente, o sol, a luz, o calor, a primavera, as flores refletem alegria, as expectativas promissoras, a felicidade, e representam o bem,  enquanto a escuridão, a chuva, o vento, o frio, a neve, o inverno expressam a tristeza, a desgraça, o tédio, a infelicidade, e por isso estão associadas ao mal.


b.1) A paisagem que expressa alegria


Em “Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!II, “os vales e as montanhas,/.../ E as árvores e as flores” correm atrás do pastor que viu a estrela de Belém, conforme o “animismo numa sinestesia cinética” desses versos, nas palavras de Andrade Muricy 11 .
                                  
                                     *

A primavera é retratada como Flora, a deusa romana das flores, uma mulher com lábios comparados a uma flor vermelha, trazendo na mão uma corbelha (símbolo da natureza em festa) e na fronte uma “coroa d’hera” (símbolo da glória). Ela é acompanhada de “raparigas, quase

Nuas, veladas só por um cendal de gaze, (1)
Mais leve do que o som que Zéfiro soprava... (“Flora”)
---------------
(1)     Cendal= “tecido fino e transparente” (dic. Aurélio)
           
            O peso da gaze das raparigas é comparado ao peso do som do vento do ocidente, Zéfiro.  Assim, o som do vento é materializado, tem peso, logo pode ser percebido pelos outros sentidos, além da audição. Trata-se, portanto, de sinestesia.

            Alguns poemas de EP dão a impressão que procuram criar um equivalente, em palavras, a certas obras de pintura. É o caso deste “Flora”.

A personagem mitológica que dá título ao poema, também chamada de Clóris, é casada com Zéfiro, e desfruta de eterna juventude 12.

                                                                        *

            “Setembro” é um dos poemas antológicos de EP, e abre o livro póstumo, publicado em 1934, organizado por Andrade Muricy, que deu à coletânea esse mesmo título.

            A primavera se aproxima. E o poeta, que se rejubila por ter passado alguns dias no campo, faz o elogio da natureza e da vida campestre, que ele prefere à vida na cidade.

            O poema, todo em dísticos, começa assim:

            Eu ontem vi chegar, quase que à noitezinha,
            Apressada e sutil, a primeira andorinha ...

            É a primavera, pois, em flor, que se anuncia,
            É setembro que vem, bêbedo de ambrosia, (1)

            Mãos doiradas, a rir, mãos leves e radiosas,
            Semeando à luz e ao vento as papoulas e as rosas...

            Como foi para nós de um esquisito gozo,
            Ó minha alma! Esse doce, esse breve repouso,

Que entre o nosso viver tumultuário e incerto
Surgiu como se fosse o oásis do deserto...  (2)                      
            ---------------
(1) Cf. a personificação; ambrosia= “Manjar dos deuses do Olimpo, que dava e conservava a imortalidade” (dic. Aurélio)
(2) Cf. a comparação

            Ocorre, em “Setembro”, perfeita intimidade do poeta com a natureza, pois ele chega a identificar-se com os pássaros, e a aprender a linguagem dos animais. EP reitera aqui a sua concepção favorável à metempsicose relativamente à  natureza:

            Voávamos, depois, por aqueles caminhos...
            Voávamos, Senhor, eu e os passarinhos.
            .......................................................................
           
            Que lindo céu azul! e que dias suaves!
            Em breve eu aprendi a linguagem das aves.

            Falei aos animais, e claramente posso
            Dizer que o olhar dos bois é melhor que o nosso.

            E mesmo acrescentar, com firmeza, e com calma,
            Que se nós temos alma, eles também têm alma! 
           
      Quanto às outras estações do ano, o outono é mencionado com frequência, especialmente em associação com a morte serena (cf. “Baucis e Filemon” ou “Ode à solidão”. “”, de “Setembro”, termina referindo-se ao “suave sono” que o poeta verá entrar “Nesses veludos pálidos de Outono”).

        O inverno, normalmente, apresenta-se hostil, nas referências que os versos fazem ao frio, à neve, à chuva etc. Por outro lado, o verão relaciona-se ao Sol, fonte de luz e calor. Enquanto o inverno está associado à noite (as trevas da matéria), o verão está associado ao dia (a luz do espírito). 

                                                                      *   

O canto de um sabiá trará alegria ao poeta doente em “Durante uma enfermidade”, composto em dísticos, de dez sílabas.

Até me pareceu que advinhava:
Quando eu estava triste é que cantava.

E eu por triste que fosse, quando o ouvia,
Era com arrepios de alegria.

É que ele, à semelhança dum poeta,
Mesmo cantando a mágoa mais secreta,

Tinha sempre o seu modo de dizer,
Que em vez de magoar, dava prazer... 

Todavia, o sabiá (o artista) para cantar bem deve ter vivido e provado a dor de viver:
 
Quem poderá saber o que ele tem,
E o que lhe dói, que o faz cantar tão bem?

Que penas não serão essas dentro da alma, (*)
Que por mais que ele as diga, não se acalma?
---------------
 (*) Cf.”penas” (internas): sugestão de trocadilho, tratando-se de ave

E o poeta, numa atmosfera de conto de fadas, procura uma explicação para ele, compatível com a concepção da metempsicose:

Seria um rei o pobre, ou uma rainha,
Que de uma vez perdeu tudo o que tinha,

E não sabendo mais onde o ganhar,
Pôs-se a chorar, quero dizer, cantar?

Quem poderá saber? Apenas sei,
Quer seja uma rainha, quer um rei,

Que ele é bem como alguém, coitado, quando
Sofre, não se contém e vai falando... (*)
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(*) Cf. a comparação

      O conteúdo do canto do sabiá, que o poeta diz entender “pelo sentido”, está  relacionado a diversos aspectos da natureza, a “esses bosques ideais”, aos “campos em flor”, àquela “fonte com soluço d’água” (cf. animismo), aos “silêncios” /.../ “Dos grandes ermos, dos profundos rios”.

                                                               *
            O Sol adquire grande importância no livro, pelo seu caráter simbólico, de fonte de luz, identificando-se com a dimensão superior do espírito, quer seja ele Deus, Brâman ou a própria natureza em seu caráter divino, numa concepção panteísta.

Em “Sol d’ Inverno”, o poeta, doente de hospital (a doença sugerida é a tuberculose), se regozija com a sua presença, mas logo ele parte, deixando-o no frio.                                                         

            O poema dramático “Sol” é geralmente considerado como uma das melhores composições de “Ilusão”.

Nesse apólogo (conforme A. Muricy), diversos elementos, personificados, dos três reinos da natureza, aguardam o surgimento desse astro, que está prestes a ocorrer, e nessa expectativa pronunciam-se a seu respeito.

         Assim, manifestam-se sucessivamente – em versos de seis e doze sílabas  --  pássaros, um galo, um corvo, o monte, o charco, árvores, uma cigarra, a terra, a videira, a palmeira, o orvalho, o pinheiro, as fontes, a abelha, pastores, rosas, um beija-flor, a floresta, ovelhas e, por último, o poeta. Todos são dotados de alma, coerentemente com a concepção animista da natureza que EP adota.

            Os comentários emitidos estão relacionados à “pessoa” que fala. Assim, por exemplo, os pássaros esperam que o sol surja para alçarem vôo. Eles precisam da luz para isso, numa metáfora da elevação espiritual do ser humano:

            Um deles diz:

            —Tenho ânsias de subir, tenho a cabeça em fogo.
            Hoje vou conhecer, pela primeira vez,
            A voluptuosidade, a febre, a embriaguez
            De voar, de voar, ó sonho, que me abrasas!

            Outro afirma:

            —Ah! Que bom de fugir! Que orgulho de ter asas!

(“orgulho” é uma das palavras mais recorrentes nos poemas, e expressa a convicção do artista/idealista de sua superioridade, apesar de viver num meio que lhe é adverso).

Um  outro pásssaro (não o jovem, que vai voar pela primeira vez) declara:

—É tempo de fugir, é tempo d’ir-me embora...

Quando o corvo se manifesta, é enfatizada a sua condição originalmente nobre, semelhante à do ser humano, que apesar de ser lama (argila), também tem no Sol “a sua casa”:

—Eu sou a podridão e o vento que arrasa:
Sou a fome e a nudez... O sol é minha casa.

 (as metáforas de “fome” e “nudez” sugerem a “podridão” moral, relacionada à concupiscência, ou apetite sexual).

Também o charco, outro símbolo da condição degradada, como o corvo, se rejubila quando é alcançado pelo Sol, que o promove a uma condição superior à da miséria atual:

—Água esverdeada e suja e pântano sombrio,
Mas quando o sol me doira esta miséria, eu rio.

A floresta é personificada como uma mulher, que vê no Sol aquele que a revigora, fonte de vida, que a faz arder de luxúria:

—Ó delírio brutal! Quando me mordes tu
A carne toda em flor, o seio todo nu,
Com teus beijos de fogo, eu como a flor do nardo (*)
Rescendo de prazer, e de luxúrias ardo...
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(*) Cf. o erotismo sugerido por “como”, próximo a “flor”, metáfora usualmente associada à mulher

Essa mesma conotação erótica aparece quando é a terra quem fala:

—Quanto me queima o sol, com os seus desejos brutos!

A videira se regozija por “florir e rebentar em frutos” com o Sol. As ovelhas o bendizem por fazer “germinar em grãos a espiga loura”, e vestir “de verde os campos semi-nus”, salientando novamente o caráter do Sol como fonte de vida.

As árvores, por sua vez, afirmam:

—Nós somos como a flor, ele como as abelhas!
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(*) cf. as comparações
Aliás, o Sol é considerado “matéria prima” quando uma abelha fala:

Pois é de sol e flor, é de luz e aroma,
Que componho esta cera e fabrico este mel!

Procedimento metafórico idêntico o poeta utiliza quando se refere – no momento em que, afinal, surge o Sol – aos ingredientes do seu “maravilhoso banho

Feito de águas lustrais, e aroma, e ambrosia, (1)
E coragem, e luz, e força, e alegria ...  (2)
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(1)     Águas lustrais= “águas purificadoras”
(2)  Cf. o polissíndeto

A sinestesia também está presente aqui.  Os versos referem-se ao “rumor”, às “canções vermelhas” e ao “perfume” do sol.

As fontes assim se manifestam:

—É um murmúrio sem fim de horizonte a horizonte...
O dia quando nasce é bem como uma fonte... (*)
Através da floresta e desse campo e desse
Vale, há um rumor de luz, como água que corresse...
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(*) Cf. a comparação

O monte não está mais só quando ele surge: 

—Mas quando o sol me toca, é como um diadema, (*)
Aurifulgindo aqui por sobre a minha fronte...
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(*) Cf. a comparação

O orvalho também faz uma comparação:

—Ao sol eu brilho mais que a pérola d’Ormuz... 

O pastor assim se refere ao sol:

Quando o sol aparece em ondas, a beleza
E a frescura, que espalha, é de tal natureza,
Tem um olhar tão bom, tão novo, tão jucundo, (*)
Que toda madrugada é o começo do mundo...
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(*) Jucundo=  alegre, jovial

Por fim, cabe ao poeta manifestar-se:

—Ah! que sombria dor e que profunda mágoa
De não poder ser eu aquela gota d’água,
Que depois de fulgir, assim como uma estrela, (*)
Derrete-se na luz, funde-se dentro dela!
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(*) Cf. a comparação

O poeta, por estar ainda preso à matéria, lamenta não poder fundir-se na luz solar – símbolo das dimensões superiores do espírito. Já em “Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!III  EP expressara o anseio por ascender ao “Sublime”, ao “Inexpressível”.

O poema é mais belo numa leitura pagã, ou panteísta, quando exprime o júbilo da natureza pela chegada do Sol. Contém, em seu simbolismo, uma proposta humanista, pois é um elogio à elevação do espírito, e compara no final o ser humano à gota d’água, que deve brilhar – quer dizer, fazer o melhor de sua vida --, antes de desaparecer, ou integrar-se fisicamente na natureza.

Sol” encerra o livro “Ilusão”. Seu autor reitera aí, ao concluir a obra, o mesmo que afirmara ao iniciá-la, nos primeiros versos de “Prólogo”: o seu desejo de elevação espiritual, a sua opção pelos astros (o sonho, o ideal) em vez da lama, do lodo ou do charco, símbolos dos aspectos mesquinhos da realidade em que vive (o “país de bárbaros”).


b.2) A paisagem que expressa dor  


A natureza também pode ser hostil ao poeta, refletindo o estado de espírito deste. Essa hostilidade se expressa pelas imagens associadas à escuridão, ao frio, ao vento etc. Trata-se, no fundo, de uma metáfora da realidade dominada pelos bárbaros (cf. capítulos seguintes), se deixarmos de lado a dor metafísica, a-histórica, que não decorre de causas sociais, mas resulta da consciência da nossa precariedade existencial.  

Ideal”, bem “simbolista”, inicia com o cavaleiro (o poeta) galopando numa paisagem inóspita, de frio, noite e temporal, enquanto no mar (“de sangue”) há uma vela. Essa vela é a metáfora de seu “Ideal”, enquanto o sangue que menciona deve referir-se àquele derramado pelos idealistas, no mundo hostil... 

Em “Espectro”, de caráter expressionista, a natureza também é hostil em suas manifestações (a noite é chuvosa e fria, a chuva bate “desesperada” nos vitrais, o vento “ruge de dor”) e o poeta, cuja condição se reflete naquelas manifestações, se refugia em seu quarto.

Em “Soneto”, a hostilidade do vento fica bem evidente:

É noite. E o vento, como a folha duma espada, (1)
Corta, sibila, espanca, e zurze, e dilacera, (2)
E eu que vou, eu que vou, sozinho, pela estrada,
Eu não tenho por mim nem um raminho d’hera. (3)
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(1) Cf. a comparação; cf. também, na estrofe, o uso fonético das sibilantes, associadas ao vento que passa.
(2) Zurzir= açoitar, maltratar (dic. Aurélio)
(3) Hera: planta que, juntamente com o louro e o mirto, era usada na coroação dos poetas na Grécia antiga, significando a conquista da Glória (v. comentário ao soneto “Glória” em 3.1.c, e também ao poema “Flora” em 3.2.b.1)
 
A repetição de “E eu que vou”, no v.3, enfatiza o ato de ir pela estrada, desamparado, e prolonga o ato de avançar com dificuldade (contra o vento cortante).

Também em “Noite. Deito-me aqui...” é “noite”, e faz “frio”, há “neve” e “vento” (que “chora” – cf. a personificação) quando o poeta depõe o seu “fardo de dor” e sua fadiga e se deita, desejando não mais acordar.

Em “A cigarra e a estrela”, o inverno chegará, ameaçando a cigarra sonhadora.

                     Em “Mors”,  a dor é comparada à chuva, ao vento e ao raio.

          Em “Estátua”, a vida do poeta é comparada, nos versos abaixo, tintos de melancolia, a algo efêmero, belo, contingente, como os inúmeros elementos vivos da natureza:

/.../ Minha vida foi como
Em choupos  verdes a correr um passarinho. (*)
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(*) Choupo= tipo de árvore
          Ainda nesse poema, os desejos do poeta são uma nuvem eletrizada por uma “ tormenta de beijos”:

Nuvem, que uma tormenta  azulada de beijos
Eletriza, lirial nuvem dos meus desejos!
                                                          
Em “Lied”, a Lua é identificada com uma ceifeira (personificação tradicional da Morte) e os “salgueiros”, mencionados quando o cavaleiro está a “caminho da cova”, reforça o caráter plangente da estrofe, pela conotação do seu outro nome (“chorão”).

Em “Canção do diabo”, na estrofe 2, o vento é associado ao demônio:

O vento fora pela noite,
Demônio que blasfema em vão,
Cortava rijo como o açoite,
Uivava triste como um cão. (*)
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(*) Cf. as comparações
Mais adiante, na estrofe 27, quando Satã diz: “E eu, o flagelo, eu o açoite,” reitera o caráter hostil do vento. 

Em “Azar”, o cavaleiro, no final do poema, vai seguir em frente, para anunciar em outro reino, além da Doença, “a Noite, o Frio!”, reiterando a conotação negativa destes aspectos da natureza.
                                                                                   *

Tristeza”  é sobre um passarinho que pousa perto do protagonista e fica ali, a cantar, toda a noite, só indo embora ao amanhecer.  Seu canto aprofunda a tristeza do poeta. Para EP, “A paisagem é um estado de alma” (cf. a citação de Amiel antes referida). Assim, o mesmo canto do pássaro, que em “Durante uma enfermidade” era associado à alegria, agora é associado à tristeza.

A Lua é descrita com a imagem de uma mulher saindo do banho (essa imagem ocorrerá novamente em “Nox”, comentado a seguir):

Findou-se a tarde. Anoiteceu. A lua,
Toda lavada em rosas de prazer,
Vinha como de um banho, vinha nua,
Vinha prateada e límpida a escorrer...

O canto do pássaro, nessa hora, é doce e amargo, ao mesmo tempo:

Eu nunca ouvi cantiga mais amena,
De uma melancolia mais ideal; (1)
Era de tal brandura, de tal pena, (2) 
De tal doçura que fazia mal!.
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(1)  Cf. “ideal”, vocábulo recorrente
(2)     Cf. o duplo sentido de “pena”


No poema, há uma série de imagens associadas à tristeza provocada pelo canto do pássaro, que pode ser considerado um símbolo de qualquer manifestação da beleza, seja na natureza ou na obra do verdadeiro artista. O canto provoca no poeta sensações ligadas à idéia de morte:

/.../ sonho doudo de embriaguez:
Era como se alguém me abrisse a cova,
E enterrasse-me vivo de uma vez...

A beleza para EP, como vimos, é ilusão, é da mesma natureza do sonho, pertence ao “outro mundo”.

O canto cai no íntimo do poeta “Como uma grande luz crepuscular”. A luz aqui está associada à ideia de crepúsculo, do final do dia, ou da vida. Sugere pois o Além (para EP, as regiões superiores do espírito). O poeta se sente um pobre monge

Dentro da minha desesperação,
Que caminhasse para muito longe,
Para o exílio, para a solidão...

e fica inquieto, desolado e só, chegando a ver passar os seus próprios funerais (idéia recorrente nos poemas de EP: o poeta na condição de espírito, despojado do corpo).

Ele, como os monges, isola-se, no mundo dos bárbaros, voltando-se integralmente para as questões fundamentais, do sentido da vida e da morte.

Sente no rosto “Essa esquisita cor feita de cal”, um “palor mortal” (palor=palidez), recorrência da idéia de morte.

O canto do pássaro fala “de tudo quanto sucedera”. Estimula a memória do poeta, faz recordar fatos do tempo (da vida) que passou.  A tristeza, pois, está nele e não na natureza, que é indiferente à dor (ou à alegria) das pessoas. A dor aqui é da mesma natureza daquela contida nos versos de Drummond:

Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói! 

O canto provoca sugestões de “caminhos tristes”, de “avenidas/ Longas” e de “silêncio tumular”, o que origina os versos seguintes, que parecem ter saído da “Divina Comédia”:        

É por aqui que passam os suicidas,
Quando vão para o ermo se enforcar.

Esse canto leva o poeta a certas “trevas e antros infernais”.

Sua tristeza é tão profunda, que a certa altura ele se pergunta:

Quem teria morrido na minha alma,
Para que o coração chorasse assim?

Ele se sente “mais triste do que Jó” (o personagem bíblico, cuja fé Deus testou fazendo-o sofrer muito), “Mais ulcerado, mais infame, e só.” Ele se compara a um “Rio das mortes a rolar, em vão” (em noite escura), as suas

/.../ águas de amargura,
Tintas do sangue da inquietação,

 i.e. de sua inquietação metafísica.

Ele deseja, por fim, que essa ave vá embora. Mas quando ela, de fato, vai, ele fica mais triste e no início da manhã, já saudoso, pergunta quando voltará...

Tem-se aqui, portanto, uma metáfora da situação do artista, que se atormenta na busca pela beleza (o canto do pássaro). Embora ela lhe “faça mal”, ele não deseja abandonar tal busca. Sente necessidade dela, permanentemente. Apesar de não ser feliz, pois o artista é infeliz, se a abandonasse, seria mais infeliz ainda. Por isso, lamenta a ausência do pássaro, e seu canto triste.

                                                           *

A noite, personificada como uma mulher jovem e sensual (ora Sulamita, ora Messalina), é o tema de “Nox”, que em latim significa “noite”.

Nesse poema, a noite não possui caráter hostil, doloroso, embora o poema tenha sido incluído na seção intitulada “Solidão” do livro principal de EP.  
                                                                                      
Nox”, composto das cinco quadra transcritas baixo, é essencialmente visual, envolvendo múltiplas imagens:

Escureceu. Silenciosa,
A Noite faz a toilette: (1)
Na cabeleira tenebrosa
Engasta a lua, um alfinete. (2)
Depois, o corpo sempre moço,
O corpo em flor de Sulamita,
Num banho imerge até o pescoço,
Banho de estrelas que palpita. (2)

E enfim de todo quase nua,
Somente envolta em véus ideais, (2)
No carro d’ébano flutua, (3)
Pelos espaços siderais.
Vendo-a passar, dos rendilhados (4)
Palácios de ouro e de cristal, (2)
Como se fossem namorados (5)
Os astros fazem-lhe um sinal. (1)

E cada vez mais se reclina
Sobre esses coxins de veludo, (6)
Sorrindo como Messalina (5)
Para todos e para tudo...
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(1)     Cf. a personificação
(2)     Cf. a metáfora
(3)     Ébano= madeira escura, pesada (dic Aurélio); cf. a metáfora
(4)     Rendilhado= “Que tem rendilhas. Que tem lavores que lembram rendilhas” (Rendilhas= “Rendas pequenas ou delicadas)” (dic Aurélio)   
(5)     Cf. a comparação
(6)     Coxim= almofada; divã (dic Aurélio) ; cf. a metáfora

        O poema, como se vê, não tem outro objetivo senão expressar a beleza da noite, por uma associação com a beleza da mulher jovem, desnuda, promissora (a noite é promissora ao poeta sonhador), daí as referências a Sulamita e Messalina. A propósito, Sulamita significa “princesa”, e é o nome pelo qual é chamada a noiva de Salomão no “Cântico dos Cânticos”, 6:13 13. Ela aparece frequentemente nos poemas de EP, como uma jovem sensual. Por outro lado, Messalina é a representante da mulher devassa, de acordo com as lendas que cercam a figura histórica da mulher de Cláudio I (10 a.C.-54 d.C.), imperador de Roma 14. 

           EP incluiu este poema na parte de “Ilusão” que intitulou “Solidão”, como já foi dito. A idéia de “solidão”, nos diversas composições, está sempre associada à de “silêncio” (no primeiro verso de “Nox” consta a palavra  “Silenciosa”). O poeta desfruta da beleza da natureza, dentro do silêncio e da solidão, independentemente de preocupações outras, inclusive das suas próprias, pois não há aqui menção a elas. Trata-se de um poema inteiramente voltado para o mundo exterior, que explora as potencialidades estéticas da associação entre a noite e a mulher.

Nestor Vítor referiu-se a “Nox” como uma “jóia verdadeiramente esquisita” (ou “exquisita”, no original, que “remete ao vocábulo francês “exquis”, cujo significado é o de uma coisa buscada, excelente, delicada”, como informam as Notas a “Ilusão & outros poemas”, op. cit, p. 213). Segundo o crítico do Simbolismo, basta a leitura de “Nox”, e a de outro pequeno poema, “Mors” (v. adiante), “para dar como existente a natureza de um raro artista em Emiliano Perneta. Ele faz lembrar nestes poemetos as poucas, mas imortais horas de graça que pequeninas peças surpreendentemente perfeitas atestam na obra de Mallarmé.” 15

Em  “Pena de Talião”, a noite é elogiada por Prócris deste modo:

Que bela noite e que magnífico luar!
Eu amo muito mais a noite do que o dia,
................................................................
O dia é a tuba de ouro, o fogo da eloqüência (1)
A difundir-se rubra entre a terra e o céu;
A noite é apenas como uma  reminiscência (2)
Vaga do que passou, sombra do que viveu...
Quando desce da noite a misteriosa teia,
Vê-se tudo através dos vidros da ilusão. (1)
A coisa mais vulgar se metamorfoseia:
Uma estátua em fantasma, uma sombra em ladrão.
E é isso para mim do mais intenso gozo,
Porque eu amo somente o vago e o irreal. (3)
E só acho prazer no que é maravilhoso,
No fantástico só e no fenomenal.  (Ato III, Cena V)
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(1)     Cf. as metáforas. Tuba= “Entre os romanos, trombeta de metal, formada por um simples tubo reto, comprido e estreito” (dic Aurélio).
(2)     Cf. a comparação 
(3)     Cf. o soneto “Prólogo”, primeiro terceto

Mais adiante, no mesmo ato e cena, Prócris, junto a Céfalo, assim se refere à Lua, personificada, nesta delicada estrofe:

Eu ficaria aqui a minha vida inteira,
Unida assim contigo, e sem cansar jamais,
Vendo a lua sorrir, irônica e ligeira,
Com ar de quem já viu tantas cenas iguais. 

Também o poema “Dor”, de “Setembro”, está ambientado em meio à noite, e inicia com estes versos singulares:

Noite.O céu, como um peixe,o turbilhão desova(1)
De estrelas a fulgir. Desponta a lua nova.
Um silêncio espectral, um silêncio profundo
Dentro de uma mortalha imensa envolve o mundo (2).
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(1)     Cf. a comparação
(2)     Cf. a metáfora

                                                          
c) A paisagem local


Em seu livro “Alegoria” (1903), EP afirmou:

/.../ tanto mais valor possuía uma obra d’arte e menos ela tinha de comum com o meio, qualquer que fosse, onde o acaso a visse eclosionar. Porquanto, o ideal em tudo é que a beleza fosse, mas como um astro, que vivesse da sua própria luz. Assim, uma estátua nunca era bela, porque se parecesse com Laís, mas Laís é que poderia ser bela, por parecer-se com uma estátua. 16

Em decorrência da adoção de tal concepção estética, são pouquíssimas as referências explícitas à paisagem paranaense nos poemas de “Ilusão”. Praticamente, elas se restringem ao soneto “Iguaçu”, transcrito no final deste tópico, e a algumas referências ao pinheiro (símbolo do Paraná), como aquela fala dele em “Sol”:

-- Eu sou como uma taça erguida para a luz...

Em “Setembro” constam estes versos de “Oração da manhã” (datado do final de sua vida, 1919), em que o poeta pede a “seu filho” ajoelhar e bendizer, dentre outros aspectos da “obra do Criador”, os pinheirais, que poderiam ser os de seu próprio sítio:   

Bendize a força, a graça, a seiva, a juventude,
A hercúlea robustez daqueles pinheirais,
Que resistem, de pé, dentro da casca rude,
Aos mugidos do vento e aos rijos temporais.(1)

Ama essa terra como um fauno que por entre (2)
A silva agreste vive;/.../
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(1)     Cf. a metáfora
(2)   Cf. a comparação

            O que foi dito acima não significa, contudo, que a paisagem local esteja ausente dos poemas. O que ocorre é que a paisagem do planalto curitibano aparece transfigurada nos versos de EP, pois é filtrada pelo seu ideário estético. Para ele, o poeta não deve meramente fazer a descrição do que vê, e sim processar essa “matéria-prima” a fim de produzir a obra de arte. Para EP, o poeta “como as abelhas faz o seu mel das flores que lhe dão a glória e a embriaguez”.17  Aliás, esta mesma imagem, associada ao trabalho criador do artista, ocorrerá nas “Estâncias” (incluídas em “Setembro”), quando o poeta lamenta não ter podido viver na natureza: 

Imaginei, por fim, viver no seio,
Lá no teu grande seio, natureza.
Alheio a tudo, inteiramente alheio,
Todo entregue ao meu sonho de beleza.
................................................................
Para fazer o mel da fantasia, (1)
Eu teria uma vida laboriosa,
Sempre preocupado, noite e dia,
Como uma abelha em torno de uma rosa...” (2)
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(1)     Cf. a metáfora
(2)     Cf. a comparação

(também o sol – cf. comentário ao poema com esse título – é visto dessa forma, quando uma árvore afirma: “—Nós somos como a flor, ele como as abelhas!”)

EP, coerente com as concepções estéticas dos simbolistas, que recusavam o descritivismo parnasiano, preferiu referir-se à paisagem paranaense indiretamente, quando, por exemplo, aborda a natureza num poema de tema mitológico, ou quando trata de paisagens ensolaradas. Estas, como salientaram Andrade Muricy e Tasso da Silveira, refletem uma realidade bem brasileira, distante daquela presente na poesia dos simbolistas europeus, em que o sol não tem tal importância.

Segundo Andrade Muricy,

Emiliano era capaz de altas, e de delicadas visões, porém muito generalizadas, sem nada de característico e de cor local. Só uma cousa é autenticamente parte da natureza do planalto paranaense: a luz, a luz que lhe inspirou muitos dos seus mais belos poemas: ‘Sol’, por exemplo, e a inesquecível pastoral ‘Setembro’, que abre e dá o seu nome ao livro póstumo/.../ 18

  Muricy considera ainda, em outro estudo, a poesia de EP como a única, dentre a dos simbolistas brasileiros, à qual se poderá aplicar o qualificativo de “solar19.

Para Tasso da Silveira, a paisagem paranaense é de importância fundamental na poesia de EP, pois é ela que dá originalidade ao poeta, distinguindo-o dos meros imitadores do simbolismo francês:

Quando se começar, no Brasil, a fazer exegese dos nossos grandes poetas, compreender-se-á quanto embebeu Emiliano Perneta sua poesia do fundo frescor de mundo amanhecente da natureza paranaense. O Paraná é, antes de tudo, o claro planalto de clima mediterrâneo, sob céus límpidos e puros, e de perpétua juvenilidade, que constitui paisagem única no seio do Brasil tropical. Essa juvenilidade luminosa, esse infinito frescor da paisagem, totalmente se trasladaram, sob feição de aparente paganismo, para os poemas emilianescos de realização mais acabada, dando-lhes sentido brasileiro e imprimindo-lhes, verbigratia, em face do simbolismo francês, um cunho de originalidade irrecusável. 20

E em outro livro, Tasso escreveu que a poesia de EP

provém, sobretudo,/.../ do vivo esplendor de juvenilidade, do alto frescor de mundo amanhecente das terras do Paraná. Foi a isto que, por engano, se chamou o ‘paganismo’ de Emiliano: o voluptuoso amor às formas, às águas, aos céus, às árvores, aos ventos, às mulheres – que no planalto paranaense são uma re-criação recente da natureza: “... toda madrugada é o começo do mundo...“ 21 

Afirma ainda que a voz de EP é

a do cantor, sobretudo, dos instantes de infinito frescor virginal do mundo. /.../ Neste essencial caráter de sua obra é que melhor se define sua originalidade  profunda. Das singularidades e extravagâncias de que teceu numerosos poemas, sabe-se que provieram do simbolismo francês. Assim como o desalento, ou ceticismo, ou o tédio de que faz alarde, em estrofes aliás de grande força verbal, trazem o acento fundo de Baudelaire, ou Verlaine, ou Rimbaud. Quando, porém, sai em busca do frescor imorredouro, Emiliano é ele mesmo, integralmente. É o transubstanciador, em poesia, do imorredouro frescor da realidade de cujo seio nasceu, e em cujo seio a condensação total de seu espírito e seu temperamento se operou: a da terra de seu berço. 22

 No soneto “Iguacu”, abaixo transcrito, EP compara o rio a um cão, que ora está deitado ali (onde nasce o rio, próximo ao seu sítio dos Pinhais), “quase a lamber-me os pés”, ora está “A fugir, a fugir alegre e alvissareiro”, o que sugere o movimento do rio, correndo de leste para oeste, até a sua foz (a repetição de “a fugir” reforça a idéia do movimento do rio, do seu afastamento contínuo). E´ um belo poema, de comparação muito sugestiva, apesar de conter um verso ufanista:

            Ó rio que nasceu onde nasci, ó rio
            Calmo da minha infância, ora doce, ora má.
            Belo estuário azul, espelhado e sombrio.
            Quanto susto me deu, quanto prazer me dá!

            Quantas vezes eu só, nessas manhãs d’ estio,
            Ao vê-lo deslizar, pomposamente, lá,
            Pálido não fiquei tão majestoso vi-o,
            Orgulho do Brasil, glória do Paraná!

            Companheiro ideal! Durante toda a viagem,
            Foi o espelho fiel a refletir a imagem
            Dos montes e dos céus, discorrendo através (1)

            Da floresta, ora assim como um cão veadeiro, (2)
            A fugir, a fugir alegre e alvissareiro,
            Ora deitado aqui, quase a lamber-me os pés!
            ---------------
           (1)     Discorrer= vagar, vaguear, errar
           (2)     Veadeiro= “Cão adestrado na caça de veados”

    A viagem até a foz do rio Iguaçu, mencionada no v. 9, realmente ocorreu. EP fez o seu relato minucioso – uma verdadeira aventura, na época – em um texto, datado de outubro de 1905, que consta de sua “Prosa”, coligida por Erasmo Pilotto. 23 O soneto acima foi publicado quase um ano depois disso, em julho de 1906, em “Olho da Rua” nº 7 (conforme as Notas a “Ilusão & outros poemas”, op cit, p. 215).

 Gostaria de encerrar o capítulo com esta observação, bastante pertinente, de Heitor Martins:

Emiliano Perneta, na sua pintura do mundo visível (natura naturata), quase sempre evita referências a um nacionalismo explícito. A paisagem brasileira – especificamente a paisagem do sul do Brasil – está presente como uma espécie de meio de cultura e, como tal, não se faz necessária sua identificação nacional direta. Árvores e pássaros, ambientes e cenários – todos são brasileiros, não porque o confessem abertamente, mas porque assim funcionam e reagem. Na própria estrutura poemática, nas metáforas e nos símbolos, o ambiente brasileiro é palpável. Num poema intimista, “Durante uma enfermidade”, por exemplo, o sistema de imagens permite a presença de umas ‘pérolas de Ofir’, mas o elemento instigador das sensações que o poeta experimenta é um “sabiá”. 24




Notas ao capítulo 3.2


1            BAUDELAIRE- “Les Fleurs du Mal”. Paris, Le Livre de Poche, 1967, p. 21

2            BAUDELAIRE- “Pages Choisis”, Classiques Larousse. 17e édition. Paris. Larousse, p. 14 

3        “A Estética Simbolista” – seleção de textos, comentários e introdução geral por Álvaro Cardoso GOMES. São Paulo, Cultrix, 1985, pp. 15-16

4        Ibidem, p. 34 

5        Ibidem, p. 36

6        “Novo Dicionário Aurélio”, 1ª ed., 15ª impressão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,s/d 

7        TAVARES, Hênio – “Teoria Literária”, 4a ed. Belo Horizonte, Edit. Bernardo Álvares S A, 1969, p. 233

8        “A Estética Simbolista”, op. cit., p. 17 

9        Ibidem, p. 24

10    Conforme as “Notas” à edição crítica de “Ilusão & outros poemas”- Curitiba, Prefeitura Municipal de Curitiba, 1996 (Col. Farol do Saber), p. 215 

11    MURICY, Andrade —“Emiliano Perneta”. Coleção “Nossos Clássicos” nº 43, 2a. ed., Rio de Janeiro, Agir, 1966, p. 38

12    ZIMMERMAN, J.E. – “Dictionary of Classical Mythology”. New York, Bantam Books, 1985 
                                
13    “Webster’s Encyclopedic Unabridged Dictionary”. New York/Avenel-New Jersey, Gramercy Books, 1989

14    “Novo Dicionário Aurélio”, op cit, p. 916 

15        VÍTOR, Nestor – “Obra Crítica”- v.I, Ministério da Educação e Cultura-Fundação Casa de Rui Barbosa, 1969, pp. 438-439

16        Obras Completas de Emiliano Perneta- 1º v.- “Prosa”, Curitiba, Gerpa, 1945, p. 30

17        Ibidem,  p.193

18        MURICY, Andrade – “A obra póstuma de Emiliano Perneta”. Rio de Janeiro, ed. Festa, 1930, p. 18

19        MURICY, Andrade – “Emiliano Perneta”. Col. “Nossos Clássicos”, op. cit., p.9

20        SILVEIRA, Tasso da – “Literatura Paranaense – Notícia Histórica” in “Governo do Estado – 1º Centenário da Emancipação Política  do Paraná (1853-1953)” – p.22

21        SILVEIRA, Tasso da – “Diálogo com as Raízes”- Salvador, ed. GRD, 1971, pp.123-124
22        Ibidem, p. 81

23        Obras Completas de Emiliano Perneta- 1º v.- “Prosa”, op. cit.,  pp. 176-192.

24    MARTINS, Heitor – “Subsídios para uma leitura histórico-sociológica do livro Ilusão de Emiliano Perneta” in “Textura” nº 2- Curitiba- Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte- jul.-dez. de 1981, p.91.

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