quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


3.4- O TÉDIO... (cont.)

3.4.3- A viagem


A idéia de viagem está muito presente nos poemas de EP. A viagem é o modo de fuga mais evidente de uma realidade externa que não lhe agrada, ou da sua própria inquietude interior. É mais um dos meios de fuga que aponta, além do sonho da arte, do vinho, da mulher...O desejo de fuga aparece com tanta frequência na poesia de EP que Tasso da Silveira o considera “poeta de evasão6

Note-se que EP morava numa pensão na rua principal de Curitiba. O hotel é a residência dos que estão em viagem ... A propósito, em “Alegoria” ele afirma o seguinte sobre os “estetas”:

Doidos pela ilusão, consideravam-se hóspedes na vida, ansiosos pela hora do embarque...
Viver era viajar uma viagem que não tinha princípio nem fim. Não se sabia d’onde se vinha nem para onde se ia... 7

A viagem, o desejo de embarcar, é uma idéia fixa nele, que espera encontrar, na variação da paisagem terrestre, um derivativo para a sua alma inquieta. No limite, ela significa a morte, a viagem final. Mas EP, como salientou Tasso da Silveira, não é “poeta de consumpção” (que exemplifica com Mário de Sá Carneiro). EP não é um suicida, ele não deseja a morte pela morte, e sim aspira à “pátria verdadeira”, aquela à qual pertence de fato o seu espírito, dentro da concepção idealista que adota. Isso nos permite compreender melhor o poeta, e não incorrer no equívoco de Alfredo Bosi que considera EP um “homem arrastado pelo desejo intenso de conhecer o próprio fim”, tomado pelas “ânsias de autodestruição8. Na verdade, o “desejo intenso” de EP é conhecer o “outro mundo”, o mundo transcendente.  

Em “Embarque para Citera”, o poeta inicia o soneto expressando a sua ânsia de viajar, de mudar a paisagem (embora isso também seja uma ilusão):

De resto, quanto a mim, a mais doce quimera
É sempre essa ilusão de uma nova paisagem,
E por isso também, por isso quem me dera
Que a minha vida fosse uma grande viagem.

Quem me dera poder, à tarde, quando a aragem
Sopra ríspida, entrar na primeira galera, (*)
E errando sobre o mar, ó rude marinhagem,
No outono, estar aqui, e ali na primavera!   
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(*) Galera= Galé = “Antiga embarcação de guerra, comprida e estreita, que emergia pouco acima da água impelida por grandes remos /.../, e acessoriamente, por duas velas bastardas, içadas em mastros próximos à proa” (dic Aurélio)


A viagem sobre o mar, como já assinalei no item 3.1.e associa-se frequentemente à idéia da viagem derradeira, da morte. 
  

No último verso da segunda quadra citada acima há um duplo sentido, pois “outono” é a estação do ano em que ocorrem as mortes serenas (cf. “Baucis e Filemon”, e outros poemas). A primavera, por conseqüência, estará associada à Glória, ao Paraíso.


Em “Versos para embarcar”,  ele expressa também essa ânsia de viajar, “seja para onde for”, só para fugir desse “charco imundo” que é o Tédio:


Tudo, tudo vai mal, e tudo é uma viela,
E um beco escuro, e um charco imundo, e um triste     horror: (1)
Pois que bom de embarcar, um dia, a toda a vela,
E fugir, e fugir, seja para onde for.(2)
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(1)     Cf. o polissíndeto; cf. também o comentário de Tasso da Silveira relacionando esses versos com a “Curitiba provincianíssima” do tempo de EP (in “Diálogo com as raízes”- Salvador, edições GRD, 1971, pp.93-94). Por outro lado, o “charco” era muito presente na Curitiba antiga, e seus habitantes, por isso, eram chamados de “sapos”, como já foi dito. Nas “Estâncias”, de “Setembro”, o poeta lamenta não ter podido viajar e “conhecer o mundo”. E os “Esparsos”, que constam de “Ilusão & outros poemas”, op cit, p. 205, incluem um soneto, publicado no “Diário da Tarde” de 8/6/1904 (não recolhido em “Ilusão”, que é de 1911), em que EP afirma não ter partido de Curitiba pois esta lhe  “Sorriu como uma flor azul numa espelunca, /Com tal doçura que, ai de mim! eu nunca vi./ Oh! sorriu com amor inefável dum lírio,/ E eu não parti. Fiquei dentro do meu delírio. /Mas que ânsia de fugir hoje mesmo daqui!”
(2)     A repetição de “e fugir”, e outras palavras, sugere a   ansiedade por evadir-se 


Todavia, “Não há como embarcar”, o que é repetido cinco vezes no poema, enfatizando a ausência de um meio de fuga para o Tédio, naquela hora:

Não há como embarcar. A vida é um navio
Doido, a querer partir , mordendo ao pé do cais, (*)
Velas estão a encher, sopra o nordeste frio,
Quando é que partes, ó navio, quando sais?
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(*) Cf. as metáforas

O poeta afirma então que embarcar lhe traz esperança, que ele tem inveja até dos desterrados, só porque vão viajar, descreve uma região de sonho, que tanto pode ser a pátria da Arte -- a França, ou a Europa ( “Não é só te querer...”, publicado na imprensa com o título “Meine Geliebte”, expressa o desejo de viajar para lá) -- quanto o mundo transcendente, e conclui reafirmando sua ânsia de viajar, ainda que, “arriscando na sorte”, só lhe saia o azar (i.e., o Inferno).

Em “Para que todos que eu amo sejam felizes”, o poeta pede aos deuses por essas pessoas, e também lhes dá esse conselho:

E que bem como faz à tarde uma andorinha, (1)
De um pra outro país, em vindo a primavera, 
Emigrem: que isso foi minha melhor quimera,(2)
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(1) Cf. a comparação
(2) Quimera= “Produto da imaginação; fantasia, utopia, sonho” (dic Aurélio)

Embarcar, como já foi assinalado, também pode ter o sentido de morrer. Em “Ideal”,  constam esses versos:

Um velho, e o barco sobre o mar:
“O mar é um túmulo sem fundo,
Mas eu vou dar a volta ao Mundo,
Além! Além! – Quero embarcar!”

A morte para EP, na maioria dos poemas, não é algo a lamentar, mas a desejar, pois, como já foi dito, representa a esperança desse espiritualista reintegrar-se à “verdadeira” realidade, uma vez que esta, em que ele vive, é apenas uma ilusão, um sonho.

 “Corre mais que uma vela...” é sobre uma “corrida doida”, incessante, cuja velocidade é comparada sucessivamente à da vela, do vento, do pensamento, das notícias infernais, da luz. É comparada ainda à “treva” do esquecimento. Essa corrida sugere à do tempo, que passa celeremente:

Eu não sei de corrida igual a essa:
São anos e parece que é um momento;

O soneto conclui assim:

Corre mais fatalmente do que a sorte,
Corre para a desgraça e para a morte...
Mas eu queria que corressse mais!

EP inicia o poema referindo-se à “vela” (implicitamente ao mar, associado à idéia da última viagem), ao “vento” e à “treva” do “tenebroso véu do esquecimento”. A redundância é intencional para enfatizar o caráter sombrio que quer imprimir aos versos, não só por estarem relacionados à morte, mas também à hostilidade da natureza (vento, noite).
Em “Noite. Deito-me aqui...”, o sentimento de frustração pela vida (comparada a um “castelo no ar”), por parte do combatente (cf. “lança”, “escudo”) pelas nobres causas (cf. “brasões reais”) -- sob o “fardo de dor” e de fadiga, sem a esperança das viagens do sonho (sem “viagens a Citera”) -- provoca nele o desejo de morte:

Hoje, tudo rolou pelos abismos, tudo,
Esse orgulho feroz, essa lança, esse escudo,
As viagens a Citera, e esses brasões reais... (1)

Eu vou dormir, porém o sono não sei donde
Desce por sobre mim, como uma grande fronde...(2)
Ah! que bom de dormir e não acordar mais!
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(1)     Citera= ilha consagrada a Vênus (vide comentário mais adiante)
(2)     Cf. a comparação. Fronde= “A copa das árvores” (dic Aurélio)

Esses são os tercetos do soneto. Nos versos que os precedem (segundo quarteto), o “castelo no ar” mencionado antes, transformara-se em outra imagem, em um “castelo feito/ De papelão,” (o que sugere fragilidade, e o artifício da elaboração artística) construído de tal modo que ele fez de marionete, i.e. que ele manipulou, a seu bel-prazer -- como sua vida -- em busca da magia ilusionista da arte, esta representada pela menção a Marion Delorme, nome de um poema dramático de Victor Hugo (1831). Assim, está presente aqui mais uma referência literária, elevada à categoria de símbolo. A invocação de Marion Delorme encontra então a sua justificativa, e a lembrança de seu nome decorre, provavelmente, do emprego da palavra “marionete” no verso. A imagem de “castelo” sugere ainda a “torre de marfim”, refúgio do artista.

Quero destacar também a assonância em o, presente no terceto final citado acima. Essa vogal, no soneto famoso de Rimbaud (“Voyelles”), é associada ao azul, aos “Silences traversés des Mondes et des Anges”, ao Omega, implicando em conotações celestes, transcendentes. Isso é reforçado pela referência ao sono nesses versos.

            Tema semelhante -- o do desejo de morte pela frustração na vida decorrente da frustração amorosa, ou da frustração da realização como artista, simbolizadas na figura de D.Alba, citada na epígrafe – é o do “Soneto”, que começa com “É noite. E o vento, como a folha duma espada”.

Alba está presente também na “Prosa” de EP, como uma das suas amadas. Outras, que ele cita aí, são Ema e Ester. Na crônica sobre Alba, datada de 22/5/1905, ela partiu “com os seus olhos negros e o seu ar de uma rainha etrusca”.9 Significando seu nome “alva”, “o primeiro alvor da manhã”, “alvorada”, relaciona-se ao raiar do dia, à luz, que renova a esperança, por parte do artista, de alcançar a beleza.

            Nesse “Soneto”, o poeta se aproxima de um albergue, à noite (um “olho de sangue” na noite), que ele sabe ser o “covil de traição que envenena e apunhala...”, sugerindo a possibilidade de assassínio. Mas ele diz:  “Tenho sono, porém, e vou dormir ali!”

            O albergue, para EP, é uma metáfora da vida (cf. “D.Morte”,  e também “”, de “Setembro”). O peregrino/poeta sabe que ela “envenena e apunhala”, ela o trai, em seu projeto ambicioso de concretizar o sonho da obra de arte. Mas ele sabe também que está previamente condenado nesta vida (ou no mundo dos bárbaros), e se conforma com o seu destino adverso.

Também em “Um violão que chora...VIII, o poeta expressa o desejo de morte, como uma decorrência da realidade hostil dos bárbaros, ou das limitações de sua contingência, ambas sintetizadas na imagem do lodaçal, ou do lodo.

Ele fala assim ao seu coração, mais uma vez personificado:

Vamos, meu coração, adormece de todo,
E não acordes mais, que vão te fazer mal;
Nunca, que tudo enfim é esse lodaçal,
E não é nada mais nem menos do que lodo...

No primeiro terceto desse soneto, um polissíndeto associa o seu “descanso” ao “bem” e a outros valores positivos:

É o descanso, e um bem, e a paz, enfim, e tudo,
E esse sorriso como flor, e a embriaguez,
E o leito leve, e perfumado, e de veludo...
No outro terceto ele elogia “a surdez/ Desse sono animal, desse profundo sono!”. Nesse sono ele não ouve nada, ao contrário daquele de “Vencidos”:

Mortos, bem mortos, e mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?

Todavia, em “Convalescente”, há uma declaração de amor à vida, por parte da doente que melhora. E nos dísticos de “Lyrio!” (palavra que os simbolistas não admitiam escrever sem o y...), sobre o enterro de uma tísica, a morte não é desejada, mas tratada de forma pungente, ocorrendo, contudo, a presença do sarcasmo, na menção ao “riso” do pássaro. O luto é expresso pelo branco e não pelo preto, pois predomina aí uma paisagem de inverno, de frio, neve e vento (Norte), quando passa o enterro da tísica (o branco sugere também a palidez cadavérica):

Nos olhos fundos azuis de serro:
Geme um salgueiro; passa um enterro. (1)

Riso d’inverno, gelado escuto: (2)
-- Pássaro branco, que anda de luto.
          
Mão como as algas, mão que me corta, (3)
Quando eu a aperto, tísica e morta.

Esguia, magra, toda arcadinha,
-- Vime mais brando que uma velhinha.” (3)
.........................................................
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(1) Cf. a metáfora: reentrâncias dos montes = “olhos fundos”; a palavra “azuis” sugere o céu e “olhos fundos” a defunta; cf. também a personificação do salgueiro, que “Geme” 
(2) O poeta está “gelado” pelo inverno, ou pela emoção? o adjetivo reforça a condição cadavérica da tísica
(3) Cf. a comparação e a metáfora
 
Adiante, o poeta pede que o “vento do Norte” (ele é recorrente: cf. “D.Morte”) sopre essa vela (duplo sentido: barco à vela ou chama, símbolo da vida) por esses “Mares de prata” (mar: associado à última viagem). A seguir, após referir-se a uma vala, vêm esses versos impressivos:

Ela, uma rosa, doente exangue,
Vai ficar cega de chorar sangue...

Mas ela não é uma rosa, e sim um “Lyrio”, que deve ser tirado da “lama”, para se juntar a outros “Lyrios” (conservou-se aqui, como na edição crítica de “Ilusão & outros poemas”, op cit, a ortografia preferida pelos simbolistas dada a sua expressividade gráfica, i.e. as relações entre o “y” da forma da palavra com o seu significado). Tratando-se de um poema marcadamente “simbolista”, rico em sugestões, “lyrio” também pode ser lido como o símbolo da inocência, do sonho, que se extingue no mundo dominado pelos bárbaros.
 
                                                                          *   

A morte é ainda o tema principal, ou é referida, nos seguintes poemas:

 “Mors” (= morte, em latim) é sobre a morte em família. A dor caiu num “risonho lar” “Como se fosse a chuva, o vento,/ O raio” (expressões da natureza hostil), e abateu alguém, chamada de “flor delicada” e “Pálida rosa” (a flor é frequentemente associada, nos poemas, à figura da mulher). Além de envolver essa comparação, a dor é personificada, pois

/.../ bate sem cessar...
Bate e estala,
Como uma louca, (*)
De boca em boca,
De sala em sala...
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(*) Cf. a comparação

Isso salienta o caráter doméstico da morte, também indicado pela menção a termos prosaicos, como “sala” e “sofá”. É interessante destacar que a irregularidade dos versos, neste poema (quanto ao número de sílabas), lhes dá um movimento rítmico peculiar, como se fosse o vento funesto assolando os aposentos da casa (“De sala em sala”), onde a “flor delicada” “tomba” (“Sobre o sofá”),

Como quem veio (*)
Fatigada
De um passeio,
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(*) Cf. a comparação

(“passeio” aqui se assemelha a “viagem” que, em outros poemas, se identifica com “vida”).

Nestor Vítor elogia os “assimétricos versos” de “Mors”. Em sua opinião, EP aí renovou “estafado tema, tratando-o com aristocrática sensibilidade e graça, mas por isso mesmo avivando-lhe singularmente o fundo trágico.” Este poema, juntamente com “Nox”, faz lembrar, segundo ele, “pequeninas peças de Mallarmé.” 10

Baucis e Filemon”, um dos melhores poemas de “Ilusão”, trata do desfecho da história (e da vida) desse casal da mitologia grega, que foi hospitaleiro com Zeus e Hermes quando estes, disfarçados, andavam pela Terra. Esses deuses os recompensaram satisfazendo o seu pedido de morrerem juntos, depois de uma vida longa e feliz.  E quando isso de fato ocorre, eles se integram à natureza, passando a fazer parte da flora. O tema do poema é assim o da morte ideal (já que ela tem de ocorrer, que seja como a de Baucis e Filemon, diz o poeta, nos primeiros versos).

 Inicialmente, o poema descreve o “cenário” natural (vv.3-28): a estação do ano é o outono (a morte serena sempre ocorre nessa estação), e a hora do dia é a tarde, que é personificada, majestosa:

Outono.A tarde vai num carro de veludo,
Lírio, rosa, carmim, e oiro, sobretudo

Saliente-se essa precisa coloração, com nuanças, pois menciona-se “rosa” e logo depois “carmim”—o vermelho muito vivo.

A tarde gira, no passeio vesperal,
A luminosa flor estética do Mal. (*)
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(*) Flor do Mal = Sol. O “carro” (da tarde) lembra “roda”, o que sugere “gira”; roda, por sua vez, remete ao Sol, elemento importante e recorrente nos versos, sempre significando o plano mais elevado do espírito, fonte de luz, aspiração daqueles que vivem em condição degradada, nas trevas, no lodo, i.e. no Mal. Por isso, é a “flor do Mal”

O vento do ocidente, Zéfiro,

/.../ vendo-a, em seus vestidos sopra assim,
Da flauta rude uns sons de folha de jasmim,
Uns sons de violeta e anêmona e açucena,
Uns sons que inda são mais leves do que uma pena,
E tão bons, e tão bons, que ao longe o mar semelha,
A subir e a descer, um rebanho de ovelha...

Note-se a presença aqui de sinestesia, pela evocação simultânea de diversas impressões dos sentidos: o vento (tato) produz sons (audição), sons esses “de folha de jasmim” e outras flores (olfato e visão). Os sons (novamente evocando esses sentidos) são materializados, pois “tem peso”, que é comparado ao da pena. Saliente-se também a comparação do mar com um rebanho de ovelha (mar: conotação de última viagem, de morte).

Na sequência, a evolução da tarde, quando o crepúsculo avança (cf. v.27—“luz crepuscular”), é indicada pela alteração na cor dos seus “vestidos” (outra metáfora):

 E os seus vestidos que são alvos como a paz, (1)
Tingem-se de uma cor de sangue de lilás. (2)
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(1) Cf. a comparação; a “paz”, materializada, é “alva”
(2) Lilás= arbusto cuja flores têm coloração branca ou arroxeada (dic Aurélio).
  
Depois, o poeta faz o elogio da tarde, e aí está presente a comparação, a metáfora, a personificação e a sinestesia, além de anáforas (cf. repetição de “Ó tarde” e “tarde” no início dos versos):
    
Ó tarde linda, ó tarde linda como Vênus, (1)
Tarde de olhos azuis e de seios morenos. (2)
Ó tarde linda, ó tarde doce que se admira,
Como uma torre de pérolas e safira. (1)
Ó tarde como quem tocasse um violino. (3)
Tarde como Endimion, quando ele era menino. (4)
Tarde em que a terra está mole de tanto beijo,
Porém querendo mais, nervosa de desejo...(3)
Tarde como no dia em que Júpiter loiro, (5)
Por amor de Danae, desfez-se todo em oiro. (6)
Tarde de se cair de joelhos, por encanto,
E de se lhe beijar a ponta de seu manto. (7)    
Ó que tarde sutil! ó luz crepuscular!
Com rosas no jardim e cisnes a boiar... (3)
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(1) Cf. a comparação
(2) Cf. a personificação e sinestesia
(3) Cf. a sinestesia
(4) Cf. a comparação. Endimion é o belo pastor da mitologia grega, por quem Artemis (ou Selene),deusa da lua, se apaixonou, quando o viu dormindo nu 11
(5) Cf. a comparação e sinestesia
(6) Danae, filha do rei de Argos, foi encerrada pelo pai numa prisão, para evitar que se   cumprisse a profecia de que o filho dela mataria o avô. Júpiter, encantado pela sua beleza, transformou-se em chuva de ouro, e acabou por fecundá-la. Desse modo, mais tarde,   aquela profecia veio a se cumprir. 12
(7) Cf. a personificação: a tarde é um nobre; “manto” é palavra recorrente 

No v. 30 são introduzidos os dois velhinhos:

Outono lindo, lindo... Ao longo dos caminhos,
Como sempre, eles dois, velhinhos, bem velhinhos,
Inda mais uma vez olham essa paisagem,
Que, por assim dizer, é a sua própria imagem,

i.e. imagem “terna”, doce, “Com abelhas, com sol, e com favos de mel...

No final, o poema contém um pequeno diálogo entre os dois personagens, quando eles elogiam a “tarde linda”, o “lindo outono”, e expressam ambos o desejo de dormir “o derradeiro sono”. Baucis então, que já está cansada “de tanto ser feliz”, é transformada numa tília, enquanto Filemon é transformado num carvalho.

Assim, a morte, quando não associada à dor e aceita serenamente, como pré-requisito para a superação da contingência, sempre ocorre no outono, a estação amena do ano, sem os extremos do verão ou do inverno.

Esse também é o caso de “Ode à solidão”: o poeta deseja adormecer numa “tarde de outono”, no seio da solidão, personificada como uma mulher (e associada ao silêncio, outra recorrência):

Bendito seja pois esse silêncio obscuro,
            Bendita sejas tu,
E esse teu ventre liso, e esse teu seio puro,
            Esse teu seio nu.

Onde ao cair enfim de uma tarde de outono,
            Desejo adormecer,
Calmo, porém assim como quem dorme um sono (*)
            Num seio de mulher... 
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(*) Cf. a comparação

Em “”, de “Setembro”, o “suave sono” entrará “Nesses veludos pálidos de Outono” (cf. a sinestesia). O poeta inicia o soneto referindo-se à sua morte em meio ao bom combate:

Quando eu fugir, na ponta duma lança,
Deste albergue noturno em que me vês,  

Tem a esperança “Vaga de abrir os olhos outra vez...” 
/.../ na placidez
Duma nuança mansa que não cansa, (*)
Lá, para além dos astros, lá, talvez?
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(*) Cf. a assonância e rimas internas

Em “Última volúpia”, que Massaud Moisés destacou, muito acertadamente, de ”Setembro”, considerando-o um poema importante com “notas de modernidade à Sá-Carneiro13, o sono desceria numa “manhã de Abril”, ou seja, no primeiro mês do outono. O poeta gostaria de morrer junto à natureza:

Mas que não seja aqui, fora da natureza,
Que tenha de cair sob o golpe fatal;
Seria uma tristeza, infinita tristeza,
Acabar, como um clown, em pleno carnaval! (1)

Todos os animais, quando é chegada a hora
Suprema de partir para a estranha região,
Quer seja ao pôr do sol, quer ao romper d’aurora,
Demandam, por instinto, o horror da solidão...
.................................................................................

Enquanto a mim, conheço um simples lugarejo
Ermo, onde o sol de inverno é um vinho de prazer,
E uma fina volúpia, e um esquisito beijo,
Longo beijo de amor, que faz adormecer...”  (2)
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(1) Cf. a comparação
(2) Cf. as metáforas associadas ao “sol de inverno” (comparando-as com as do poema com esse título); cf. também a recorrência de “vinho”, sempre  encarado positivamente   

(EP não se retirou ao seu sítio dos Pinhais para morrer junto à natureza, mas foi surpreendido pela morte em plena atividade, na pensão em que morava, no centro de Curitiba, após retornar de seu trabalho como Auditor de Guerra).

O poeta demonstra indiferença com relação à morte nos tercetos de “Numa hora de dor”, de “Setembro”:

Quando tiver de vir, que venha,
Da mais profunda, estranha paz,
Dentro de fria, alva estamenha... (*)
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(*) Estamenha= “Tecido comum de lã”. “Hábito, burel de frade” (dic Aurélio). Note-se a sinestesia, pela evocação de impressão sensorial decorrente da palavra “fria”; note-se também que a estamenha é “alva”, e não preta, a cor do luto

Demonstra até um certo prazer malsão com sua vinda, que é o prazer de despojar-se da matéria (“maldito pó”) para tornar-se só espírito, nessas imagens impressivas:

Ponha-me o pé sobre a garganta, (1)
Calque-me bem, como uma planta, (2)
Erva ruim, maldito pó! (3)
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(1)     Cf. personificação da morte
(2)     Cf. a comparação
(3)     Cf. a metáfora

A identificação do corpo humano ao pó é mais uma referência bíblica (cf. Gênesis,  III, 19: “Com o suor do teu rosto, comerás o pão; até que voltes ao solo, donde foste tirado. Porque és pó, e ao pó te tornarás.14).

Numa hora de dor” traz a data de sua elaboração: 1913. Imagem semelhante ocorrerá em “Dor”, datado de 1918, um poema em dísticos,  também de “Setembro”.

Do seio da noite, o poeta  recebe a Dor, personificada como uma mulher:

Toda de preto. Traz uma mantilha rica;
E por onde ela passa, o ar se purifica.

Ele quer que ela o subjugue inteiramente. No final, diz:

Calca-me sob os pés, esmaga-me a cabeça,
Que eu morra como um cão, e que desapareça...  

O poeta, como Cruz e Sousa, acredita no poder espiritualizador da dor, e uma vez mais demonstra o seu desprezo pela matéria, com a reiteração da imagem de alguém “calcando-o” ( o seu corpo, não o espírito) sob os pés.

Frequentemente, o poeta dá um tratamento sarcástico quando aborda esse tema, como em “D.Morte”, em que esta aparece personalizada. Após apagar a candeia  e levar a mãe pobre, sem leite, do albergue (outra metáfora), diz que foi o vento norte que a apagou, e o poema conclui com uma risada, expressa por um verso octossilábico, composto só de “ah!”, repetido oito vezes...

“Candeia” (=lamparina) é metáfora da vida, e como tal aparece, novamente, no poema anticlerical  “Punição do herege”, v. 160:

Vendo o verdugo, enfim, numa dessas manhãs,
Que as torturas brutais não tinham sido vãs;
Vendo que finalmente a luz dessa candeia,
Sob o vento feral da morte, bruxuleia, (*)
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(*) Cf. a metáfora: vento= morte. Feral = funéreo (dic Aurélio)

O sarcasmo também aparece em “Sol d’inverno” (um elogio do Sol pelo doente, no hospital) em que consta

Ó riso enfermo! ó riso espetro!
Esqueleto que estás a rir...

Em “Ideal!”, já citado antes, após o poeta considerar a sua vida uma  Doente, que ri funambulescamente (= de modo excêntrico, extravagante), vem

Ri como os sinos: dlem! dlom! dlem!
Olhai! lá vem descendo o serro!
Olhai! lá vem o meu enterro!
Que dor! que dor! Morri. Por quem?

E tu, cruel, que assim me perdes,
Ó vício! Ó Dama d’olhos verdes! (1)
Torcida como um caracol? (2)
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(1)     Cf. o último verso do soneto “Dama”
(2)     Cf. a comparação

Também em “Lyrio!”, o sarcasmo está presente (na menção a “riso” e não a  “choro”) quando passa o enterro daquela que morreu tísica:

Nos olhos fundos azuis de serro:
Geme um salgueiro; passa um enterro.

Riso d’inverno, gelado escuto:
- Pássaro branco, que anda de luto.


Assim, fica bem comprovado o sarcasmo com que EP encara a morte, cujo fim é manifestar todo o seu desprezo por ela. Para esse espiritualista, ela não representa o fim da vida, mas o começo da verdadeira vida, vida real, não ilusória ... como no soneto 10 (dos “Holy Sonnets”) de John Donne:

Death! Be not proud, though some have called thee
Mighty and dreadful, for thou art not so;
…………………………………………………………..
One short sleep past, we wake eternally
And death shall be no more: death thou shalt die. 15


                                                                 *          

A passagem do tempo, com sua marcha inexorável para a morte, além de “Corre mais que uma vela...” já comentado, é abordada também em outros poemas.

A fixação no tempo que passou é criticada em “Estátua”, pois imobiliza o ser humano. No poema, um cavaleiro -- como  a  mulher  de  Ló, na  Bíblia (cf. Gênesis, IXX, 26) -- é transformado em estátua de sal, após olhar para trás (para o seu passado).

            Nesse poema, bem “simbolista”, o passado do cavaleiro está associado ao bom combate do artista (cf. referências à “lança”, ao “casco (=capacete) de ouro” e também à “adaga de ouro” e ao “arnês de outrora”), à juventude (“e moço! e tudo moço!”) e às mulheres:

Turbilhões sensuais de proserpinas doudas!
Cantáridas em flor, brancas, morenas todas (*)
Luxurioso amei! amei! Eram tão belas!
---------------
(*) Prosérpina: divindade romana; é a Perséfone dos gregos, cujo culto é associado ao de sua mãe Deméter – deusa da agricultura 16.  “Cantárida”: inseto usado na medicina antiga em beberagens para fins afrodisíacos, e outros (dic Aurélio)

Do v.5 ao v.35, o Cavaleiro fala consigo, após deparar, nos versos iniciais, com um salgueiro que “chora”, e o vento chorando “fino no salgueiro”, uma personificação do salgueiro, do vento, cujo choro reflete o estado de espírito do poeta ao recordar o seu passado.

Essa evocação representa o Inferno (cf. “incêndios de loucura”) e o Paraíso (“Éden”), conforme estes versos hiperbólicos e estranhos:

Ah! -- consigo murmura –
Nestes caminhos lôbregos, de joelhos, (*)                                                                        
Eu caminhei por sobre incêndios de loucura,
Num Éden prateado e com frutos vermelhos!
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(*) Lôbrego = lúgubre= sombrio, sinistro; triste (dic Aurélio)

Notem-se as referências enigmáticas desses versos: “moço de Damasco”, “sonho de Damasco” (v. 12) (sugerindo talvez a estrada de Damasco, onde Paulo teve uma visão que o levou a converter-se ao Cristianismo); “Valpúrgio” (v. 29); e principalmente “O Nu de um nu de Apodros nuda!” (v. 46).  Sua obscuridade contribui para acentuar a estranheza e o clima de mistério dos versos, constituindo-se portanto em um recurso estético adicional empregado pelo poeta. 

Quando o Cavaleiro retoma a sua viagem é chamado por um Anjo, que o faz olhar de novo para os anos passados (esse Anjo, para mim, representa o apelo da Arte, da Ilusão; no poema, é “a açucena” de um horto, o que sugere o Horto das Oliveiras, onde Cristo esteve, aflito, aguardando a sua prisão, metáfora de onde o poeta está agora). E o Cavaleiro olha, e vê, não vendo,

O Nu... mais nu! O Nu de um nu de Apodros nuda!
Um esqueleto nu!...

e se transforma, como a mulher de Ló, em estátua de sal.

O protagonista, ao voltar-se para o passado, atendendo a um apelo irresistível, personificado na figura do Anjo, vê não o real, sem a roupagem da Ilusão, mas ainda a realidade ilusória. A ênfase na nudez relaciona-se a essa visão despojada (essencial) do real, que o poeta não consegue ver, por continuar iludido, mesmo na maturidade. Essa fixação no passado o imobiliza, o transforma em estátua de sal, sal este que está contido na lágrima, no choro, mencionado no início do poema.

Saliento ainda que a alma do Cavaleiro, que se volta para o passado, é associada a uma “Cova sinistra”, ela é a “Cruz Vermelha dos Abraços!” e um

Barco esguio a dançar, carregado de aroma,
Seda, púrpura, arminho e veludo da Pérsia,
     
imagens que apontam para a presença na alma do artista do sentimento da passagem do tempo/morte, da solidariedade humana, ou, mais genericamente, do amor ao próximo, e do requinte estético, expresso pela imagem do barco e sua carga especial.

            No belo poema “Cavaleiro”, o personagem-título, que passa “a todo galope”, consiste na personificação da juventude sonhadora, ameaçada pela fugacidade do tempo e a frustração em realizar o sonho. Para Andrade Muricy, o cavaleiro é o “símbolo das ânsias romanescas da mocidade”. Aliás, Muricy afirma, em seu ensaio de 1919, que o “Cavaleiro”, com suas “lindas estrofes quinhentistas”, é a “melhor realização simbolista” de EP. 17

O cavaleiro “Corre, corre mais ligeiro/ Do que a luz e o pensamento,” repetição de um verso que consta do soneto “Corre mais que uma vela...”, cujo tema é, justamente, a passagem do tempo. Por outro lado, o cavaleiro “Nem à beira do barranco,/ Nem do abismo, se detém”, o que indica a ousadia da juventude. A estrofe 4 enfatiza essa característica (a impulsividade da juventude), quando a brisa, personificada, fala:

A brisa flébil, a brisa (*)
Ao vê-lo correr: “Olhai,
Não vê onde o cavalo pisa,
Nem p’r’onde o cavalo vai!
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(*) Flébil= débil, fraca; plangente (dic. Aurélio)

Nas estrofes 5 e 6, o poeta deseja sublinhar a condição superior dessa fase da vida (o elogio à beleza da mocidade é recorrente nos poemas).  Afirma  que o cavaleiro tem o “orgulho de rei”, e é indiferente à dor, ao bem e ao mal, em sua impulsividade. 

Não ouve a dor nem o choro,
Nem a tristeza, que sei,
Dentro da púrpura e do ouro
Do seu orgulho de rei.

A galope, pela estrada
É como um cego afinal,
Não vê nada, não vê nada,
Nem o bem, e nem o mal.

Na estrofe seguinte, o poeta ainda retorna à condição superior da juventude:

Passa como a realeza,
Como um raio, como um deus!

Na estrofe 11, menciona-se explicitamente “o moço”, não deixando dúvida quanto à identificação do cavaleiro com a juventude. Nas (belas) estrofes finais, o poeta lembra que também já foi jovem, já vestiu a “mesma seda”, i.e. já teve os mesmos sonhos, mas se frustrou em concretizá-los:
    
A túnica que ele veste,
A túnica auri-lavrada,
Tem a cor azul-celeste,
Os frisos da madrugada.

Mas, olhe, da mesma seda, (*)
Vestido um dia andei eu;
E pois que lhe não suceda
O que a mim me sucedeu! 
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(*) Cf. a metáfora
           
Esse final, apontando para o mal que advirá (= a decepção), explicaria o uso dos adjetivos em “cavaleiro sombrio” (estrofe 3) e “sinistro domador” (estrofe 10). A imagem do “cavaleiro sinistro” é explorada em “Canção” e “Azar”. 

Cabe lembrar aqui, a propósito, o estado de espírito de EP quando exclama, em “Para os que se amam”, o verso lapidar (na expressão de Wilson Martins) seguinte, ao admirar a beleza da mocidade, ambas efêmeras, no casal de namorados a se beijar “como faz um par de borboletas”, num barco que desliza em “lago azul”:

Senhor, vamos rezar pelos que são felizes! 

Antes, o poeta afirmara

Ah! que doce frescor ideal de mocidade! (*)
Para vê-los assim, foi que se fez o mundo,
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(*) O adjetivo “ideal”, que é recorrente em “Ilusão”, é empregado três vezes só neste poema: além deste verso (“frescor ideal”), consta na penúltima estrofe (as “Primaveras em flor brotaram de repente/ Como romãs ideais, bocas luxuriosas,”) e na última (“sonho ideal”). O termo deve associar as coisas assim qualificadas ao “outro mundo”, ao “mundo das idéias” platônico, do qual o nosso mundo é pálido reflexo. 

Em decorrência da menção ao “mundo”, que “foi feito para ver assim os namorados”, constam, na sequência, várias imagens ligadas à natureza em festa – a da noite que se enfeita de “arrecadas (=brincos) de estrelas”, a das “Primaveras em flor” que brotam de repente, a dos jardins que se enchem “de lírios e de rosas”. 

Em “A boa estrela”, inversamente, o envelhecimento é identificado com o mal, e a passagem do tempo (cf. indicações das diversas etapas da vida) é associada à estrela da ventura do poeta. Esta passa de “linda” e “dourada” na infância, quando a consciência é “pura”, a “coberta de sangue”, “mais tarde”, quando a consciência é “langue” (= lânguida; voluptuosa), i.e. na fase da vida em que o poeta se envolve, mais intensamente, tanto no bom combate quanto nas relações amorosas (cf sugestões da referência ao sangue, associado às duas situações). “Afinal”, i.e. mais tarde ainda, quando ele está “perdido de todo”,  não consegue mais ver a estrela da sua ventura, pois “Desapareceu”. Isso revela todo o pessimismo do poeta quanto à velhice, fase da vida dominada pela desilusão ou, como diria EP, pela Decepção.   

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