quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


3.1- TUDO É UM SONHO VAGO



Iniciemos este passeio pelos poemas de EP, especialmente os de seu livro principal-- “Ilusão”, procurando identificar as implicações desta palavra-título, pois isso certamente contribuirá para melhor compreendermos a visão de mundo do seu autor. Ao mesmo tempo, serão ressaltados -- não só neste capítulo, mas também nos seguintes -- os aspectos formais considerados de maior interesse. 
 
Logo de início, a palavra “Ilusão” já aparece, junto com “Sonho”, nos versos que fecham o primeiro poema daquela coletânea, o soneto “Prólogo”, profissão de fé estético-filosófica de EP1 :

Estrelas que luzis na abóboda infinita,
Inquietamente, assim, com um olhar que fascina,
Vendo-vos palpitar, meu coração palpita, (1)
Mordido de paixão por essa luz divina...

5          Largos céus ideais, região diamantina,
Mirífico esplendor, ó pérola esquisita,  (2)
Quanta cobiça vã, que nunca se imagina,
Quanto furor enfim o ânimo me excita!

É o impossível, pois, que eu amo unicamente,
10        A névoa que fugiu, a forma evanescente,
A sombra que se foi tal qual uma visão...  (3)

E por isso também, por isso é que eu suponho
Que a vida, em suma, é um grande e extravagante Sonho,
E a Beleza não é mais do que uma Ilusão!” 
              ---------------
(1)     Cf. a personificação das estrelas
(2)     Cf. as metáforas
(3)     Cf. a comparação 

Pascal sentia-se atemorizado pelo silêncio dos espaços infinitos (“Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie.”). EP, ao contrário, sente-se atraído, arrebatado, por esses “céus ideais”...

As imagens empregadas para caracterizar os “céus ideais”, nos vv. 5-6, que evocam a textura peculiar do diamante e da pérola, realçam simultaneamente a beleza  e o caráter  precioso desses “céus” para o poeta.  Além disso, a freqüência com que ocorre a vogal i, essa “vogal estridente 2 , ao longo do soneto  (cf. as rimas dos dois quartetos e as tônicas de diversas palavras dentro dos versos, como “luzis”, “mordido”, “mirífico” etc) enfatiza a intensidade da emoção daquele que contempla as estrelas. 

a) Ilusão: arte & vida 

            O vocábulo “Ilusão” pode estar associado à idéia de beleza, aquilo que o poeta (ou o artista, de modo geral) busca, em sua atividade criadora, destinada a obter um produto – no caso, feito de palavras -- que a contenha, como a contém uma obra-prima da música ou da pintura. O artista a persegue sofregamente, com “furor” – para usar um termo caro a EP –  mas essa busca é frustrante: a beleza foge aos seus esforços no sentido de apreendê-la, ela o ilude constantemente, dadas as limitações da sua condição imanente. O artista, sempre insatisfeito, condenado a estar sempre aquém do desejado, esforça-se, contudo, por “iludir a cruel Decepção!...” (“O enigma”) (doravante, quando não for citado o livro de onde provém o poema, entenda-se que ele provém de “Ilusão”).

            Em “Alegoria”, seu livro em prosa de 1903, EP afirma que os artistas “viviam todos esfomeados de beleza. E era tanto furor com que a sentiam que não a possuindo lutavam por fazê-la...3.  Para ele, a arte é artifício:  “através do artifício é que tudo era belo. ‘Ars artificium est’. Quanto mais artifício mais encantação e mais esquecimento.”4  E em carta a seu amigo Santa Rita Jr. afirma: “cada um de nós tem a obrigação de ser o que é, sobretudo em arte, onde o próprio artifício deve ser uma ilusão perfeita e verdadeira.

Assim, o artista busca, ludicamente, com os artifícios da obra de arte, produzir determinados efeitos na sensibilidade do seu público. A concepção da arte como atividade lúdica é a “diferença decisiva” entre a poesia moderna e a simbolista, segundo J.G.Merquior (para quem o simbolismo tem uma concepção “salvacionista, regeneradora e redentora da criação artística”) 6. Então, quanto mais prevalecer o caráter lúdico na poesia de EP, tanto mais “moderno” ele o será...      

Num dos sonetos da série de D.Juan, essa figura mítica é comparada ao artista, e em outro (“Não sei que poeta...”) é considerada “o símbolo dum sonho” e a “flor ideal e eterna da Ilusão”. Novamente, “sonho” e “ilusão” aparecem juntos, nos dois últimos versos do poema (o mesmo ocorreu em “Prólogo”, como se viu). “Sonho”, nesse contexto, tem o sentido de busca da beleza, de sua posse, sempre frustrada (por isso, uma ilusão), empreendida tanto por D.Juan quanto pelo artista, ou poeta. 

Em “Um violão que chora...III,  EP afirma:

O poeta é a eterna criança (*)
       Correndo atrás da ilusão,
       Que lhe foge, e ele não cansa
       De tanto correr em vão,
       --------------
(*) Cf. a metáfora

A palavra “ilusão”, assim, possui também uma conotação mais ampla, além daquela relativa à  busca da beleza.  Ela expressa aquilo que a criança busca... que difere dos objetivos utilitaristas perseguidos pelo adulto.

O poeta, em “Solidão” III, invejando a sorte de um velhinho muito pobre, que nada tem e nada sabe, afirma:

Aquele que ali vai nesse caminho,
Todo despido, todo, da Ilusão,

Nesses versos, o termo incorpora um sentido mais amplo, mais próximo ao de “Sonho”. Aliás, Andrade Muricy afirma explicitamente que EP usa a palavra  “ilusão”  para designar “sonho” 7.

Conforme o v.13 do soneto transcrito acima (“Prólogo”), há uma identificação da Vida com o Sonho.  E o que isso significa?

Em primeiro lugar, a Vida-Sonho é aquela do artista, é a vida dedicada à busca da Beleza. No poema dramático “Pena de Talião” ocorre tal identificação, quando Lísias, o amigo do poeta Aminto, exclama: “Ó Aminto, tu és um sonhador imenso!”  ao que este responde

     Não há nada melhor do que sonhar. Eu penso
     Que hei de morrer assim. E seria um castigo
     Cair nessa nudez da realidade, amigo.
     (Ato I, Cena I)

Mas a vida de sonho também é a do ser humano com preocupações superiores, é a vida voltada para o Mistério da condição humana, e do cosmos, como a do eremita em “O enigma”, com quem o poeta se assemelha no seu isolamento. Neste soneto, o eremita, quando busca “decifrar o Mistério”, tem o fulgor dum “sonho etéreo”. ”Etéreo” nos remete a “Prólogo” novamente, onde o poeta afirma amar as estrelas, o “mirífico esplendor” dos céus, o “impossível” (de alcançar, como as estrelas), a “forma evanescente”.
O vocábulo “estrelas” -- a primeira palavra do primeiro verso de “Ilusão” -- assim como “luz”, “céus” etc, será  recorrente ao longo do livro, em contraposição a “lodo’, “lama”, “charco” etc, e simboliza os aspectos mais nobres do ser humano (o sonho), amados pelo poeta, em contraposição aos seus aspectos mais vis (a realidade em que vive). Para EP, o ser humano se debate, permanentemente, entre essas duas condições, entre o espírito e a matéria. Essa oposição, explicita ou implicitamente, aparecerá em diversos poemas de “Ilusão” (cf. “A mão...”, “Metamorfoses”, “Lírio!”, “Um violão que chora... III, “Canção do Diabo”, “Para que todos que eu amo sejam felizes”, “À toi! e “Graças te rendo...” ).

O amor à estrela (ou aos objetivos superiores do espírito) é motivo de orgulho para o “doido” sonhador, i.e. o poeta:

Porém que loucura mais rara e mais bela
Do que esse delírio de amar uma estrela?
(“A cigarra e a estrela”)

No soneto “Salomão”, todas essas aspirações inalcançáveis (a realização do artista, o desejo de ser só espírito, a conquista da glória) estão sintetizadas na imagem do diadema, que o coração do poeta (comparado ao rei Salomão) quer ver um dia:

Tudo o meu coração tem do rei Salomão,
A glória, e o furor, o orgulho, e a crueldade;
Não ambiciona dez, nem cem, nem um milhão,
Mas a terra, e o mar, o céu, e a infinidade...

Em tudo se parece, em tudo é seu irmão,
O mesmo luxo até, a mesma vaidade,
O mesmo fausto ideal, como asas de pavão, (*)
E esse requinte, enfim, essa ferocidade...

Quando soará, porém, a hora maravilhosa,
Em que do alto de uma torre cor de rosa,
Novo rei Salomão, ele, um dia, verá
Entre poeira e sol, ao longe, a caravana,
Onde em meio dum régio esplendor, que se ufana,
Fulge o diadema da rainha de Sabá?
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(*) Cf. a comparação


Cabe salientar, quanto a esse soneto, a frequência dos sons nasalados an, en, on, além das rimas em ão, que criam assonâncias e rimas internas para expressar a brandura e serenidade de suas “great expectations”. 

Mais adiante, no capítulo 3, item 3.3.2.a (“O poeta é um rei”), voltarei a tratar desse poema.                         

b) A vida é um sonho


Mas a associação da vida com o sonho também comporta uma outra interpretação: se a Vida é um Sonho, ela não é real, não é a verdadeira realidade, que para o poeta é a realidade transcendente.  Para EP, a vida é um sonho breve (essa idéia é recorrente em seus versos, e aparece até mesmo em sua peça infantil  “Vovozinha”) 8.  Como ele diz na “Oração da manhã”, de “Setembro”: “A vida, sonho vão, coisa leve e fugaz”.  Na concepção do poeta, logo acordaremos desse sonho e então será possível viver a verdadeira vida, que é a do espírito (para um materialista, tal “sonho” representará a vida presente, o breve período em que a matéria toma consciência de si mesma, para depois retornar à condição de matéria bruta). 

Pode-se dizer, então, que EP tem perante a vida uma atitude semelhante à de Shakespeare, quando fala pela boca de Prospero, em “A Tempestade”:

We are such stuff
As dreams are made on; and our little life
Is rounded with a sleep. 9

(para Shakespeare, nessa citação, o sono antecede e segue o sonho em que consiste nossa vida).

A atitude de EP também é semelhante à do protagonista de “La vida es sueño”, obra prima do dramaturgo espanhol Calderón de la Barca (1600-1681):

Qué es la vida? Un frenesí.
 Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño;
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son. 10


Além do v.13, em “Prólogo” – “/.../ a vida, em suma, é um grande e extravagante Sonho,” antes citado,  EP afirma em “Para que todos que eu amo sejam felizes”: “/.../ tudo é um sonho vago”

E em “A cigarra e a estrela”:

Assim que importava que essa brisa, em vão,
Em vão suspirasse que era uma ilusão?
Que importava a ela (*)  que, triste ou risonho,
Tudo quanto via fosse apenas sonho?
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(*) = à cigarra 

A verdadeira realidade, para EP, como disse, é a realidade transcendente, a do espírito, uma realidade superior, que ele aspira alcançar no futuro. EP é, portanto, idealista em filosofia, o que, por si só, não é motivo para desqualificá-lo como poeta junto a um leitor materialista (caso contrário, Dante também o seria...).

Aparentemente, as idéias de EP a respeito da realidade transcendente foram influenciadas pela filosofia hindu e por Platão.

EP deve ter se familiarizado ainda muito jovem com as concepções indianas do mundo, motivado pela leitura de Schopenhauer e Leconte de Lisle, os dois autores que estão presentes em seu primeiro livro, “Músicas”, de 1888 (cf. Nota sobre esse livro, nos “Anexos”), e que valorizaram tal tradição cultural.  O filósofo é aí tema de um soneto, e o poeta francês é o autor de “Requies” (que significa “repouso”, em latim), poema que EP traduziu e fez constar em “Músicas”. 
             
            De acordo com as concepções hinduístas, o mundo que percebemos pelos nossos sentidos e idéias é um mundo ilusório, da aparência da coisa, não da coisa em si. A nossa percepção da realidade está envolta pelo “véu de Maia”. Maia é o termo em sânscrito que significa “ilusão”, “aparência”, decepção” segundo o dicionário Houaiss 11. De acordo com essa fonte, a palavra, na cultura hinduísta, designa “a ilusão fundamental em que está imerso o ser humano, e que o impede frequentemente de contemplar a verdade infinita (Brama ou brâman) que se esconde por trás do mundo fenomenal finito”. “Brâman” então significa a “realidade primordial e supra-sensível, origem e essência do universo”. 

            Segundo ainda a mesma fonte, a alma humana (“atmã”), “quando se apercebe de sua verdadeira natureza, subjacente ao eu empírico, identifica-se com o brâman (a dimensão essencial do universo)”

            O Pe. Leonel Franca, nas “Noções de História da Filosofia”, afirma que, para o bramanismo, a

realidade única é Braman, ente supremo, indivisível, iniciado, eterno. Dele, como de alma   universal do mundo—Atman, nascem as almas individuais—atman, cintilas do fogo divino.   /.../ O mundo fenomenal é uma ilusão. (grifo meu, DvE). Tudo o que não é Braman não  existe /.../ é o único bem, e fora dele, não pode haver senão o mal, a dor /.../ A união com Atman é o meio de libertação da dor. A meta final de toda aspiração humana deve ser a perda da própria individualidade, a imersão do próprio ser em Atman /.../ As almas, que  ainda não conseguiram elevar-se ao conhecimento destas verdades, enredadas pela ignorância da causa primeira do sofrimento e, por isso, da existência, são condenadas a transmigrarem de corpo em corpo até a purificação derradeira. Daí uma série de práticas religiosas e ascéticas destinadas a acelerar o momento da identificação e bem-aventurança final. 12
   
            Por outro lado, para o budismo, a “dor é universal”, e sua origem “são as paixões, o desejo da existência”. A dor se extingue com “a supressão do desejo, o aniquilamento da existência, o nirvana, estado final de extinção completa do ser, única felicidade a que deve  aspirar o homem” 13

            Schopenhauer reconheceu em Platão, Kant e no budismo as fontes do seu pensamento. Esse filósofo partiu de Kant ao distinguir o “mundo fenomênico” do “mundo noumênico”. Segundo ainda Leonel Franca, o mundo fenomênico é o “mundo das aparências, dependente das formas a priori do nosso espírito que se reduzem a três: espaço, tempo e causalidade”. O mundo noumênico é o da “realidade em si”. Para Schopenhauer, “a realidade em si é a ‘vontade’”, o “instinto da própria conservação, o ‘querer viver’”, comum a todos os seres, “essência de todas as coisas”. E acrescenta ainda o mesmo autor que, para Schopenhauer, a

vida humana não passa de uma cadeia de desejos não satisfeitos e a dor é a verdadeira  partilha da humanidade./.../ Como alívio às desventuras da vida, Schopenhauer inculca o estudo da arte, o cultivo da simpatia, e sobretudo a negação do querer viver, o nirvana dos budistas 14

            O “Dicionário de Filosofia” de Gerard Durozoi e André Roussel, expondo em síntese o pensamento de Schopenhauer, afirma que, segundo este filósofo,

A salvação para o homem consiste em se libertar do querer-viver e portanto da dor que é  a sua expressão. A solução pode ser encontrada na arte, que transforma em espetáculo o objeto do desejo; /.../ Porém, a libertação é fugidia pois não suprime o querer-viver, /.../ cuja negação encontrará sua conclusão na resignação e no ascetismo, segundo   a  concepção búdica de salvação, que preconiza a fusão no nada, no Nirvana.15  

            Mas o querer-viver, a premência dos desejos, especialmente os de natureza erótica, o poeta jamais conseguirá suprimir em si... (v. adiante os comentários sobre os poemas com essa temática). 

Leconte de Lisle, que está presente, como disse, no primeiro livro de EP, compôs os poemas hindus incluídos nos “Poèmes Antiques” (1a ed.- 1852; 2a. ed. ampliada, com mais 23 peças- 1874).

De acordo com André Lagarde e Laurent Michard, em “XIXe Siècle” --  volume de uma coleção dedicada à história da literatura francesa-- os poemas hindus de Leconte abrangem poemas líricos  (“Sûrya- hino ao sol, fonte de vida; “Oração veda pelos mortos”), poemas épicos (“O arco de Civa”- resumo da primeira parte do “Ramayana”; “Çunacepa”- epopéia e poema de amor) e sobretudo poemas filosóficos- “Bhagavat”, “A visão de Brahma”, “A morte de Valmiki”.

Em “Bhagavat”, três brâmanes (= membros da casta sacerdotal),   lamentam suas dores, mas a contemplação desse deus (Bhagavat) lhes trará a paz interior: Ils s’unirent tous trois à l’Essence première...Tel est le remède à la misère humaine: se détacher de ce monde qui n’est qu’illusion, pour remonter à l’Essence des choses.” (grifo meu, DvE)

Em “A visão de Brahma”, ao deus Brahma é permitido contemplar o deus supremo Bhagavat, que Leconte de Lisle evoca numa “magnífica” (segundo os autores) descrição panteísta. Brahma, referindo-se à angústia humana, questiona Bhagavat sobre o problema do mal.

Et Bhagavat lui révèle le mot de l’énigme. En fait, c’est l’Illusion, la divine Maya, qui donne au monde ses formes diverses, ‘esprit et corps, ciel pur, monts et flots orageux’: rien de tout cela n’existe en réalité, pas plus que les joies ou les souffrances qui ne sont que des rêves:

Rien n’est vrai que l’unique et morne Éternité:
O Brahma! toute chose est le rêve d’un rêve. (*)
---------------
(*) Grifo meu, DvE

Cette philosophie de l’Illusion, où la seule réalité est le Néant divin, c’est celle des ascêtes, perdus dans la contemplation jusqu’à mourir au monde extérieur.

E concluem aqueles autores:

La philosophie de l’Illusion est loin d’être pour lui (Leconte de Lisle) une simple curiosité exotique: source de paix intérieure, certitude du retour au Néant qui est l’unique réalité, elle sera le grand remède aux misères humaines. 16 

                                                        *

EP, como se verá  mais adiante, anseia pela sua própria extinção (cf. “Corre mais que uma vela...”) e tal atitude insólita é explicada pela permanência das concepções hindus na obra madura do poeta. Ele anseia, assim, por integrar-se ao “Nada divino” do bramanismo ou ao Nirvana budista, que pode ser associado ao Inexpressível, ao Sublime, referidos em “Oh, que ânsia de subir hoje mesmo a montanha” III. Mas aí também estarão presentes elementos do cristianismo.         

            Assim, para EP,  “tudo é um sonho vago”, como ele diz em um de seus versos, nada é real, verdadeiramente. O artista, semelhante ao asceta, está consciente que vive no reino da ilusão. Ambos buscam a realidade essencial das coisas, a que está por trás da beleza e da elevação espiritual que eles almejam.

            O termo “ilusão”, utilizado pelo poeta paranaense, aplica-se assim a tal maneira equivocada de apreendermos o mundo, e identifica-se freqüentemente a “sonho”, como assinalou Andrade Muricy, que todavia não se referiu à tradição hindu como fonte de influência sobre o livro principal de EP (assim como não o fez outro estudioso de EP, Erasmo Pilotto). Há sugestão disso, contudo, nesta passagem dum artigo do jornalista Euclides Bandeira (1876-1947), amigo de EP, com quem o poeta fundou o Centro de Letras do Paraná. Intitulado “A Psicologia do Poeta”, integra o seu livro “Crônicas Locais” e foi republicado na revista daquele Centro:

Assim, estamos ainda que é exatíssima a conclusão a que chegou, analisando-o minudentemente, o seu dedicado e inseparável amigo o ilustre dr. Santa Rita: “não se procurem nele, portanto, doutrinas nem filosofias.” Procure-se, realmente, o poeta, que ele o foi, na acepção mais alta, perfeita e rara do vocábulo. E como poeta, numa ânsia douda e sempre insatisfeita, fosse onde fosse, por toda parte, esvoaçou a recolher tudo quanto ao verso pudesse emprestar inéditas vibrações ou filigranas ornamentais. Foi à pompa do aparatoso rito católico, ao perfume oriental do budismo,ao “delírio anárquico-religioso de Tolstoi”, ao super-homem de Nietzsche, ao pessimismo de Schopenhauer e não hesitaria   em escandir um soneto ao misterioso ritmo tiptológico (*) de uma mesa falante se nisso pressentisse recônditas sonoridades.17   
            ---------------
(*) Tiptologia= “1) Experiência a que procedem os espíritas, com mesas giradoras, chapéus, etc. 2) Comunicação dos espíritos por meio de pancadas.” (dic. Aurélio)

            Naturalmente, a contribuição do cristianismo também deve ser acrescentada a essas concepções da filosofia indiana, a fim de obtermos uma visão mais completa do modo como EP (de formação judaico-cristã e filho de cristão-novo português) considerou este e o “outro mundo”.  Nesse terreno, assim como no plano da estética, ele se revela um eclético.        

                                               *

Quanto a Platão, cujas concepções também devem ter influenciado EP,  Leonel Franca afirma que esse filósofo aprofunda a teoria de Sócrates e

procura determinar a relação entre o conceito e a realidade fazendo deste problema o ponto de partida da sua filosofia.
A ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve corresponder a realidade. Ora, de um  lado, os nossos conceitos são universais, necessários, imutáveis e eternos (Sócrates), do  outro, tudo no mundo é individual, contingente e transitório (Heráclito). Deve, logo, existir, além do fenomenal, um outro mundo de realidades, objetivamente dotadas dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que as representam. Estas realidades chamam-se  Idéias. As idéias não são, pois, no sentido platônico, representações intelectuais, formas  abstratas do pensamento, são realidades objetivas, modelos e arquétipos eternos de que  as coisas visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim, a idéia de homem é o homem   abstrato perfeito e universal de que os indivíduos humanos são imitações transitórias e   defeituosas.
Todas as idéias existem num mundo separado, o mundo dos inteligíveis, /.../, situado na esfera celeste 18

Mais adiante, o Pe. Franca acrescenta que, para Platão, a parte superior ou racional da alma

é livre, espiritual e imortal. Preexistindo ao corpo – “túmulo que arrastamos conosco como      o caracol arrasta a concha que o envolve" –a ele se une violentamente em punição de  algum delito. Platão admite a metempsicose. Neste estado de união possui duas espécies  de conhecimento: o dos fenômenos ou sensível, provável e conjetural e o das idéias ou   racional, certo e científico. Entre um e outro a relação é meramente extrínseca, servindo a percepção dos fenômenos apenas de ocasião para despertar ou evocar a lembrança das idéias contempladas na vida anterior. O verdadeiro conhecimento é, pois, uma reminiscência, “scire est reminisci”, reminiscência que explica a maiêutica de Sócrates 19

Como se sabe, Platão ilustrou suas concepções sobre o outro mundo com a alegoria da caverna. Segundo o “Dicionário Oxford de Filosofia”, tal alegoria, apresentada na “República” (livro VII, 514-518), foi utilizada por Platão

para mostrar os níveis em que nossas naturezas podem ser iluminadas ou não. No primeiro nível estão prisioneiros, amarrados de tal maneira que conseguem perceber apenas sombras na parede da caverna. São sombras de objetos artificiais, e a luz vem de uma fogueira. Para eles, a realidade é constituída apenas pelas sombras desses objetos   artificiais. Mas, se um prisioneiro se soltar das amarras, poderá voltar-se e ver, primeiro, os próprios objetos artificiais, depois o fogo, seguindo-se então o mundo real e, por fim, o Sol.  Cada estágio dessa ascensão será difícil e estranho e, no fim, o indivíduo iluminado será incapaz de comunicar seu conhecimento aos prisioneiros que ficaram na caverna. Platão diz que a ascensão descrita simboliza a viagem da alma até o inteligível (as formas),identificado com aquilo que é verdadeiramente real. 20   

A propósito de “sombras na parede da caverna”, na poesia de EP, a palavra “sombra” aparece com frequência junto com “ilusão” e “sonho” em “Solidão”:

Onde quer que eu, andando, te encontrasse,
Ó sombra, ó sonho, ó ilusão falace
          
Também no soneto “Prólogo”, transcrito anteriormente, esses termos aparecem próximos uns dos outros.


c) A ânsia de elevação espiritual. A Glória é o Paraíso. 

            Para EP existe uma realidade alternativa, um “outro mundo” (v.4), que lhe desperta vagos sentimentos saudosistas, conforme o soneto “Vozes”, transcrito abaixo:


Ó rumor  ideal! O ilusão secreta!
Vozes tristes, vozes doces que me chamais,
Com a saudade cruel e a lembrança completa
De um outro mundo, que eu perdi, não acho mais.

5          Vozes antigas como as barbas d’um profeta, 
Ó vozes de paixão, ó vozes de metais,
Ó vozes que feris a minha alma inquieta,
Vozes de multidão ruidosa sobre o cais... (1)

Vozes lindas assim como um efebo louro, (2)
10        Vozes, filhas, não sei, das entranhas do Ar,
Vozes d’Apolo e de marfim e prata e ouro... (3)

Ó vozes de embriaguez, ardentíssimas vozes ,
Vozes, bem como se quebrasse, ao longe, o mar, (4) 
Sob penhascos nus e rochedos atrozes!...
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(1)     “Cais” sugere o mar, que por sua vez sugere a viagem (final) por ele: v. comentário mais adiante
(2)     Efebo= “na Grécia antiga, rapaz que atingiu a puberdade”
(3)     Cf. o polissíndeto; Apolo= deus do sol, e também das belas-artes, da música e da poesia; em Delfos, era muito frequentado o oráculo de Apolo (cf. “Dictionary of Classical Mythology”, de J.E.Zimmermann. New York, Bantam Books, 1985-p.26 e 183)
(4)     Cf. a comparação


Em “Durante uma enfermidade”, o poeta doente esquecerá do sabiá, que o alegrou com seu canto, como tem esquecido de “tanto sonho bom” que dormiu no fundo de seu ser, e que ele não pode mais ver de novo. A palavra “virgem” produz a sugestão de uma “vida anterior” (cf. Baudelaire), antes da experiência da vida  atual:

Hei de esquecer-te, coração querido,
Como de resto tenho-me esquecido

De tanto sonho bom, por esse mundo,
De tanto sonho que dormiu no fundo,

Bem lá no fundo virgem do meu ser,
Sem que o pudesse mais tornar a ver: 

Baudelaire, segundo os “Classiques Larousse” 21, possivelmente, adotava as idéias sobre a metempsicose (reincarnação) de Pitágoras, Platão e dos hindus. EP também parece adotar tais concepções, como sugerem os versos citados. Assim, os seres humanos poderiam viver várias vidas, antes de alcançarem o  Paraíso, no final de sua evolução espiritual, incorporando aqui a concepção cristã, presente, por exemplo, na “Divina Comédia” (o ecletismo de EP, como já foi dito, não é só estético mas abrange também concepções religiosas). A adoção, por parte de EP, de tais idéias explica a recorrência em seus versos do animismo relativo aos elementos dos três reinos da natureza, o que é também explicado pela adoção das idéias de Schopenhauer relativas à “vontade da natureza”. 
       
O poeta, acreditando na existência de uma realidade superior, anseia por integrar-se nela (daí a recorrência, nos versos, do poeta vendo a si mesmo morto, ou vendo o seu enterro, como se já fosse só espírito, livre da matéria: cf. poemas “Vencidos”, “Ideal”, “Para ela”, “Um violão que chora...VIII e “Tristeza”). Assim expressa o seu desejo de elevação espiritual: 

Toda a minha ânsia é de subir como uma prece,
Toda a minha ânsia é de brilhar como um clarão. (“Quadras”)

O poeta conclui o último poema de “Ilusão”, “Sol”, desenvolvendo esta bela comparação:

-- Ah! que sombria dor e que profunda mágoa
De não poder ser eu aquela gota d’água,
Que depois de fulgir, assim como uma estrela,
Derrete-se na luz, funde-se dentro dela!.

O volume “Ilusão” assim é concluído referindo-se às estrelas, tal como começara (cf. “Prólogo”).

O anseio de perfeição que ele tem e o desejo de glória (cf. “O meu orgulho levantou-me”) estão relacionados ao de elevação espiritual: o artista sente a ânsia “de subir”, a ânsia “de brilhar como um clarão”. Desse modo,  o desejo de glória, que EP expressa em muitas ocasiões, está intimamente associado ao desejo de imortalidade, de superar a sua condição humana e integrar-se no divino:

/.../ poder subir a escada do Sublime,
/.../ poder chegar até o Inexpressível.

Os versos acima constam de “Oh! que ânsia  de subir hoje mesmo a montanha!III, cujo título abrange, na realidade, três poemas. Nestes, a montanha   é o símbolo da elevação espiritual, a ser conquistada a duras penas, por um caminho árduo:

Pra o subires, porém, é uma luta vã
Tens de sangrar as mãos e os pés naquele espinho,
................................................................................
E é além daquele mar, e além daquele abismo, (*)
.................................................................................
E ainda além,  e ainda além de tudo quanto vês...
---------------
(*) Cf. conotações de “mar”, mais adiante

Em “Fogo sagrado” (do livro “Setembro”) -- que Alfredo Bosi destacou como um dos melhores poemas de EP 22 -- o Sol e o Vento vão arrebatar aos Céus o cavaleiro, que é excepcionalizado pela sua indumentária (como em “Cavaleiro”), e pela menção ao sete-estrelo que o cobre, permitindo-nos associá-lo ao artista, ou idealista, elevando-se ao seu próprio mundo (o sete-estrelo é a “Constelação de sete-estrelas; as “Plêiades” e expressa “Fatalidade prodigiosa” segundo Andrade Muricy 23).  A concepção desse “sonetilho de octossílabos de ritmo encantatório” (nas palavras de  Bosi) parece diretamente inspirada pela passagem bíblica (2 Reis 11) em que o profeta Elias sobe aos céus num carro de fogo, no meio dum redemoinho.

Glória” está ambientado no “outro mundo”, e é composto,  como muitos outros poemas, com elementos da mitologia grega. Nele aparece Caron, o barqueiro encarregado de transportar os mortos para o Hades (ou Orco, nome romano), a região do Além a eles reservada. Para chegar até lá, eles têm que atravessar os rios Estígio e Aqueronte. Por isso, costumava-se, na Antiguidade, colocar uma moeda na língua dos defuntos para que eles pagassem por essa travessia 24. No soneto, quando o poeta “descer às margens” do Estígio, para atravessá-lo na barca de Caron, e

Eu tiver de rolar no olvido, que me espera,
Que ao menos possa ver o palácio radioso,
Feito de louro e sol e mirto e ramos de hera!

Ocorre aqui, portanto, uma identificação da Glória (cf. a metáfora de seu “palácio”) com o Paraíso. Como vimos acima, o poeta anseia por ele, anseia por “brilhar como um clarão”. Mas pela sua predisposição pessimista (o artista é pessimista), é o olvido que o espera, e não a glória, recompensa aos grandes poetas, a seu ‘mestre’ Ovídio, por exemplo (cf. “Ovídio”).  Note-se, no último verso citado, além do polissíndeto, a “matéria- prima” vegetal de que é feito o palácio. Ela era utilizada, na Grécia antiga, para coroar os maiores poetas, e simbolizam a conquista da glória. 

Mas essas aspirações superiores são causa de sofrimento no poeta ( o artista é infeliz ), que desejaria por isso ser outra pessoa, sem “ambições do que não viu”, conforme os poemas “SolidãoI a IV, em que EP faz o elogio da vida simples.

O artista, identificado com o eremita em “O enigma”, é concebido como alguém que desenvolve sua atividade na fronteira do  mundo alternativo. Ele está

Cansado de querer decifrar o Mistério,
Cujo limiar tocou,  mas  sem  poder entrar,
Como os sons, como os sons longínquos dum saltério
Que se fanassem com a Luz crepuscular...

O saltério é um instrumento musical de cordas, com que se acompanhavam os salmos 25. EP faz aqui uma comparação interessante entre uma situação, caracterizada pela proximidade do Mistério (de sua solução), e a audição de sons de um saltério, que desaparecem quando a luz do dia também desaparece. Os sons, associados à luz, sugerem a proximidade do Paraíso, onde os anjos, segundo a tradição, tocam instrumentos de cordas, enquanto “luz” é recorrente nos poemas do livro como símbolo das dimensões superiores do espírito.

Em “Vencidos”, os poetas são chamados “agoureiros da Treva, advinhos da Lua”, reforçando a sua vinculação ao Mistério, além de serem também chamados de “menestréis da rua”, mais uma das muitas referências medievais dos poemas.

A “Mão Ideal e branca”, de “A mão”, procede de uma outra realidade, misteriosa, e está associada ao bem (que para EP se identifica com o belo).  Assim, a  mão representa o caráter  salvador do mundo transcendente (da Arte, do Espírito),  em favor do poeta, qualificado de “cego”, por não poder ver a realidade do “outro mundo”:

...Donde veio essa mão nervosa, que me arranca 
Dos abismos do mal, a Mão Ideal e branca,
A mim, que nem sequer mais acredito em Deus?... 


d) A opção simbolista. A Felicidade, a Beleza e a Ilusão

Em “Prólogo”, além da declaração de amor pelas estrelas, pelo “mirífico esplendor” dos céus, pelo “impossível”, menciona-se também o amor pela “forma evanescente”.

Nessa menção à forma, introduz-se a estética correspondente à concepção filosófica adotada, vale dizer, o “parti pris” simbolista, com sua predileção pelo vago, o indefinido, o evanescente, distante da nitidez da escola parnasiana, então predominante, que preferia descrever a sugerir. Como se sabe, EP pertenceu ao primeiro grupo de poetas, estabelecido no Rio de Janeiro, que defendeu o ideário simbolista e iniciou tal movimento na literatura brasileira.  

EP recorre, como os místicos, à linguagem das imagens, das metáforas, para expressar o vago, o evanescente, relativo a coisas que não compreende mas o atraem, conforme a proposta do Simbolismo, pelo qual ele opta  (embora, como se viu, apenas uns vinte poemas de “Ilusão” sejam, a rigor, simbolistas. O livro, esteticamente heterogêneo, contém mais de cem poemas, datados entre 1897 e 1911 - cf. a “Relação dos poemas” no final deste trabalho). 

Em “Felicidade”,  o poeta,  correndo  atrás  dela,  personificada,  como  uma mulher, seguindo “seus passos de veludo” (cf. a sinestesia), acabaria numa “cidade” assim descrita (a Feli-cidade), com imagens que tentam expressar a beleza estranha desse mundo alternativo: 

Seria uma cidade, que eu não vira,
Com tantas torres brancas para o ar,
Cidade d’oiro antiga, de safira,(*)
Batida pelos ventos, pelo mar...
---------------
(*) Safira= “Pedra preciosa /.../ cuja cor varia do azul-celeste ao azul-escuro” (dic. Aurélio)
           
O poeta faz, nesse poema, o elogio da Felicidade. Ela é:

O pão da minha fome de beleza,
O meu orgulho, a púrpura dum rei...

Ocorre assim uma identificação da Felicidade com a beleza, coerente com a citação de Stendhal que EP escolheu para epígrafe do poema “Versos doirados” – “La beauté est une promesse de bonheur”.

A Felicidade o embriaga com os enganos,  “A música de pérolas d’Ofir” (cf. a sinestesia). Em seu encalço,

O lírio e o vale e o serro e o mar e eu,
Fugiríamos todos atrás dela, (*)
Envolvidos na túnica d’Orfeu.
---------------
(*) Note-se a ousadia da metáfora “cinética”, na qualificação de A.Muricy, e a presença de um polissíndeto no verso anterior. Orfeu: o mais famoso músico e poeta da mitologia grega, marido de Eurídice (cf. J.E. Zimmerman, op cit, p. 186)  

Ele nunca pensou que houvesse

Reinos tão lindos, doces como mel... (1)

E que florido céu! que ânsia! que vago
Som mavioso! que luar! que flor! (2)
Eu dormiria ao fundo desse lago, (3)
Abraçado contigo, meu amor...

Mas, no final, reafirmando o pessimismo do artista,
Tudo feneceria, como a estrela, (1)
`A luz forte, hiperbólica do sol,
................................................
Tudo por terra havia de rolar, 
................................................
Tudo se acabaria, ó luz tranqüila, (3)
Ó ilusão dulcíssima! Ó ilusão!

E eu sempre com a esperança de possuí-la,
Mas sem tocá-la nem sequer com a mão...
---------------
(1)     Cf. a comparação
(2)     Mavioso= suave, doce, harmonioso (dic. Aurélio)
(3)     Cf. a metáfora


Verifica-se, como se vê, uma identificação entre Felicidade (= “luz tranquila”), beleza e ilusão, ou seja, a identificação do objeto do anseio do artista com o mundo transcendente, pois a beleza terrena é sobrepujada por outra superior, conforme está expresso em  “A cigarra e a estrela”.  


e) A viagem pelo mar


Para chegar até o mundo transcendente, é preciso fazer a viagem final, sempre associada à imagem do mar, que exerce atração sobre ele.

Por que essa associação? Certamente, porque as longas viagens ocorriam  pelo mar, no tempo de EP (viagem ao Rio de Janeiro, à Europa...). Além disso (e esse deve ser o motivo mais importante), porque  “mar” se contrapõe a “terra” --  entendida não só como a terra firme, o continente, mas também como o nome do planeta (ou deste mundo)... Assim, sempre que o poeta se refere à viagem para o “outro mundo”, ocorre a evocação da imagem do mar, também evocado, naturalmente, por causa da carga de beleza e mistério que a sua idéia contém. 

O soneto “O brigue”, de “Setembro”, descreve, em seus doze primeiros versos, o navio à vela amarrado ao porto, inquieto, pronto para partir. E nos dois versos finais, o poeta exclama:

Ó quando eu poderei, também, partir, ó quando?
Eu que não sou da Terra e que à Terra estou preso? 

Ode à solidão” sugere essa viagem para o mundo transcendente, explorando o fato de que a morte é solitária, por natureza. O poema, que explora habilmente os sons sibilantes, inicia assim:
 
Vamos, é tempo de se abrir a mão de tudo,
            E fugir de uma vez,
Desses caminhos de sândalos e veludo,
            Doirada embriaguez...
É tempo de dizer a tudo quanto passa
           O meu adeus final,
`As rosas e aos rosais, à mocidade e à graça,
            Tudo que me fez mal.

Logo adiante, o poeta, estabelecendo um contraste entre o silêncio reinante e o som do mar, afirma:

No meio do silêncio imenso que me cobre,
            Assim como um capuz, (*)
Como é bom de escutar o mar quebrando sobre
            Esses rochedos nus...
É a mesma cousa que se habitasse um castelo,
            E é o único lugar,
Onde eu me sinto grande, onde eu me sinto belo,
            Em face deste mar...
---------------
(*) Cf. a comparação


A solidão (sempre associada ao silêncio) o aproxima do “outro mundo”, pois exala um perfume (“essências ideais”) que o prenuncia:

Que essências ideais eu respiro! Nenhuma
           Outra região assim
Tem esse cheiro bom. A solidão perfuma
           Como um jasmim... (*)
---------------
(*) cf. a comparação

É aí que ele encontra o caminho a ser percorrido em sua viagem final:


És o retiro, a paz, o sonho, e esse caminho
           Que eu sempre quis,
O caminho ideal, por onde eu vou, sozinho
           E triste, mas feliz.  (*)
---------------
(*) Cf. o paradoxo


A imagem do mar está associada não só à idéia de morte mas também à de esperança: cf. menção ao “verde” nestes versos de “Veio”:

Este verde de mar, como um sono tranqüilo,
Este límpido céu azul, como um gorjeio,(*)
---------------
(*) Cf. as comparações, indicadas por “como”

O “céu azul” aí, além de apontar para o mundo transcendente, sugere também felicidade e alegria, por causa da menção a “gorjeio”, que contém a sugestão de beleza, “promessa de felicidade” , como se viu, e de alegria, conforme a epígrafe de Keats – “A beleza  é  uma alegria  eterna” – que  EP fez constar, em português, em seu poema “Pena de Talião”. Assim, o céu pressupõe felicidade e alegria, implícitas na idéia de beleza.

No céu de EP, como no de Baudelaire, “tout n’est qu’ordre et beauté26

Também em “Vozes”, depois destas sugerirem a lembrança de um “outro mundo”, e de se referirem às “Vozes de multidão ruidosa sobre o cais ... , há esta referência ao mar:

Vozes, bem como se quebrasse, ao longe, o mar
Sob penhascos nus e rochedos atrozes!..

Em outro poema, a região que ele avistará, quando embarcar, é assim caracterizada:

...........................................................................
De pé no tombadilho, em frente, à minha vista,
Eu veria passar o que não vi jamais,
A não ser através dos meus sonhos d’artista:
-- Encarnações febris, diademas imperiais ...(1)
E cegueira ideal e vã de quem se esconde,
E loucura de quem fugiu duma prisão,
E doido, sem saber de nada, nem para onde, (2)
A correr, a correr atrás duma ilusão!
Ó terras de mistério, ó terras de mantilha,
Ó terras onde o céu é como a flor-de-lis, (4)
Quem me dera dormir, folha de mancenilha (3)
Debaixo de teu manto azul d’imperatriz!

Reinos antigos, ó paisagem de romance,
Como uma rosa que fenece num jardim, (4)
Ah! que bom! ah! que bom! de vê-los de relance,
Com castelos feudais, com torres de marfim!
Rainhas como flor, graciosas donzelas, (4)
Com gestos e com voz que me causam prazer,
Como seria bom que, ansiado para vê-las,
Eu as vendo uma vez, não as tornasse a ver ...  (5) (“Versos para embarcar”)
---------------
(1) Cf. a menção a “diadema” no último verso do soneto “Salomão”, citado antes
(2)     Cf. recorrência de “doido”, ou “doudo”. A respeito  desse vocábulo, as Notas à edição crítica de “Ilusão & outros poemas”, op cit, p. 215, afirmam o seguinte: “A palavra doudo, conforme observa Erasmo Pilotto, faz parte da manifestação da sensibilidade inquieta e antivulgar de Emiliano Perneta e funciona como truculento para Gautier, e enorme para Flaubert”  
(3)   Mancenilha= tipo de árvore; cf. a metáfora: “manto azul” (do céu), no v. seguinte
(4)     Cf. a comparação
(5)     Ver mais de uma vez as banalizaria. O poeta quer ficar só com aquela  lembrança única, só com o sonho...

É importante, todavia, assinalar que os versos sempre mantém sua ambiguidade, possibilitando interpretação alternativa. Neste poema, por exemplo, “embarcar” também pode sugerir uma viagem mesmo, sem sentido figurado, viagem para outras regiões do planeta, no caso, a Europa: “mantilha”, palavra oriunda do espanhol, sugere mistério e conotações ibéricas; “flor-de-lis” é “uma referência heráldica à França”, nas palavras de Andrade Muricy 27. A França é, para EP, a pátria do sonho, o país associado à Arte e aos simbolistas, que lhe forneceram o ideário estético. Em “À toi!” está subentendida uma declaração de amor a ela.


f) A alma liberta


Nos dísticos de “Coração livre”, o poeta enfim está liberto do cárcere (“ergástulo”) do corpo. Agora está feliz, libertou-se de um  “cárcere azul,   cárcere    de
veludo”, i.e. da vida dedicada à arte, ao ideal, ao amor, que, todavia, o fizeram sofrer.

Em sua ambiguidade, o poema  também  pode ser lido como referente ao  “coração livre” de uma relação amorosa apenas. Há aqui, todavia, uma reiteração das idéias contidas nas duas primeiras estrofes de “Ode à solidão” citadas anteriormente, o que requer uma interpretação compatível.

Assim o poeta se refere ao cárcere:
.................................................................
A esse cárcere azul, cárcere de veludo,

Mas cárcere cruel, que te fez tanto mal,
Não tornes nunca mais, ó vagabundo ideal.

(note-se, no último verso citado, a referência à reencarnação).

A propósito, a idéia de cárcere também aparece em “Oh! que ânsia de subir hoje mesmo a montanha!” I: cf. menção a “enxovias”.

O poeta, libertando-se desse cárcere peculiar, libertou-se igualmente do tédio (“enojo”). Ele se rejubila assim com essa liberdade recém-conquistada:

Livre. O espaço é teu, é teu todo esse ar
É somente bater asas e voar...

(a metáfora do “coração livre” é o “pássaro erradio”)
........................................................................
Segue. Na fonte em que beber a ovelha, em paz,
Com as tuas próprias mãos, tu também beberás.
E a árvore sob a qual dormires o teu sono,
Há de dar-te abundante os seus frutos de outono.

(i.e.,as promessas do mundo transcendente)  
E que perfume bom! Que embriaguez assim
Por esse vasto céu, por esse azul sem fim!

(cf. a referência ao “perfume”; novamente, ocorre a antecipação do “outro mundo” pelo sentido do olfato, já referida antes, no comentário à “Ode à solidão”. Por outro lado, em “O enigma”, como se viu, esse mundo é antecipado pela audição, pelos sons do saltério).

O dia é uma canção de luz maravilhosa,
Que se pudesse ouvir cantar por uma rosa... (*)
Segue pois, segue pois, sem saber onde vais...
Nômade, o teu destino é esse e nada mais!
---------------
(*) Cf. a personificação nesse verso, e a metáfora e a sinestesia do verso anterior


                      *

Em suma, o termo “Ilusão”, que dá o título ao principal livro de EP,  expressa, de um lado, algo que todos os poemas têm em comum, ou seja, a busca, pelo poeta, da Beleza, que é promessa de Felicidade.  Mas essa promessa só se cumprirá num “outro mundo”, que por isso ele aspira alcançar.

De outro lado, a palavra expressa a consciência do poeta de que “tudo é um sonho vago”, de que o mundo é aparente e por trás dessa aparência existe uma outra realidade, à qual pertencemos e da qual temos vaga lembrança. Essa  realidade alternativa será revelada quando o Mistério for decifrado, ao final da vida ou da viagem pelo mar.  Sobre o Mistério nada sabemos hoje, ou a Ciência nada sabe (cf. “Christe, audi nos”, de “Setembro”: “A Ciência é um pobre monge estudando o abc”). Mas a revelação do Mistério é pressentida nos domínios da Arte ...



Notas ao capítulo 3.1


1 Os versos de “Ilusão” citados neste trabalho, assim  como os de “Pena de Talião” e  “Setembro”, foram extraídos de “Poesias Completas de Emiliano Perneta”- 2 v.- Rio de Janeiro, Livraria Editora Zélio Valverde, 1945 (também os de “Músicas”, citados nos  Anexos).

2 ARAÚJO, Murillo – “A arte do poeta”, 2a ed., Rio de Janeiro, Livraria São José,  1956, p. 91.

3 “Obras Completas de Emiliano Perneta”- v.1- “Prosa”- Curitiba, Gerpa, 1945, p. 13

4  Ibidem, p. 23

5 Ibidem, p. 252          

6 MERQUIOR, José Guilherme – “De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira”-I. 3a. ed.-Rio de Janeiro, Topbooks, 1996,p. 184

7 MURICY, Andrade – “Emiliano Perneta”. Col. “Nossos Clássicos” nº 43- 2a ed.,  Rio de Janeiro, Agir, 1966, p. 28
8 A peça, que permaneceu inédita por muitos anos, foi afinal publicada como parte integrante do livro “Emiliano Perneta”, de José Nicolau dos SANTOS, Curitiba, Editora da Universidade Federal do Paraná, 1982, pp.121-141 (essa peça é de 1917, e sua música foi composta por Benedito Nicolau dos Santos, pai do autor). EP também é autor de “Papilio Innocentia”, poema–libreto, escrito em 1913, baseado no romance “Inocência”, do Visconde de Taunay, para a ópera de Léo Kessler (1882-1924). Cf. MURICY, Andrade -- “Emiliano Perneta”, Col. Nossos Clássicos- op. cit., p.4 e 88. Em suas memórias, Muricy afirma que esse músico suíço chegou a Curitiba em 1911, “dirigindo a orquestra de uma companhia de operetas alemã”. Com a dissolução da companhia, o músico permaneceu na cidade. Afirma ainda que “Papilio Innocentia” foi considerado pelo musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo “o melhor libreto de ópera brasileira” (cf. MURICY, Andrade- “O Símbolo à Sombra das Araucárias”. Conselho Federal de Curitiba e Departamento de Assuntos Culturais, 1976- p. 348-349).            

9 SHAKESPEARE, William-  “The Tempest”, IV, I, London, Penguin, p. 120

10 Apud “La Literatura Española en los Textos”, por Felipe B. Pedraza JIMÉNEZ e Milagros Rodríguez CÁCERES- São Paulo, Nerman; (Brasilia-DF) Embajada de España, 1991- p. 123

11 “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”- 1a. ed.- Rio de Janeiro, Objetiva, 2001

12 FRANCA, Pe. Leonel—“Noções de História da Filosofia”, 14a. ed.- Rio de Janeiro, Agir, 1955- pp.21-22
           
13 Ibidem, p. 24

14 Ibidem, p. 185

15 DUROZOI, Gérard e ROUSSEL, André – “Dicionário de Filosofia”- Campinas, Papirus, 1993- p.427

16 LAGARDE, André e MICHARD, Laurent – “XIXe Siècle”- Collection Littéraire, Paris, Bordas, 1983, pp. 410-411

17 Revista Centro de Letras do Paraná- nºs 24-25-26, vol. 64-66, Curitiba, 1964-1966, pp.5-7

18 FRANCA, Pe. Leonel – “Noções de História da Filosofia”- op. cit., pp. 49-50. 

19 Ibidem, p. 51

20 BLACKBURN, Simon – “Dicionário Oxford de Filosofia”- Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1997- pp.251-252 

21 “BAUDELAIRE – Pages Choisis”. Classiques Larousse. 17e édition. Paris, Larousse, s/d, p. 19- nota

22 BOSI, Alfredo—“História Concisa da Literatura Brasileira”, 3a. ed., São Paulo, Ed. Cultrix, 1987, p.318

23 MURICY, Andrade- “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”- Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde/INL, 1952- v. III- cf. Glossário, p. 330

24 ZIMMERMAN, J.E.—“Dictionary of Classical Mythology”. New York, Bantam Books,  1985, pp. 58-59

25 MURICY, Andrade- “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, v. III, op cit,    p.328
 
26 Apud CARPEAUX, Otto Maria – “História da Literatura Universal”- v. V, Rio de Janeiro, Ed. O Cruzeiro, 1963, p.2254

27 MURICY, Andrade- “Emiliano Perneta”. Col. “Nossos Clássicos”, op cit, p. 28

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