3.1- TUDO É UM SONHO VAGO
Iniciemos este passeio pelos poemas de EP, especialmente os de seu livro
principal-- “Ilusão”, procurando identificar as implicações desta palavra-título,
pois isso certamente contribuirá para melhor compreendermos a visão de mundo do
seu autor. Ao mesmo tempo, serão ressaltados -- não só neste capítulo, mas
também nos seguintes -- os aspectos formais considerados de maior
interesse.
Logo de início, a palavra “Ilusão” já aparece, junto com “Sonho”, nos
versos que fecham o primeiro poema daquela coletânea, o soneto “Prólogo”,
profissão de fé estético-filosófica de EP1 :
Estrelas que luzis na abóboda infinita,
Inquietamente, assim, com um olhar que fascina,
Vendo-vos palpitar, meu coração palpita, (1)
Mordido de paixão por essa luz divina...
5 Largos céus ideais,
região diamantina,
Mirífico esplendor, ó pérola esquisita, (2)
Quanta cobiça vã, que nunca se imagina,
Quanto furor enfim o ânimo me excita!
É o impossível, pois, que eu amo unicamente,
10 A névoa que fugiu, a
forma evanescente,
A sombra que se foi tal qual uma visão... (3)
E por isso também, por isso é que eu
suponho
Que a vida, em suma, é um grande e
extravagante Sonho,
E a Beleza não é mais do que uma
Ilusão!”
---------------
(1)
Cf.
a personificação das estrelas
(2)
Cf.
as metáforas
(3)
Cf.
a comparação
Pascal sentia-se atemorizado pelo silêncio dos espaços infinitos (“Le silence éternel de ces espaces
infinis m’effraie.”). EP, ao contrário,
sente-se atraído, arrebatado, por esses “céus ideais”...
As imagens empregadas para caracterizar os “céus ideais”, nos vv. 5-6,
que evocam a textura peculiar do diamante e da pérola, realçam simultaneamente
a beleza e o caráter precioso desses “céus” para o poeta. Além disso, a freqüência com que ocorre a
vogal i, essa “vogal estridente” 2 , ao
longo do soneto (cf. as rimas dos dois quartetos e as tônicas
de diversas palavras dentro dos versos, como “luzis”, “mordido”, “mirífico”
etc) enfatiza a intensidade da emoção daquele que contempla as estrelas.
a) Ilusão: arte & vida
O
vocábulo “Ilusão” pode estar associado à idéia de beleza, aquilo que o
poeta (ou o artista, de modo geral) busca, em sua atividade criadora, destinada
a obter um produto – no caso, feito de palavras -- que a contenha, como a
contém uma obra-prima da música ou da pintura. O artista a persegue
sofregamente, com “furor” – para usar um termo caro a EP – mas essa busca é frustrante: a beleza foge aos
seus esforços no sentido de apreendê-la, ela o ilude constantemente, dadas as
limitações da sua condição imanente. O artista, sempre insatisfeito, condenado
a estar sempre aquém do desejado, esforça-se, contudo, por “iludir a cruel Decepção!...” (“O
enigma”) (doravante, quando não for citado o livro de onde provém o poema,
entenda-se que ele provém de “Ilusão”).
Em “Alegoria”, seu livro em prosa de
1903, EP afirma que os artistas “viviam todos esfomeados de beleza. E era tanto furor com que a sentiam
que não a possuindo lutavam por fazê-la...” 3. Para ele, a arte é artifício: “através do artifício é que tudo era belo. ‘Ars artificium est’.
Quanto mais artifício mais encantação e mais esquecimento.”4 E em carta a
seu amigo Santa Rita Jr. afirma: “cada um de nós tem a obrigação de ser o que é, sobretudo em arte, onde o
próprio artifício deve ser uma ilusão perfeita e verdadeira.” 5
Assim, o artista busca, ludicamente, com os artifícios da obra de arte,
produzir determinados efeitos na sensibilidade do seu público. A concepção da
arte como atividade lúdica é a “diferença decisiva” entre a poesia moderna e a
simbolista, segundo J.G.Merquior (para quem o simbolismo tem uma concepção “salvacionista, regeneradora e redentora da criação
artística”) 6. Então, quanto mais prevalecer o caráter lúdico na
poesia de EP, tanto mais “moderno” ele o será...
Num dos sonetos da série de D.Juan, essa figura mítica é comparada ao
artista, e em outro (“Não sei que poeta...”) é considerada “o símbolo dum sonho” e a “flor ideal e eterna da Ilusão”. Novamente, “sonho” e “ilusão” aparecem juntos, nos dois últimos
versos do poema (o mesmo ocorreu em “Prólogo”,
como se viu). “Sonho”, nesse contexto, tem o sentido de busca da beleza, de sua
posse, sempre frustrada (por isso, uma ilusão), empreendida tanto por D.Juan
quanto pelo artista, ou poeta.
Em “Um violão que chora...” III, EP afirma:
O poeta é a
eterna criança (*)
Correndo
atrás da ilusão,
Que lhe
foge, e ele não cansa
De tanto
correr em vão,
--------------
(*) Cf. a
metáfora
A palavra “ilusão”, assim, possui também uma conotação mais ampla,
além daquela relativa à busca da
beleza. Ela expressa aquilo que a
criança busca... que difere dos objetivos utilitaristas perseguidos pelo
adulto.
O poeta, em “Solidão” III, invejando a sorte de um velhinho muito
pobre, que nada tem e nada sabe, afirma:
Aquele que ali vai nesse
caminho,
Todo despido, todo, da Ilusão,
Nesses versos, o termo incorpora um sentido mais amplo, mais próximo ao
de “Sonho”. Aliás, Andrade Muricy afirma explicitamente que EP usa a palavra “ilusão”
para designar “sonho” 7.
Conforme o v.13 do soneto transcrito acima (“Prólogo”), há uma
identificação da Vida com o Sonho. E o
que isso significa?
Em primeiro lugar, a Vida-Sonho é aquela do artista, é a vida dedicada à
busca da Beleza. No poema dramático “Pena de Talião” ocorre tal identificação,
quando Lísias, o amigo do poeta Aminto, exclama: “Ó Aminto, tu és um sonhador imenso!” ao que este responde
Não há nada melhor do que sonhar. Eu penso
Que hei de
morrer assim. E seria um castigo
Cair nessa
nudez da realidade, amigo.
(Ato I, Cena I)
Mas a vida de sonho também é a do ser humano com preocupações
superiores, é a vida voltada para o Mistério da condição humana, e do cosmos,
como a do eremita em “O enigma”, com quem o poeta se assemelha no
seu isolamento. Neste soneto, o eremita, quando busca “decifrar o Mistério”, tem o
fulgor dum “sonho etéreo”. ”Etéreo” nos remete a “Prólogo” novamente, onde o poeta afirma
amar as estrelas, o “mirífico
esplendor” dos céus, o “impossível” (de alcançar, como as estrelas), a
“forma evanescente”.
O vocábulo “estrelas” -- a primeira palavra do primeiro verso de
“Ilusão” -- assim como “luz”, “céus” etc, será
recorrente ao longo do livro, em contraposição a “lodo’, “lama”, “charco”
etc, e simboliza os aspectos mais nobres do ser humano (o sonho), amados pelo
poeta, em contraposição aos seus aspectos mais vis (a realidade em que vive).
Para EP, o ser humano se debate, permanentemente, entre essas duas condições,
entre o espírito e a matéria. Essa oposição, explicita ou implicitamente,
aparecerá em diversos poemas de “Ilusão” (cf. “A mão...”, “Metamorfoses”,
“Lírio!”, “Um violão que chora...” III, “Canção do
Diabo”, “Para que todos que eu amo sejam felizes”, “À toi!”
e “Graças te rendo...” ).
O amor à estrela (ou aos objetivos superiores do espírito) é motivo de
orgulho para o “doido” sonhador, i.e. o poeta:
Porém que loucura mais rara e mais bela
Do que esse delírio de amar uma estrela?
(“A cigarra e a estrela”)
No soneto “Salomão”,
todas essas aspirações inalcançáveis (a realização do artista, o desejo de ser
só espírito, a conquista da glória) estão sintetizadas na imagem do diadema,
que o coração do poeta (comparado ao rei Salomão) quer ver um dia:
Tudo o meu coração tem do rei Salomão,
A glória, e o furor, o orgulho, e a crueldade;
Não ambiciona dez, nem cem,
nem um milhão,
Mas a terra, e o mar, o céu, e a infinidade...
Em tudo se
parece, em tudo é seu irmão,
O mesmo luxo até, a mesma vaidade,
O mesmo fausto ideal, como asas de pavão,
(*)
E esse requinte, enfim, essa ferocidade...
Quando
soará, porém, a hora maravilhosa,
Em que do alto de uma torre cor de rosa,
Novo
rei Salomão, ele, um dia, verá
Entre poeira e sol, ao longe, a caravana,
Onde em meio dum régio esplendor, que se ufana,
Fulge
o diadema da rainha de Sabá?
---------------
(*)
Cf. a comparação
Cabe
salientar, quanto a esse soneto, a frequência dos sons nasalados an, en,
on, além das rimas em ão, que criam assonâncias e rimas internas
para expressar a brandura e serenidade de suas “great expectations”.
Mais
adiante, no capítulo 3, item 3.3.2.a (“O poeta é um rei”), voltarei a tratar
desse poema.
b) A vida é um sonho
Mas a
associação da vida com o sonho também comporta uma outra interpretação:
se a Vida é um Sonho, ela não é real, não é a verdadeira realidade, que para o
poeta é a realidade transcendente.
Para EP, a vida é um sonho breve (essa idéia é recorrente em seus
versos, e aparece até mesmo em sua peça infantil “Vovozinha”) 8.
Como ele diz na “Oração da manhã”, de “Setembro”: “A vida, sonho vão, coisa leve e fugaz”. Na concepção do poeta, logo acordaremos desse
sonho e então será possível viver a verdadeira vida, que é a do espírito (para
um materialista, tal “sonho” representará a vida presente, o breve período em
que a matéria toma consciência de si mesma, para depois retornar à condição de
matéria bruta).
Pode-se
dizer, então, que EP tem perante a vida uma atitude semelhante à de
Shakespeare, quando fala pela boca de Prospero, em “A Tempestade”:
We are such stuff
As dreams are made on; and our
little life
Is rounded with a sleep. 9
(para
Shakespeare, nessa citação, o sono antecede e segue o sonho em que consiste
nossa vida).
A atitude de
EP também é semelhante à do protagonista de “La vida es sueño”, obra prima do
dramaturgo espanhol Calderón de la Barca (1600-1681):
Qué es la vida?
Un frenesí.
Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una
ficción,
y el mayor bien
es pequeño;
que toda la
vida es sueño,
y los sueños,
sueños son. 10
Além do
v.13, em “Prólogo” – “/.../ a vida, em
suma, é um grande e extravagante Sonho,” antes citado, EP afirma em “Para que todos que eu amo
sejam felizes”: “/.../ tudo é um sonho vago”
E em “A
cigarra e a estrela”:
Assim
que importava que essa brisa, em vão,
Em
vão suspirasse que era uma ilusão?
Que
importava a ela (*) que, triste ou
risonho,
Tudo
quanto via fosse apenas sonho?
---------------
(*)
= à cigarra
A verdadeira realidade, para
EP, como disse, é a realidade transcendente, a do espírito, uma
realidade superior, que ele aspira alcançar no futuro. EP é, portanto,
idealista em filosofia, o que, por si só, não é motivo para desqualificá-lo
como poeta junto a um leitor materialista (caso contrário, Dante também o
seria...).
Aparentemente, as idéias de EP
a respeito da realidade transcendente foram influenciadas pela filosofia hindu
e por Platão.
EP deve ter se familiarizado
ainda muito jovem com as concepções indianas do mundo, motivado pela leitura de
Schopenhauer e Leconte de Lisle, os dois autores que estão presentes em seu
primeiro livro, “Músicas”, de 1888 (cf. Nota sobre esse livro, nos “Anexos”), e
que valorizaram tal tradição cultural. O
filósofo é aí tema de um soneto, e o poeta francês é o autor de “Requies”
(que significa “repouso”, em latim), poema que EP traduziu e fez constar em
“Músicas”.
De acordo
com as concepções hinduístas, o mundo que percebemos pelos nossos sentidos e
idéias é um mundo ilusório, da aparência da coisa, não da coisa em si. A nossa
percepção da realidade está envolta pelo “véu de Maia”. Maia é o termo em
sânscrito que significa “ilusão”, “aparência”, decepção” segundo o dicionário
Houaiss 11. De
acordo com essa fonte, a palavra, na cultura hinduísta, designa “a ilusão fundamental em que está imerso o ser humano,
e que o impede frequentemente de contemplar a verdade infinita (Brama ou
brâman) que se esconde por trás do mundo fenomenal finito”. “Brâman”
então significa a “realidade primordial e
supra-sensível, origem e essência do universo”.
Segundo
ainda a mesma fonte, a alma humana (“atmã”), “quando se apercebe de sua verdadeira natureza, subjacente ao eu
empírico, identifica-se com o brâman (a dimensão essencial do universo)”
O Pe.
Leonel Franca, nas “Noções de História da Filosofia”, afirma que, para o
bramanismo, a
realidade
única é Braman, ente supremo, indivisível, iniciado, eterno. Dele, como de alma
universal do mundo—Atman, nascem as
almas individuais—atman, cintilas do fogo divino. /.../ O mundo fenomenal é uma ilusão. (grifo meu, DvE). Tudo
o que não é Braman não existe /.../
é o único bem, e fora dele, não pode haver senão o mal, a dor /.../ A união com
Atman é o meio de libertação da dor. A meta final de toda aspiração humana deve
ser a perda da própria individualidade, a imersão do próprio ser em Atman /.../
As almas, que ainda não conseguiram
elevar-se ao conhecimento destas verdades, enredadas pela ignorância da causa
primeira do sofrimento e, por isso, da existência, são condenadas a
transmigrarem de corpo em corpo até a purificação derradeira. Daí uma série de
práticas religiosas e ascéticas destinadas a acelerar o momento da
identificação e bem-aventurança final. 12
Por outro
lado, para o budismo, a “dor é universal”,
e sua origem “são as paixões, o desejo da
existência”. A dor se extingue com “a
supressão do desejo, o aniquilamento da existência, o nirvana, estado
final de extinção completa do ser, única felicidade a que deve aspirar o homem” 13
Schopenhauer reconheceu em Platão, Kant e no
budismo as fontes do seu pensamento. Esse filósofo partiu de Kant ao distinguir
o “mundo fenomênico” do “mundo noumênico”. Segundo ainda Leonel Franca, o mundo
fenomênico é o “mundo das aparências, dependente
das formas a priori do nosso espírito que se reduzem a três: espaço,
tempo e causalidade”. O mundo noumênico é o da “realidade em si”. Para Schopenhauer, “a realidade em si é a ‘vontade’”, o “instinto da própria conservação, o ‘querer viver’”, comum a
todos os seres, “essência de todas as coisas”.
E acrescenta ainda o mesmo autor que, para Schopenhauer, a
vida
humana não passa de uma cadeia de desejos não satisfeitos e a dor é a
verdadeira partilha da
humanidade./.../ Como alívio às desventuras da vida, Schopenhauer inculca o
estudo da arte, o cultivo da simpatia, e sobretudo a negação do querer viver, o
nirvana dos budistas 14
O
“Dicionário de Filosofia” de Gerard Durozoi e André Roussel, expondo em síntese
o pensamento de Schopenhauer, afirma que, segundo este filósofo,
A
salvação para o homem consiste em se libertar do querer-viver e portanto da dor
que é a sua expressão. A solução pode
ser encontrada na arte, que transforma em espetáculo o objeto do desejo; /.../
Porém, a libertação é fugidia pois não suprime o querer-viver, /.../ cuja negação
encontrará sua conclusão na resignação e no ascetismo, segundo a concepção
búdica de salvação, que preconiza a fusão no nada, no Nirvana.15
Mas o
querer-viver, a premência dos desejos, especialmente os de natureza erótica, o
poeta jamais conseguirá suprimir em si... (v. adiante os comentários sobre os
poemas com essa temática).
Leconte de Lisle, que está
presente, como disse, no primeiro livro de EP, compôs os poemas hindus
incluídos nos “Poèmes Antiques” (1a ed.- 1852; 2a. ed.
ampliada, com mais 23 peças- 1874).
De acordo com André Lagarde e
Laurent Michard, em “XIXe Siècle” --
volume de uma coleção dedicada à história da literatura francesa-- os
poemas hindus de Leconte abrangem poemas líricos (“Sûrya- hino ao sol, fonte de vida; “Oração
veda pelos mortos”), poemas épicos (“O arco de Civa”- resumo da primeira parte
do “Ramayana”; “Çunacepa”- epopéia e poema de amor) e sobretudo poemas
filosóficos- “Bhagavat”, “A visão de Brahma”, “A morte de Valmiki”.
Em “Bhagavat”, três brâmanes
(= membros da casta sacerdotal),
lamentam suas dores, mas a contemplação desse deus (Bhagavat) lhes trará
a paz interior: “Ils s’unirent tous trois à l’Essence
première...Tel est le remède à la misère humaine: se détacher de ce monde
qui n’est qu’illusion, pour remonter à l’Essence des choses.” (grifo meu,
DvE)
Em “A visão de Brahma”, ao deus Brahma é permitido contemplar o deus
supremo Bhagavat, que Leconte de Lisle evoca numa “magnífica” (segundo os
autores) descrição panteísta. Brahma, referindo-se à angústia humana, questiona
Bhagavat sobre o problema do mal.
Et Bhagavat lui
révèle le mot de l’énigme. En fait, c’est l’Illusion, la divine Maya, qui donne
au monde ses formes diverses, ‘esprit et corps, ciel pur, monts et flots
orageux’: rien de tout cela n’existe
en réalité, pas plus que les joies ou les souffrances qui ne sont que des
rêves:
Rien n’est
vrai que l’unique et morne Éternité:
O Brahma! toute
chose est le rêve d’un rêve. (*)
---------------
(*) Grifo
meu, DvE
Cette philosophie de l’Illusion, où la
seule réalité est le Néant divin, c’est celle des ascêtes, perdus dans la
contemplation jusqu’à mourir au monde extérieur.
E concluem aqueles autores:
La
philosophie de l’Illusion est loin d’être pour lui (Leconte de Lisle) une
simple curiosité exotique: source de paix intérieure, certitude du retour au
Néant qui est l’unique réalité, elle sera le grand remède aux misères humaines. 16
*
EP, como se verá mais adiante, anseia pela sua própria
extinção (cf. “Corre mais que uma vela...”) e tal atitude insólita é
explicada pela permanência das concepções hindus na obra madura do poeta. Ele
anseia, assim, por integrar-se ao “Nada divino” do bramanismo ou ao Nirvana
budista, que pode ser associado ao Inexpressível, ao Sublime, referidos em “Oh,
que ânsia de subir hoje mesmo a montanha” III. Mas aí também estarão
presentes elementos do cristianismo.
Assim, para EP, “tudo é um
sonho vago”, como ele diz em um de seus versos, nada é real,
verdadeiramente. O artista, semelhante ao asceta, está consciente que vive no
reino da ilusão. Ambos buscam a realidade essencial das coisas, a que está por
trás da beleza e da elevação espiritual que eles almejam.
O
termo “ilusão”, utilizado pelo poeta paranaense, aplica-se assim a tal maneira
equivocada de apreendermos o mundo, e identifica-se freqüentemente a “sonho”,
como assinalou Andrade Muricy, que todavia não se referiu à tradição hindu como
fonte de influência sobre o livro principal de EP (assim como não o fez outro
estudioso de EP, Erasmo Pilotto). Há sugestão disso, contudo, nesta passagem
dum artigo do jornalista Euclides Bandeira (1876-1947), amigo de EP, com quem o
poeta fundou o Centro de Letras do Paraná. Intitulado “A Psicologia do Poeta”,
integra o seu livro “Crônicas Locais” e foi republicado na revista daquele
Centro:
Assim,
estamos ainda que é exatíssima a conclusão a que chegou, analisando-o
minudentemente, o seu dedicado e inseparável amigo o ilustre dr. Santa Rita: “não
se procurem nele, portanto, doutrinas nem filosofias.” Procure-se,
realmente, o poeta, que ele o foi, na acepção mais alta, perfeita e rara do
vocábulo. E como poeta, numa ânsia douda e sempre insatisfeita, fosse onde
fosse, por toda parte, esvoaçou a recolher tudo quanto ao verso pudesse
emprestar inéditas vibrações ou filigranas ornamentais. Foi à pompa do
aparatoso rito católico, ao perfume oriental do budismo,ao “delírio
anárquico-religioso de Tolstoi”, ao super-homem de Nietzsche, ao pessimismo
de Schopenhauer e não hesitaria em
escandir um soneto ao misterioso ritmo tiptológico (*) de uma mesa falante se
nisso pressentisse recônditas sonoridades.17
---------------
(*) Tiptologia=
“1) Experiência a que procedem os espíritas, com mesas giradoras, chapéus, etc.
2) Comunicação dos espíritos por meio de pancadas.” (dic. Aurélio)
Naturalmente, a contribuição
do cristianismo também deve ser acrescentada a essas concepções da filosofia
indiana, a fim de obtermos uma visão mais completa do modo como EP (de formação
judaico-cristã e filho de cristão-novo português) considerou este e o “outro
mundo”. Nesse terreno, assim como no
plano da estética, ele se revela um eclético.
*
Quanto a Platão, cujas
concepções também devem ter influenciado EP,
Leonel Franca afirma que esse filósofo aprofunda a teoria de Sócrates e
procura
determinar a relação entre o conceito e a realidade fazendo deste problema o
ponto de partida da sua filosofia.
A ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve
corresponder a realidade. Ora, de um lado,
os nossos conceitos são universais, necessários, imutáveis e eternos
(Sócrates), do outro, tudo no mundo
é individual, contingente e transitório (Heráclito). Deve, logo, existir, além do fenomenal, um outro mundo de
realidades, objetivamente dotadas dos mesmos atributos
dos conceitos subjetivos que as representam. Estas realidades chamam-se Idéias. As idéias não são, pois, no
sentido platônico, representações intelectuais, formas abstratas do pensamento, são realidades objetivas,
modelos e arquétipos eternos de que as
coisas visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim, a idéia de
homem é o homem abstrato
perfeito e universal de que os indivíduos humanos são imitações transitórias e defeituosas.
Todas as idéias existem num mundo separado, o mundo
dos inteligíveis, /.../, situado na esfera celeste 18
Mais adiante, o Pe. Franca
acrescenta que, para Platão, a parte superior ou racional da alma
é
livre, espiritual e imortal. Preexistindo ao corpo – “túmulo que arrastamos
conosco como o caracol arrasta a
concha que o envolve" –a ele se une violentamente em punição de algum delito. Platão admite a
metempsicose. Neste estado de união possui duas espécies de conhecimento: o dos fenômenos ou sensível,
provável e conjetural e o das idéias ou racional,
certo e científico. Entre um e outro a relação é meramente extrínseca, servindo
a percepção dos fenômenos apenas de ocasião para despertar ou evocar a
lembrança das idéias contempladas na vida anterior. O verdadeiro conhecimento
é, pois, uma reminiscência, “scire est reminisci”,
reminiscência que explica a maiêutica de Sócrates 19
Como se sabe, Platão ilustrou
suas concepções sobre o outro mundo com a alegoria da caverna. Segundo o
“Dicionário Oxford de Filosofia”, tal alegoria, apresentada na “República”
(livro VII, 514-518), foi utilizada por Platão
para
mostrar os níveis em que nossas naturezas podem ser iluminadas ou não. No
primeiro nível estão prisioneiros, amarrados de tal maneira que conseguem
perceber apenas sombras na parede da caverna. São sombras de objetos
artificiais, e a luz vem de uma fogueira. Para eles, a realidade é constituída
apenas pelas sombras desses objetos artificiais.
Mas, se um prisioneiro se soltar das amarras, poderá voltar-se e ver, primeiro,
os próprios objetos artificiais, depois o fogo, seguindo-se então o mundo real
e, por fim, o Sol. Cada estágio dessa
ascensão será difícil e estranho e, no fim, o indivíduo iluminado será incapaz
de comunicar seu conhecimento aos prisioneiros que ficaram na caverna. Platão
diz que a ascensão descrita simboliza a viagem da alma até o inteligível (as
formas),identificado com aquilo que é verdadeiramente real. 20
A propósito de “sombras na
parede da caverna”, na poesia de EP, a palavra “sombra” aparece com frequência
junto com “ilusão” e “sonho” em “Solidão”:
Onde
quer que eu, andando, te encontrasse,
Ó
sombra, ó sonho, ó ilusão falace
Também no soneto “Prólogo”,
transcrito anteriormente, esses termos aparecem próximos uns dos outros.
c) A ânsia de elevação
espiritual. A Glória é o Paraíso.
Para EP
existe uma realidade alternativa, um “outro mundo” (v.4), que lhe desperta
vagos sentimentos saudosistas, conforme o soneto “Vozes”, transcrito
abaixo:
Ó
rumor ideal! O ilusão secreta!
Vozes
tristes, vozes doces que me chamais,
Com
a saudade cruel e a lembrança completa
De
um outro mundo, que eu perdi, não acho mais.
5 Vozes antigas como as barbas d’um profeta,
Ó
vozes de paixão, ó vozes de metais,
Ó
vozes que feris a minha alma inquieta,
Vozes
de multidão ruidosa sobre o cais... (1)
Vozes
lindas assim como um efebo louro, (2)
10 Vozes, filhas, não sei, das entranhas do Ar,
Vozes
d’Apolo e de marfim e prata e ouro... (3)
Ó
vozes de embriaguez, ardentíssimas vozes ,
Vozes,
bem como se quebrasse, ao longe, o mar, (4)
Sob
penhascos nus e rochedos atrozes!...
---------------
(1) “Cais” sugere o mar, que por sua vez sugere a viagem
(final) por ele: v. comentário mais adiante
(2) Efebo= “na Grécia antiga, rapaz que atingiu a
puberdade”
(3)
Cf. o
polissíndeto; Apolo= deus do sol, e também das belas-artes, da música e da
poesia; em Delfos, era muito frequentado o oráculo de Apolo (cf. “Dictionary of
Classical Mythology”, de J.E.Zimmermann. New York, Bantam Books, 1985-p.26 e
183)
(4) Cf. a comparação
Em “Durante uma enfermidade”,
o poeta doente esquecerá do sabiá, que o alegrou com seu canto, como tem
esquecido de “tanto sonho bom” que dormiu
no fundo de seu ser, e que ele não pode mais ver de novo. A palavra “virgem”
produz a sugestão de uma “vida anterior” (cf. Baudelaire), antes da experiência
da vida atual:
Hei
de esquecer-te, coração querido,
Como
de resto tenho-me esquecido
De
tanto sonho bom, por esse mundo,
De
tanto sonho que dormiu no fundo,
Bem
lá no fundo virgem do meu ser,
Sem
que o pudesse mais tornar a ver:
Baudelaire, segundo os
“Classiques Larousse” 21,
possivelmente, adotava as idéias sobre a metempsicose (reincarnação) de
Pitágoras, Platão e dos hindus. EP também parece adotar tais concepções, como
sugerem os versos citados. Assim, os seres humanos poderiam viver várias vidas,
antes de alcançarem o Paraíso, no final
de sua evolução espiritual, incorporando aqui a concepção cristã, presente, por
exemplo, na “Divina Comédia” (o ecletismo de EP, como já foi dito, não é só
estético mas abrange também concepções religiosas). A adoção, por parte de EP,
de tais idéias explica a recorrência em seus versos do animismo relativo aos
elementos dos três reinos da natureza, o que é também explicado pela adoção das
idéias de Schopenhauer relativas à “vontade da natureza”.
O poeta, acreditando na
existência de uma realidade superior, anseia por integrar-se nela (daí a
recorrência, nos versos, do poeta vendo a si mesmo morto, ou vendo o seu
enterro, como se já fosse só espírito, livre da matéria: cf. poemas “Vencidos”,
“Ideal”, “Para ela”, “Um violão que chora...” VIII
e “Tristeza”). Assim expressa o seu desejo de elevação espiritual:
Toda
a minha ânsia é de subir como uma prece,
Toda
a minha ânsia é de brilhar como um clarão. (“Quadras”)
O poeta conclui o último poema
de “Ilusão”, “Sol”, desenvolvendo esta bela comparação:
--
Ah! que sombria dor e que profunda mágoa
De
não poder ser eu aquela gota d’água,
Que
depois de fulgir, assim como uma estrela,
Derrete-se
na luz, funde-se dentro dela!.
O volume “Ilusão” assim é
concluído referindo-se às estrelas, tal como começara (cf. “Prólogo”).
O anseio de perfeição que ele
tem e o desejo de glória (cf. “O meu orgulho levantou-me”) estão
relacionados ao de elevação espiritual: o artista sente a ânsia “de subir”, a ânsia “de brilhar como um clarão”.
Desse modo, o desejo de glória, que EP
expressa em muitas ocasiões, está intimamente associado ao desejo de
imortalidade, de superar a sua condição humana e integrar-se no divino:
/.../
poder subir a escada do Sublime,
/.../
poder chegar até o Inexpressível.
Os versos acima constam de “Oh!
que ânsia de subir hoje mesmo a
montanha!” III, cujo título abrange, na realidade, três poemas. Nestes,
a montanha é o símbolo da elevação
espiritual, a ser conquistada a duras penas, por um caminho árduo:
Pra
o subires, porém, é uma luta vã
Tens
de sangrar as mãos e os pés naquele espinho,
................................................................................
E
é além daquele mar, e além daquele abismo, (*)
.................................................................................
E
ainda além, e ainda além de tudo quanto
vês...
---------------
(*)
Cf. conotações de “mar”, mais adiante
Em “Fogo sagrado” (do
livro “Setembro”) -- que Alfredo Bosi destacou como um dos melhores poemas de
EP 22 -- o Sol e
o Vento vão arrebatar aos Céus o cavaleiro, que é excepcionalizado pela sua
indumentária (como em “Cavaleiro”), e pela menção ao sete-estrelo que o
cobre, permitindo-nos associá-lo ao artista, ou idealista, elevando-se ao seu
próprio mundo (o sete-estrelo é a “Constelação
de sete-estrelas; as “Plêiades” e expressa “Fatalidade
prodigiosa” segundo Andrade Muricy 23). A
concepção desse “sonetilho de octossílabos de ritmo encantatório” (nas
palavras de Bosi) parece diretamente
inspirada pela passagem bíblica (2 Reis 11) em que o profeta Elias sobe aos
céus num carro de fogo, no meio dum redemoinho.
“Glória” está ambientado
no “outro mundo”, e é composto, como
muitos outros poemas, com elementos da mitologia grega. Nele aparece Caron, o barqueiro
encarregado de transportar os mortos para o Hades (ou Orco, nome romano), a
região do Além a eles reservada. Para chegar até lá, eles têm que atravessar os
rios Estígio e Aqueronte. Por isso, costumava-se, na Antiguidade, colocar uma
moeda na língua dos defuntos para que eles pagassem por essa travessia 24. No soneto, quando
o poeta “descer às margens” do Estígio, para atravessá-lo na barca de Caron, e
Eu
tiver de rolar no olvido, que me espera,
Que
ao menos possa ver o palácio radioso,
Feito
de louro e sol e mirto e ramos de hera!
Ocorre aqui, portanto, uma
identificação da Glória (cf. a metáfora de seu “palácio”) com o Paraíso.
Como vimos acima, o poeta anseia por ele, anseia por “brilhar como um clarão”. Mas pela sua predisposição pessimista (o
artista é pessimista), é o olvido que o espera, e não a glória, recompensa aos
grandes poetas, a seu ‘mestre’ Ovídio, por exemplo (cf. “Ovídio”). Note-se, no último verso citado, além do
polissíndeto, a “matéria- prima” vegetal de que é feito o palácio. Ela era
utilizada, na Grécia antiga, para coroar os maiores poetas, e simbolizam a
conquista da glória.
Mas essas aspirações superiores
são causa de sofrimento no poeta ( o artista é infeliz ), que desejaria por
isso ser outra pessoa, sem “ambições do que não
viu”, conforme os poemas “Solidão” I a IV, em que
EP faz o elogio da vida simples.
O artista, identificado com o
eremita em “O enigma”, é concebido como alguém que desenvolve sua
atividade na fronteira do mundo
alternativo. Ele está
Cansado
de querer decifrar o Mistério,
Cujo
limiar tocou, mas sem
poder entrar,
Como
os sons, como os sons longínquos dum saltério
Que
se fanassem com a Luz crepuscular...
O saltério é um instrumento
musical de cordas, com que se acompanhavam os salmos 25. EP faz aqui uma comparação
interessante entre uma situação, caracterizada pela proximidade do Mistério (de
sua solução), e a audição de sons de um saltério, que desaparecem quando a luz
do dia também desaparece. Os sons, associados à luz, sugerem a proximidade do
Paraíso, onde os anjos, segundo a tradição, tocam instrumentos de cordas,
enquanto “luz” é recorrente nos poemas do livro como símbolo das dimensões
superiores do espírito.
Em “Vencidos”, os poetas
são chamados “agoureiros da Treva, advinhos
da Lua”, reforçando a sua vinculação ao Mistério, além de serem também
chamados de “menestréis da rua”, mais uma
das muitas referências medievais dos poemas.
A “Mão
Ideal e branca”, de “A mão”, procede de uma outra realidade,
misteriosa, e está associada ao bem (que para EP se identifica com o
belo). Assim, a mão representa o caráter salvador do mundo transcendente (da
Arte, do Espírito), em favor do poeta,
qualificado de “cego”, por não poder ver a realidade do “outro mundo”:
...Donde
veio essa mão nervosa, que me arranca
Dos
abismos do mal, a Mão Ideal e branca,
A
mim, que nem sequer mais acredito em Deus?...
d) A opção simbolista. A Felicidade, a Beleza e a Ilusão
Em “Prólogo”, além da
declaração de amor pelas estrelas, pelo “mirífico
esplendor” dos céus, pelo “impossível”,
menciona-se também o amor pela “forma
evanescente”.
Nessa menção à forma,
introduz-se a estética correspondente à concepção filosófica adotada, vale
dizer, o “parti pris” simbolista, com sua predileção pelo vago, o indefinido, o
evanescente, distante da nitidez da escola parnasiana, então predominante, que
preferia descrever a sugerir. Como se sabe, EP pertenceu ao primeiro grupo de
poetas, estabelecido no Rio de Janeiro, que defendeu o ideário simbolista e
iniciou tal movimento na literatura brasileira.
EP recorre, como os místicos, à
linguagem das imagens, das metáforas, para expressar o vago, o evanescente,
relativo a coisas que não compreende mas o atraem, conforme a proposta
do Simbolismo, pelo qual ele opta
(embora, como se viu, apenas uns vinte poemas de “Ilusão” sejam, a
rigor, simbolistas. O livro, esteticamente heterogêneo, contém mais de cem
poemas, datados entre 1897 e 1911 - cf. a “Relação dos poemas” no final deste trabalho).
Em “Felicidade”, o poeta,
correndo atrás dela,
personificada, como uma mulher, seguindo “seus passos de veludo” (cf. a sinestesia), acabaria numa
“cidade” assim descrita (a Feli-cidade), com imagens que tentam expressar a
beleza estranha desse mundo alternativo:
Seria
uma cidade, que eu não vira,
Com tantas torres brancas para o
ar,
Cidade d’oiro antiga, de safira,(*)
Batida pelos ventos, pelo mar...
---------------
(*)
Safira= “Pedra preciosa /.../ cuja cor varia do azul-celeste ao azul-escuro”
(dic. Aurélio)
O poeta faz, nesse poema, o
elogio da Felicidade. Ela é:
O
pão da minha fome de beleza,
O
meu orgulho, a púrpura dum rei...
Ocorre assim uma identificação
da Felicidade com a beleza, coerente com a citação de Stendhal que EP escolheu
para epígrafe do poema “Versos doirados” – “La
beauté est une promesse de bonheur”.
A Felicidade o embriaga com os
enganos, “A
música de pérolas d’Ofir” (cf. a sinestesia). Em seu encalço,
O
lírio e o vale e o serro e o mar e eu,
Fugiríamos
todos atrás dela, (*)
Envolvidos
na túnica d’Orfeu.
---------------
(*)
Note-se a ousadia da metáfora “cinética”, na qualificação de A.Muricy, e a
presença de um polissíndeto no verso anterior. Orfeu: o mais famoso músico e
poeta da mitologia grega, marido de Eurídice (cf. J.E. Zimmerman, op cit, p.
186)
Ele nunca pensou que houvesse
Reinos
tão lindos, doces como mel... (1)
E
que florido céu! que ânsia! que vago
Som
mavioso! que luar! que flor! (2)
Eu
dormiria ao fundo desse lago, (3)
Abraçado
contigo, meu amor...
Mas, no final, reafirmando o
pessimismo do artista,
Tudo
feneceria, como a estrela, (1)
`A
luz forte, hiperbólica do sol,
................................................
Tudo
por terra havia de rolar,
................................................
Tudo
se acabaria, ó luz tranqüila, (3)
Ó
ilusão dulcíssima! Ó ilusão!
E
eu sempre com a esperança de possuí-la,
Mas
sem tocá-la nem sequer com a mão...
---------------
(1) Cf. a comparação
(2) Mavioso= suave, doce, harmonioso (dic. Aurélio)
(3) Cf. a metáfora
Verifica-se, como se vê, uma
identificação entre Felicidade (= “luz
tranquila”), beleza e ilusão, ou seja, a identificação do objeto do
anseio do artista com o mundo transcendente, pois a beleza terrena é
sobrepujada por outra superior, conforme está expresso em “A cigarra e a estrela”.
e) A viagem pelo mar
Para chegar até o mundo
transcendente, é preciso fazer a viagem final, sempre associada à imagem do
mar, que exerce atração sobre ele.
Por que essa associação?
Certamente, porque as longas viagens ocorriam
pelo mar, no tempo de EP (viagem ao Rio de Janeiro, à Europa...). Além
disso (e esse deve ser o motivo mais importante), porque “mar” se contrapõe a “terra” -- entendida não só como a terra firme, o
continente, mas também como o nome do planeta (ou deste mundo)... Assim, sempre
que o poeta se refere à viagem para o “outro mundo”, ocorre a evocação da
imagem do mar, também evocado, naturalmente, por causa da carga de beleza e
mistério que a sua idéia contém.
O soneto “O brigue”, de
“Setembro”, descreve, em seus doze primeiros versos, o navio à vela amarrado ao
porto, inquieto, pronto para partir. E nos dois versos finais, o poeta exclama:
Ó
quando eu poderei, também, partir, ó quando?
Eu
que não sou da Terra e que à Terra estou preso?
“Ode à solidão” sugere
essa viagem para o mundo transcendente, explorando o fato de que a morte é
solitária, por natureza. O poema, que explora habilmente os sons sibilantes,
inicia assim:
Vamos,
é tempo de se abrir a mão de tudo,
E fugir de uma vez,
Desses
caminhos de sândalos e veludo,
Doirada embriaguez...
É
tempo de dizer a tudo quanto passa
O meu adeus final,
`As
rosas e aos rosais,
à mocidade e à graça,
Tudo que me fez mal.
Logo adiante, o poeta,
estabelecendo um contraste entre o silêncio reinante e o som do mar, afirma:
No meio do silêncio imenso
que me cobre,
Assim
como um capuz, (*)
Como é bom de escutar o mar quebrando sobre
Esses
rochedos nus...
É a mesma cousa que se
habitasse um castelo,
E é o
único lugar,
Onde eu me sinto grande, onde eu me sinto
belo,
Em face
deste mar...
---------------
(*) Cf. a comparação
A solidão (sempre associada ao
silêncio) o aproxima do “outro mundo”, pois exala um perfume (“essências ideais”) que o prenuncia:
Que
essências ideais eu respiro!
Nenhuma
Outra região assim
Tem
esse cheiro bom. A solidão perfuma
Como um jasmim... (*)
---------------
(*)
cf. a comparação
É aí que ele encontra o caminho
a ser percorrido em sua viagem final:
És
o retiro, a paz, o sonho, e esse caminho
Que eu sempre quis,
O
caminho ideal, por onde eu vou, sozinho
E triste, mas
feliz. (*)
---------------
(*)
Cf. o paradoxo
A imagem do mar está associada
não só à idéia de morte mas também à de esperança: cf. menção ao “verde” nestes
versos de “Veio”:
Este
verde de mar, como um sono tranqüilo,
Este
límpido céu azul, como um gorjeio,(*)
---------------
(*)
Cf. as comparações, indicadas por “como”
O “céu azul” aí, além de
apontar para o mundo transcendente, sugere também felicidade e alegria, por
causa da menção a “gorjeio”, que contém a sugestão de beleza, “promessa de felicidade” , como se viu, e de
alegria, conforme a epígrafe de Keats – “A
beleza é
uma alegria eterna” – que
EP fez constar, em português, em seu poema “Pena de Talião”. Assim, o
céu pressupõe felicidade e alegria, implícitas na idéia de beleza.
No céu de EP, como no de
Baudelaire, “tout n’est qu’ordre et beauté”
26
Também em “Vozes”,
depois destas sugerirem a lembrança de um “outro mundo”, e de se referirem às “Vozes de multidão ruidosa sobre o cais ... , há
esta referência ao mar:
Vozes,
bem como se quebrasse, ao longe, o mar
Sob
penhascos nus e rochedos atrozes!..
Em outro poema, a região que
ele avistará, quando embarcar, é assim caracterizada:
...........................................................................
De
pé no tombadilho, em frente, à minha vista,
Eu
veria passar o que não vi jamais,
A
não ser através dos meus sonhos d’artista:
--
Encarnações febris, diademas imperiais ...(1)
E
cegueira ideal e vã de quem se esconde,
E
loucura de quem fugiu duma prisão,
E
doido, sem saber de nada, nem para onde, (2)
A
correr, a correr atrás duma ilusão!
Ó
terras de mistério, ó terras de mantilha,
Ó
terras onde o céu é como a flor-de-lis, (4)
Quem
me dera dormir, folha de mancenilha (3)
Debaixo
de teu manto azul d’imperatriz!
Reinos
antigos, ó paisagem de romance,
Como
uma rosa que fenece num jardim, (4)
Ah!
que bom! ah! que bom! de vê-los de relance,
Com
castelos feudais, com torres de marfim!
Rainhas
como flor, graciosas donzelas, (4)
Com
gestos e com voz que me causam prazer,
Como
seria bom que, ansiado para vê-las,
Eu
as vendo uma vez, não as tornasse a ver ...
(5) (“Versos para embarcar”)
---------------
(1)
Cf. a menção a “diadema” no último verso do soneto “Salomão”, citado antes
(2) Cf. recorrência de “doido”, ou “doudo”. A respeito desse vocábulo, as Notas à edição crítica de
“Ilusão & outros poemas”, op cit, p. 215, afirmam o seguinte: “A palavra doudo,
conforme observa Erasmo Pilotto, faz parte da manifestação da sensibilidade
inquieta e antivulgar de Emiliano Perneta e funciona como truculento
para Gautier, e enorme para Flaubert”
(3) Mancenilha= tipo de árvore; cf. a metáfora: “manto
azul” (do céu), no v. seguinte
(4) Cf. a comparação
(5) Ver mais de uma vez as banalizaria. O poeta quer ficar
só com aquela lembrança única, só com o
sonho...
É importante, todavia,
assinalar que os versos sempre mantém sua ambiguidade, possibilitando
interpretação alternativa. Neste poema, por exemplo, “embarcar” também pode
sugerir uma viagem mesmo, sem sentido figurado, viagem para outras regiões do
planeta, no caso, a Europa: “mantilha”, palavra oriunda do espanhol, sugere
mistério e conotações ibéricas; “flor-de-lis” é “uma
referência heráldica à França”, nas palavras de Andrade Muricy 27. A França é, para
EP, a pátria do sonho, o país associado à Arte e aos simbolistas, que lhe
forneceram o ideário estético. Em “À toi!” está subentendida uma
declaração de amor a ela.
f) A alma liberta
Nos dísticos de “Coração livre”,
o poeta enfim está liberto do cárcere (“ergástulo”) do corpo. Agora está feliz,
libertou-se de um “cárcere azul,
cárcere de
veludo”, i.e. da
vida dedicada à arte, ao ideal, ao amor, que, todavia, o fizeram sofrer.
Em sua ambiguidade, o poema também
pode ser lido como referente ao
“coração livre” de uma relação amorosa apenas. Há aqui, todavia, uma
reiteração das idéias contidas nas duas primeiras estrofes de “Ode à solidão”
citadas anteriormente, o que requer uma interpretação compatível.
Assim o poeta se refere ao
cárcere:
.................................................................
A
esse cárcere azul, cárcere de veludo,
Mas
cárcere cruel, que te fez tanto mal,
Não
tornes nunca mais, ó vagabundo ideal.
(note-se, no último verso
citado, a referência à reencarnação).
A propósito, a idéia de cárcere
também aparece em “Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!” I: cf.
menção a “enxovias”.
O poeta, libertando-se desse
cárcere peculiar, libertou-se igualmente do tédio (“enojo”). Ele se rejubila
assim com essa liberdade recém-conquistada:
Livre.
O espaço é teu, é teu todo esse ar
É
somente bater asas e voar...
(a metáfora
do “coração livre” é o “pássaro erradio”)
........................................................................
Segue. Na fonte em que beber a ovelha, em paz,
Com as tuas próprias mãos, tu também beberás.
E a árvore sob a qual dormires o teu sono,
Há de dar-te abundante os seus frutos de outono.
(i.e.,as
promessas do mundo transcendente)
E que perfume bom! Que embriaguez assim
Por esse vasto céu, por esse azul sem fim!
(cf. a referência ao “perfume”;
novamente, ocorre a antecipação do “outro mundo” pelo sentido do olfato, já
referida antes, no comentário à “Ode à solidão”. Por outro lado, em “O
enigma”, como se viu, esse mundo é antecipado pela audição, pelos sons do
saltério).
O dia é uma canção de luz maravilhosa,
Que se pudesse ouvir cantar por uma rosa... (*)
Segue pois, segue pois, sem saber onde vais...
Nômade, o teu destino é esse e nada mais!
---------------
(*)
Cf. a personificação nesse verso, e a metáfora e a sinestesia do verso anterior
*
Em suma, o termo “Ilusão”, que
dá o título ao principal livro de EP,
expressa, de um lado, algo que todos os poemas têm em comum, ou seja, a
busca, pelo poeta, da Beleza, que é promessa de Felicidade. Mas essa promessa só se cumprirá num “outro
mundo”, que por isso ele aspira alcançar.
De outro lado, a palavra
expressa a consciência do poeta de que “tudo é
um sonho vago”, de que o mundo é aparente e por trás dessa aparência
existe uma outra realidade, à qual pertencemos e da qual temos vaga lembrança.
Essa realidade alternativa será revelada
quando o Mistério for decifrado, ao final da vida ou da viagem pelo mar. Sobre o Mistério nada sabemos hoje, ou a
Ciência nada sabe (cf. “Christe, audi nos”, de “Setembro”: “A Ciência é um pobre monge estudando o abc”).
Mas a revelação do Mistério é pressentida nos domínios da Arte ...
Notas
ao capítulo 3.1
1
Os versos de “Ilusão” citados neste trabalho, assim como os de “Pena de Talião” e “Setembro”, foram extraídos de “Poesias Completas
de Emiliano Perneta”- 2 v.- Rio de Janeiro, Livraria Editora Zélio Valverde,
1945 (também os de “Músicas”, citados nos
Anexos).
2
ARAÚJO, Murillo – “A arte do poeta”, 2a ed., Rio de Janeiro,
Livraria São José, 1956, p. 91.
3
“Obras Completas de Emiliano Perneta”- v.1- “Prosa”- Curitiba, Gerpa, 1945, p.
13
4 Ibidem, p. 23
5
Ibidem, p. 252
6
MERQUIOR, José Guilherme – “De Anchieta a Euclides: breve história da
literatura brasileira”-I. 3a. ed.-Rio de Janeiro, Topbooks, 1996,p.
184
7
MURICY, Andrade – “Emiliano Perneta”. Col. “Nossos Clássicos” nº 43- 2a
ed., Rio de Janeiro, Agir, 1966, p. 28
8
A peça, que permaneceu inédita por muitos anos, foi afinal publicada como parte
integrante do livro “Emiliano Perneta”, de José Nicolau dos SANTOS, Curitiba,
Editora da Universidade Federal do Paraná, 1982, pp.121-141 (essa peça é de
1917, e sua música foi composta por Benedito Nicolau dos Santos, pai do autor).
EP também é autor de “Papilio Innocentia”, poema–libreto, escrito em 1913,
baseado no romance “Inocência”, do Visconde de Taunay, para a ópera de Léo
Kessler (1882-1924). Cf. MURICY, Andrade -- “Emiliano Perneta”, Col. Nossos
Clássicos- op. cit., p.4 e 88. Em suas memórias, Muricy afirma que esse músico
suíço chegou a Curitiba em 1911, “dirigindo a orquestra de uma companhia de
operetas alemã”. Com a dissolução da companhia, o músico permaneceu na cidade.
Afirma ainda que “Papilio Innocentia” foi considerado pelo musicólogo Luiz
Heitor Corrêa de Azevedo “o melhor libreto de ópera brasileira” (cf. MURICY,
Andrade- “O Símbolo à Sombra das Araucárias”. Conselho Federal de Curitiba e
Departamento de Assuntos Culturais, 1976- p. 348-349).
9 SHAKESPEARE, William- “The Tempest”, IV, I, London, Penguin, p. 120
10 Apud “La Literatura
Española en los Textos”, por Felipe B. Pedraza JIMÉNEZ e Milagros Rodríguez
CÁCERES- São Paulo, Nerman; (Brasilia-DF) Embajada de España, 1991- p. 123
11
“Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”- 1a. ed.- Rio de Janeiro,
Objetiva, 2001
12
FRANCA, Pe. Leonel—“Noções de História da Filosofia”, 14a. ed.- Rio
de Janeiro, Agir, 1955- pp.21-22
13
Ibidem, p. 24
14
Ibidem, p. 185
15
DUROZOI, Gérard e ROUSSEL, André – “Dicionário de Filosofia”- Campinas,
Papirus, 1993- p.427
16 LAGARDE, André e MICHARD,
Laurent – “XIXe Siècle”- Collection Littéraire, Paris, Bordas, 1983, pp.
410-411
17
Revista Centro de Letras do Paraná- nºs 24-25-26, vol. 64-66, Curitiba,
1964-1966, pp.5-7
18
FRANCA, Pe. Leonel – “Noções de História da Filosofia”- op. cit., pp.
49-50.
19
Ibidem, p. 51
20
BLACKBURN, Simon – “Dicionário Oxford de Filosofia”- Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1997- pp.251-252
21
“BAUDELAIRE – Pages Choisis”. Classiques Larousse. 17e édition. Paris,
Larousse, s/d, p. 19- nota
22
BOSI, Alfredo—“História Concisa da Literatura Brasileira”, 3a. ed.,
São Paulo, Ed. Cultrix, 1987, p.318
23
MURICY, Andrade- “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”- Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Saúde/INL, 1952- v. III- cf. Glossário, p. 330
24 ZIMMERMAN, J.E.—“Dictionary
of Classical Mythology”. New York, Bantam Books, 1985, pp. 58-59
25
MURICY, Andrade- “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, v. III, op
cit, p.328
26
Apud CARPEAUX, Otto Maria – “História da Literatura Universal”- v. V, Rio de
Janeiro, Ed. O Cruzeiro, 1963, p.2254
27 MURICY,
Andrade- “Emiliano Perneta”. Col. “Nossos Clássicos”, op cit, p. 28
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