quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


4.- SÍNTESE DAS CARACTERÍSTICAS DA POESIA DE EMILIANO PERNETA E SUA INTERPRETAÇÃO



Uma vez procedida a análise, é importante fazer a síntese. Neste capítulo, procuro apresentar, sucintamente, as características gerais da poesia de EP, com base no exame dos poemas que integram a sua obra, realizado nos capítulos anteriores. Procuro também oferecer uma explicação plausível para tais características.

A poesia de EP revela, em primeiro lugar, a concepção filosófica idealista de seu autor, que admite o primado do espírito sobre a matéria. Ele supervaloriza o espírito e menospreza a matéria. Tal concepção pode ser ilustrada pela oposição, frequente em seus versos, entre as estrelas/ os astros/ o sol etc de um lado, e a lama/ o lodo/ o charco etc de outro. O poeta anseia por tornar-se só espírito, anseia pelo absoluto. Só assim encontrará a plena realização.

Isso nos leva a uma questão interessante: podemos considerar “bom” um poeta, e ao mesmo tempo não concordar com as suas ideias? É possível um materialista considerar “bom” um poeta idealista? Acredito que a resposta seja afirmativa, haja vista o caso de Dante, consensualmente considerado um grande poeta, tanto pelos que compartilham de suas crenças, como pelos que não compartilham.

Um poeta então deveria ser avaliado não tanto pelo que diz, mas como o diz, i.e. pela sua linguagem... Todavia, embora seja verdadeira a tese de que só as ideias não fazem um bom poema (cf. Mallarmé: a poesia “se faz com palavras e não com idéias”) 1, acredito que o  caráter humanista das idéias é um pré-requisito essencial. No caso de Dante, ainda que o leitor não seja religioso, ou católico, deveria identificar-se pelo menos com o conteúdo humanista da doutrina adotada pelo poeta florentino. Pois um poeta que fizesse, por exemplo, a apologia da guerra ou do racismo só poderia causar repugnância no leitor eticamente bem formado, bloqueando a sua sensibilidade para desfrutar as eventuais qualidades poéticas que seus versos pudessem conter, relativas à linguagem... Em suma, as ideias contidas no poema deveriam ser sempre humanistas, quer dizer, a favor da elevação da condição humana e não do seu rebaixamento... Essa será então uma condição necessária, mas não suficiente, para a boa poesia... Por outro lado, o conteúdo de ideias não pode ser simplesmente descartado, como ocorre com certa poesia hoje praticada entre nós, que se esteriliza, ao limitar-se ao trocadilho, ao jogo de palavras e fonemas, sem dar importância às ideias, aos temas fundamentais (eternos) da condição humana, do sentido da vida, do amor, do compromisso social, da passagem do tempo, da morte... 

Voltando à poesia de EP, o seu caráter idealista, assim, não deve ser motivo para que um leitor materialista a descarte “in limine”, pois ela satisfaz ao requisito do conteúdo humanista. 

O que explicaria a adoção dessa concepção idealista, dessa supervalorização do espírito, dessa “ânsia do absoluto”, por parte de EP? Embora tenha vivido numa época em que o materialismo filosófico desfrutava de muito prestígio no meio intelectual, EP fez a opção espiritualista, juntamente com a adoção das idéias estéticas simbolistas, contrapondo-se ao parnasianismo dominante. A supervalorização do espírito, característica de EP, se explica, provavelmente, não só pela sua formação judaico-cristã -- com a crença na separação do corpo da alma, e superioridade desta, crença em sua vida futura, na associação do corpo (do sexo) ao pecado etc – mas também pela sua origem social. As famílias burguesas buscavam então, como buscam hoje, enobrecer-se, e conquistar maior status social, mandando estudar os filhos. Resulta daí a valorização da atividade intelectual, motivada, contudo, mais pelo convencionalismo social e menos pela valorização em si das coisas do espírito. Não lhes é suficiente ganhar dinheiro, é preciso que os filhos sejam “doutores”.  Assim, EP -- filho de um português de posses, cristão-novo e comerciante -- foi  enviado a São Paulo para estudar Direito na tradicional faculdade do Largo de São Francisco, tendo concluído o curso em 1889 (foi, aliás, o orador da turma). O número de estudantes do Paraná (que não tinha então instituição de ensino superior) na Corte ou em outras províncias do Império era tão diminuto que sua chegada aqui (ou partida) era notícia na imprensa da época. Por exemplo, o jornal “Dezenove de Dezembro”, de Curitiba, publicou várias notas desse tipo, referindo-se ao jovem Emiliano Perneta...   

A outra face da “ânsia do absoluto”, revelada por EP, é a inquietude existencial, expressa pelo “tédio” ao qual se refere muitas vezes. Do ponto-de-vista metafísico, tal inquietude seria decorrente da frustração em alcançar plenamente os objetivos do espírito, devido ao “cárcere” das almas (a matéria), da consciência da precariedade da condição humana, do reconhecimento da nossa insignificância diante do Cosmos... Todavia, sob a ótica histórica, há razões objetivas que tornam a realidade hostil às pessoas sensíveis, aos artistas e idealistas... (não será por acaso que tantos deles se mostrem desajustados no meio social em que vivem, morrendo prematuramente por abusarem dos “paraísos artificiais” que lhes fornece uma realidade alternativa mais aceitável..). O mundo para EP está dominado pelos “bárbaros”, os quais perseguem objetivos mesquinhos, prosaicos (da prosa, não da poesia...), ligados à busca do dinheiro e do poder, sem compreender os sonhadores, que buscam outro tipo de retribuição. Por isso, o artista para ele deve isolar-se da “multidão” (i.e., dos bárbaros), refugiando-se na “torre de marfim”, para se defender desse mundo hostil, que lhe causa sofrimento, onde reina a falsidade, e outras características negativas,  criticadas por EP, requisitos indispensáveis para o êxito social... Assim, o isolamento do artista é semelhante ao do eremita, que também está inteiramente voltado para o Ideal, o Sonho...

O que poderia explicar tal descontentamento permanente em EP? Do ponto de vista psicológico, seria a insatisfação por não produzir aquilo que, aos seus olhos, se comparasse às obras-primas dos grandes poetas -- franceses e portugueses -- que admirava, dividido que estava entre  as suas obrigações profissionais (como jornalista, advogado, professor e por fim auditor da Justiça Militar) e a literatura. Aliás, há uma passagem na sua “Prosa” em que ele se refere ao período estéril em que morou em Minas Gerais, atuando como promotor público e juiz de direito: pretendia lá escrever obras-primas, mas não conseguiu “nem primas nem sobrinhas...” A maior parte dos poemas que integram “Ilusão” foi composta entre 1897 e 1911, após o seu retorno ao Paraná, que ocorreu em 1896. A obra de EP é pequena, em quantidade de poemas, revelando preocupação com a qualidade. Ele era certamente, como todo verdadeiro artista, um eterno descontente com o que produzia, pois o seu ideal de arte era muito elevado.

Do ponto de vista social, esse descontentamento poderia provir do fato de que ele vivia num meio provinciano, acanhado, dominado pelas convenções, inclusive estéticas, cujas perspectivas estreitas pouco estimulava a realização de todas as suas potencialidades (Curitiba, em 1911 – ano do lançamento de “Ilusão” – tinha aproximadamente 60 mil habitantes) 2. A sociedade paranaense em que vivia era dominada pelos barões da erva-mate e proprietários de terras e de gado. Assim como O. M. Carpeaux afirmou que Baudelaire representava “a má consciência da burguesia”,3 deveremos também nós afirmarmos que EP representava a má consciência dos nossos ervateiros e latifundiários? Acho que não. Creio que é uma visão simplista associar tal descontentamento a uma classe social apenas. Acredito que essa postura é própria das pessoas sensíveis, que sentem mais a precariedade e efemeridade da condição humana, e elas existem em todas as classes sociais...     

Naturalmente não há referência explícita a essas classes nos poemas, pela concepção estética que EP adotou (a mesma que explica porque ele não reproduz a paisagem local em seus poemas). Todavia, os versos mencionam os “grandes”: um dia “Hão de os grandes rolar dos palácios infetos!”.  EP mal esconde aqui a sua satisfação por eles terem, no fundo, o mesmo destino dos poetas, que estão condenados nessa sociedade hostil ... (ambos estão “Vencidos”, título do poema); por outro lado, os “bárbaros” são os seus inimigos declarados, pois “Urdem contra a Beleza as coisas mais abjetas...” (“Dama”). Podem ser, ou não, os membros da burguesia: ele assim rotula as pessoas, de quaisquer classes sociais, insensíveis às coisas do espírito. EP critica também, reiteradamente, o egoísmo, o orgulho e a hipocrisia que ele constata nessa sociedade dominada pelas convenções. Assim, verifica-se, nos poemas, a condenação explícita de certos indivíduos em nome de valores estéticos ou éticos... 

EP participou dos movimentos pela Abolição e República. Mas ele não compreendeu a Guerra do Contestado (diferentemente de Euclides, com relação a Canudos). Não se encontra, em sua “Prosa”, nenhuma referência em favor dos caboclos oprimidos, despojados de suas terras pelas arbitrárias decisões palacianas e dos “coronéis” do interior. Só ocorrem referências em favor dos militares aliados dos poderosos  (cf., em sua “Prosa”, o discurso de EP quando da chegada em Curitiba do corpo de João Gualberto, morto pelos “facínoras” do Contestado...). Lembremo-nos que ele foi florianista, partidário do “consolidador da República” (o que revela certos aspectos de sua personalidade), e optou pelo meio militar, quando deixou o magistério para exercer o cargo de Auditor de Guerra (equivalente a juiz militar)...

Os poemas de “Ilusão” foram compostos após a Abolição (pelo menos, os que foram datados abaixo do último verso), por isso não seria de se esperar que contivessem versos em favor da libertação dos escravos. Mas mesmo em “Músicas”, seu  primeiro livro, publicado em 1888, não há poemas com tal temática (ver “Anexos”, item 6.1). Na verdade, EP então discordava daqueles que utilizavam a Arte para servir a outros objetivos que não fossem os que lhe eram próprios (“Arte pela Arte”). Ele já sustentava tal concepção, mesmo em seu período romântico, apesar de ser admirador da poesia de Castro Alves, quando ainda muito jovem (sabe-se, porém, que nos seus tempos de estudante, em São Paulo, escreveu um panfleto em versos em prol da causa abolicionista, intitulado ”Carta à Condessa d’Eu”, sob o pseudônimo Vítor Marinho).

Mas a sua concepção sobre o papel do artista sofreu uma evolução, no sentido do maior compromisso social: compare-se a sua posição estética em “Alegoria”, de 1903, com aquela implícita no poema “Hércules”, de 1912.  

Quando EP contrapõe o artista à “multidão”, ele o está contrapondo, na realidade, aos bárbaros, não à gente humilde, por quem, nos poemas, demonstra muita simpatia, ao elogiar a vida simples da aldeia, o trabalho do lavrador etc.  É gente que vive mais perto da Natureza... Ele desejaria mesmo ser um simples lavrador (“Solidão” IV), ou um moleiro, “Sem ambições jamais do que não vi” (“Solidão” I) em seu isolamento.

Um espaço considerável, na poesia de EP, é atribuído à caracterização do artista ou poeta. Este se apresenta sob várias formas, principalmente, a do cavaleiro empenhado no bom combate. É o cavaleiro andante de outrora em luta pelos seus nobres ideais, pela Beleza, a sua “dama de olhos verdes”.  O cavaleiro luta contra os “bárbaros” pelo bem e pelo belo, que para EP fundem-se num só objetivo.

 O poeta é comparado também a um rei, a D.Juan, a Erisicton, ao eremita e à criança. Ele é alçado à condição de rei numa atitude por certo compensatória, pois no mundo dos “bárbaros” não é suficientemente valorizado. É comparado a D.Juan por ser um eterno insatisfeito, sempre em busca de novas manifestações da beleza; a  Erisicton -- um personagem da mitologia grega condenado a ter uma fome insaciável, que acaba por devorar-se a si mesmo -- porque também tem uma fome insaciável – a fome de beleza (ou do absoluto) – e se consome nessa busca. É comparado ao eremita, face ao seu isolamento do mundo dos bárbaros. Por fim, é comparado à criança, cuja vida também é guiada pelo sonho, e não por objetivos utilitaristas. Constata-se aqui mais uma influência marcante da formação  cristã de EP, pois a criança representa, nessa tradição, o ideal de inocência, de sinceridade, de ausência de pecado. Segundo os Evangelhos, quem não for como as crianças não entrará no Reino dos Céus... 

O artista é ainda referido como ele mesmo, um ser infeliz (porque se frustra sempre em alcançar seus elevados objetivos), pessimista, supersticioso...

Em contraposição à realidade dos bárbaros, existe a Natureza, onde o mundo material se une ao espiritual. Nela o poeta se refugia. Ele a procura como o religioso procura o templo. Em “Oração da noite”, de “Setembro”, a Natureza é chamada de “catedral /.../, Única onde se pode inda falar com Deus”, o que, aliás,  revela a rejeição, por parte de EP, de qualquer religião organizada.

O poeta se considera profundamente identificado com os diversos elementos da Natureza, irmanando-se aos pássaros e às árvores, falando a sua linguagem. Para EP, aqueles elementos também têm alma, e aí ele se revela crente na metempsicose, como o foram seu mestre Baudelaire e, antes dele, Platão, Pitágoras e os hindus. Assim, há referências ligeiras às “vidas anteriores”  em certos poemas, pelas quais, supostamente, ele deve passar antes de alcançar o Paraíso. Nesse ecletismo filosófico-religioso, misturam-se concepções hinduístas/budistas ao seu judaísmo/cristianismo de formação.

Certamente, o amor à Natureza foi o que determinou a permanência de EP em Curitiba. Em 1896 ele retornou, doente, a esta cidade, e a seu sítio dos Pinhais, depois de morar em São Paulo e Rio de Janeiro, onde levou vida boêmia, e de um curto período em Minas Gerais.  Frustrou-se aí, por não ter vocação para desempenhar o papel de magistrado que a comunidade esperava dele, conforme artigo que consta de sua “Prosa”.  Assim, a paisagem do planalto curitibano -- que devia ser mais bonita naquela época, com as florestas de araucárias ainda não derrubadas e o rio Iguaçu não poluído – foi para ele sinônimo de vida, pois era o lugar onde contava recuperar a saúde abalada, decorrente da vida desregrada que levara nos grandes centros urbanos, aos quais não mais retornaria, a não ser em viagens de curta duração, o que evidentemente prejudicou a sua “carreira literária”.   
             
Como saídas oferecidas ao artista acometido pelo tédio da vida, que busca evadir-se do mundo hostil, dominado pelos bárbaros, são indicadas explicitamente, na poesia de EP, o sonho (da arte, do ideal), as festas (o vinho), as viagens (incluindo a última viagem, a morte) e a mulher, ou o amor sensual.

Inicialmente, o sonho da arte. Para o horror da vida (cf. Flaubert), a arte representa um meio de salvação. EP, por duas citações que faz, revela como entende a beleza, que o artista busca “com furor”. Trata-se do verso de John Keats, que EP escolheu para epígrafe de seu poema dramático “Pena de Talião”, de 1914 – “A beleza é uma alegria eterna”, e da citação de Stendhal, que serve de epígrafe a “Versos doirados”, poema que integra “Ilusão” – “La beauté est une promesse de bonheur”. Assim, para EP, a beleza está associada no primeiro caso à alegria e no segundo à felicidade. EP lhe dá também uma conotação metafísica, relacionando-a ao “outro mundo”, ao mundo transcendente, ao Paraíso cristão enfim, que, por sua vez, é identificado com o estado de Glória, almejado pelo artista.

O vinho, ou a embriaguez, também representa, para EP -- em sua faceta dionisíaca -- uma saída para o tédio. O poeta, como Baudelaire, faz o elogio do vinho, uma forma de evasão pela mudança da paisagem interna (assim como o são outras modalidades dos “paraísos artificiais”, a que recorrem, hoje em dia, parcelas crescentes da população, o que também significa, implicitamente, uma crítica à nossa sociedade). A propósito, Baudelaire já recomendara, em seus “Pequenos Poemas em Prosa”, que deveríamos viver sempre embriagados, seja de vinho, de poesia ou de virtude. Mas sempre embriagados... Note-se aqui a associação da dimensão estética (“poesia”) com a ética (“virtude”), a mesma que ocorre na poesia de EP.

As viagens representam outra opção para superar o tédio, agora por meio da variação da paisagem externa. EP as elogia, e recomenda àqueles a quem ama. Ele expressa frequentemente seu desejo de viajar, “seja para onde for”. No limite, significa a morte, a última viagem. Esta é sempre associada à imagem do mar, uma região de travessia obrigatória para alcançar o reino encantado do espírito. O último verso do soneto “O brigue”, de “Setembro”, diz: “Eu que não sou da Terra e que à Terra estou preso” A Terra tem um duplo sentido: tanto se contrapõe a “mar”, como é nome também deste mundo, em contraposição ao “outro mundo”...   Pela ênfase que EP atribuiu às viagens, e às outras formas de fuga, que expressam a sua inquietude existencial, foi chamado por Tasso da Silveira de “poeta de evasão”, o que não significa, segundo esse autor, ser “poeta de consumpção” (como Mário de Sá Carneiro, por exemplo), haja vista as suas esperanças no “outro mundo”.

Por fim, existe a mulher, a fuga do tédio pelo amor sensual. É curioso assinalar que a supervalorização do espírito, revelada em muitos poemas de EP, não impediu a forte presença da sensualidade erótica em sua poesia (não se trata da poesia de um asceta...). Aliás, para J.G.Merquior, “Perneta é antes de tudo um bom lírico-erótico”. De fato, seus poemas do amor sensual contam-se dentre os melhores que compôs, assim como certos versos, que dão um tratamento erótico a determinadas situações em poemas sobre outros temas. EP chega inclusive a usar eufemismos em certas passagens mais cruas. Teria havido aqui alguma influência do escritor naturalista Júlio Ribeiro, o autor de “A carne”, com quem ele trabalhou na redação na “Gazeta” paulista, e outros jornais?  Como se sabe, EP tinha uma postura eclética com relação às diversas correntes estéticas, e certamente incorporou algo do Naturalismo às ideias simbolistas que adotava.
           
Mas o amor sob forma mais espiritualizada (amor ao próximo) também ocupa um lugar importante na poesia de EP. Isso é ilustrado por “Para que todos os que eu amo sejam felizes” e algumas outras composições, em que todo o seu humanismo cristão vem à tona. Esse humanismo se acentua à medida que o poeta envelhece, e testemunha o desastre da Primeira Grande Guerra, que atinge duramente a sua França bem-amada, pátria da Arte e dos poetas  que muito o influenciaram— Baudelaire, Verlaine, Rimbaud etc. A postura humanista é característica principalmente do estágio final de sua evolução poética, quando o poeta se aproxima da religião, embora sem optar efetivamente por nenhuma delas. Explicitamente, ele se declara então crente em Deus. No livro póstumo “Setembro” estão reunidos diversos poemas religiosos. Todavia, já em “Ilusão” há alguns poemas com tal caráter, notadamente aqueles dedicados à Virgem Maria. Mas isso não significa opção pela religião católica, pois nesse mesmo livro consta um poema anticlerical (“Punição do Herege”).
           
                                                              *

Sob o aspecto estritamente formal, a poesia de EP pode ser assim caracterizada:
           
-- os versos são metrificados, rimados, geralmente alexandrinos, inclusive alguns heterodoxos, divididos em três partes (cesura com acento na 4a, 8a e 12a sílabas), como salientou Nestor Vítor (Verlaine já os adotara);

-- presença de formas fixas, sonetos e quadras, principalmente; presença também de muitos poemas mais longos, com versos emparelhados, ou dísticos; segundo Wilson Martins, seus poemas em dísticos possuem “forte batida rítmica e emocional”,sendo o poeta “geralmente mais fraco no soneto e, não raro, na metrificação”; 4

-- heterogeneidade da linguagem empregada: linguagem simbolista ou nefelibata; linguagem de português arcaico; linguagem de sabor lusitano, com referências a “aldeões”, “fado” e “cornamusa”; linguagem religiosa, semelhante à das ladainhas; linguagem direta, espontânea (chegando a ser até coloquial, às vezes);

-- uso frequente da sinestesia;  uso de maiúsculas alegorizantes;  adoção de eufemismos nos versos lírico-eróticos;

-- quanto ao léxico de EP, consta ao final deste capítulo uma relação (não exaustiva) das palavras empregadas por EP em associação à temática de sua poesia;

-- EP não faz apenas o uso instrumental das palavras, para expressar as suas ideias, metáforas e comparações. Faz também uso estético dos fonemas que compõem as palavras, como é o caso do uso dos sons sibilantes em “Solidão”;

-- EP faleceu em 1921, um ano antes da Semana de Arte Moderna de São Paulo, que representou um divisor de águas na história da literatura brasileira. Assim, ele se manteve adepto da métrica tradicional, embora se permitisse certas liberdades em seu uso, que lhe valeram muitas críticas na época (principalmente a propósito do livro “Músicas”, de 1888). Quanto ao conteúdo, suas ideias eram muito eurocentradas, para o gosto modernista. Há pouca referência às coisas tipicamente nossas nos poemas, exceto aquelas que aparecem indiretamente, por exemplo, quando menciona elementos da flora e fauna locais; 

-- EP escreveu certa vez: “/.../ exigente da música do verso, até o excesso, como eu /.../” 5. De fato, a musicalidade de seus versos é geralmente reconhecida,  inclusive pelo seu crítico mais severo (Dalton Trevisan). EP seguia à risca o conselho de Verlaine -- “De la musique avant toute chose” (aliás, “O Cenáculo”, em abril de 1897, anunciou a publicação de um estudo de EP sobre Verlaine, que não chegou a se concretizar). EP chegava a sacrificar a métrica ou a cesura em benefício da expressão sonora que pretendia alcançar. Apesar de usar as formas fixas e os versos metrificados e rimados, EP adotou  liberdades formais, para adequar-se às suas necessidades estéticas, preferindo a eufonia a ajustar-se rigidamente aos padrões da versificação.  Para se ter uma idéia de como devia ser forte, antes de 1922, a pressão da ortodoxia, um de seus melhores poemas na opinião de Alfredo Bosi, “Fogo sagrado”, não foi incluído em “Ilusão” certamente por conter tais “licenças poéticas” com relação à métrica e à cesura (cf. a propósito o comentário, altamente pertinentes, de Murillo Araújo) 6. EP procurou então, dentro das possibilidades, adotar a metrificação e as formas fixas a seu modo, sem sacrificar a eufonia ou o ritmo desejado para compor versos mais “corretos”. Além disso, ele fez um uso estético bastante significativo das assonâncias, aliterações, rimas internas, polissíndetos etc, como este trabalho procurou mostrar;

-- as imagens mais frequentemente invocadas nos poemas são as do cavaleiro, do rei, do sol, da luz, do céu, das estrelas, da noite, da lua, das trevas, do vento, da chuva, do frio, da neve, da lama, do pântano, do mar, da montanha, das fontes, das árvores, dos animais, do pássaro, das flores (girassol, crisântemos, dálias etc): predominam assim as imagens apoiadas nos elementos da natureza (vide, ao longo deste trabalho, uma amostra das metáforas, comparações etc  imaginadas pelo poeta e indicadas nos versos aqui transcritos);

-- presença da bizarrice de certos versos e de comparações insólitas; alguns exemplos:

“As damas, bem como um cavalo,
Sobre esse coração d’abril,
Passaram, quase sem olhá-lo,
Nem abraçá-lo, poeta sutil”. (“Canção do diabo”)
                                              
                                               *

“As naus, que vão partir por esse mundo fora,
Miram vaidosamente as caudas de pavão...”   (“Hércules”)

                                               *

“Noite. O céu, como um peixe, o turbilhão desova
De estrelas a fulgir. Desponta a lua nova.”     (“Dor”)

                                               *

“Mas nada, nem sequer ao menos eu, torcido
O tronco nu, o gesto doido, o pé no ar,
Hei de ver Salomé dançar como S. Guido!” (“Soneto”)


-- presença da personificação dos elementos da natureza;                        
           
-- referências frequentes à mitologia greco-latina, judaico-cristã, histórica e literária/artística. Há uma forte presença do mito nessa poesia, pois EP o adota para expressar indiretamente a realidade, de acordo com a sua concepção estética. Não explora contudo a nossa mitologia  (mitos e crendices do folclore brasileiro):  

1)     referências à mitologia greco-latina:

-em “Ilusão”: Apolo, Citera, Marte, fauno, ninfa, Vênus, Zéfiro, Flora, Juno, Adônis, Mirto, sátiros e dríades, Pã, Leucotéia, Vulcano, Diana, Júpiter, Eros, Baucis, Filemon, Orfeu,  Erisicton, Metra, Ceres, barca de Caron, rio Estígio, leito de Procusto, Baco, Laís, Orco, o Olimpo, Endimion, Tântalo, Sileno, Ariadne;
-em “Pena de Talião”: Aurora, Céfalo, Prócris, Ericteu, Júpiter, sátiros e ninfas;
-em “Setembro”: Silenos, faunos, egipãs (=sátiros), Pã, Juno, Hércules, leão de Numéia, hidra de Lerna, Prometeu, Dejanira, túnica de Nessus;

2)     referências à mitologia judaico-cristã:

-em “Ilusão”: Herodes, Adão, Babilônia, torre de Babel, rei Salomão, rainha de Sabá, Arca de Noé, Adão, Jesus Cristo, Jó, Deus, Virgem Maria, Sulamita, Jerusalém,  Sant’Ana, mulher de Ló, Rei de Baltazar, Sichém, Belém, Sansão, Lúcifer, Satã, Horto das Oliveiras, Éden, Ofir;

-em “Setembro”: Salomé, Satã, torre de Babel, Jó, Senhor, Jesus, Deus, Salomão, Belém, Sulamita, Lúcifer; 

3)     referências históricas:

-em “Ilusão”: Roland, Ovídio, Júlia, Breno, Messalina, Rei Sol, Calígula, Tibério, Heliogábalo;

4)     referências literárias/artísticas:

-em “Ilusão”: Marion Delorme, Iago, Rei Lear, Don Juan, Ariel, Ulisses, Romeu, Doutor Fausto, Tróia, Arlequins;
-em  “Setembro”: Pierrot, Colombina, Romeu, Julieta.

                                               *


Encerrando este capítulo, apresento abaixo um levantamento (não exaustivo) do léxico de EP associado à temática de sua poesia:

1. O plano superior do espírito
estrelas- astros- sol- luz- etéreo- céu- azul- azul celeste- linho- nuvens- ideal- esquisito- alma- sombra- névoa- (região) diamantina- pérola- abismo- marfim- prata- ouro- pétalas de rosa- fruto- flores- lírio (x lodo)- elevação do espírito: montanha- escada- torres- asas-

2. O plano inferior da matéria
lama (x luz)- limo- lodo- chão- charco- pântano- pauis- corpo- pó- pardieiro- prisão (prisões)- ergástulo- enxovia- calabouço- masmorra- galés- algema- verme- erva ruim- víboras- espinhos- ódio- podridão- imundície- (mundo coberto de) gafeira- sangue- carnificina- crimes

3. A natureza

a)     Os três reinos
Reino mineral: penhascos- rochedos- alcantis- escolhos- serro-  monte- montanha-orvalho- fonte(s)- mar- rio- lago- mármore- sal- poeira- vales- grão d’areia- marfim- tesouro-pérola-  ouro- diamante- opala- safira- prata- esmeralda- cristais

Reino vegetal: relva- musgo- ramo- raminho- ramo de hera- louro- pâmpanos- mata- bosque- floresta- ébano- sândalo- verbenas- mirto- salgueiro- vime- folhas- folhagem- asfodelo- nardo- ninho- árvore(s)- arvoredo- pinheiro- tília- carvalho- mancenilha- palma- palmeira(s)- laranjeira- videira- cinamomo- alecrim- campos- álamos- choupo(s)- veneno- espinho- horto- jardim- flor- giesta- girassol- cecém, açucena, lírio- rosas- flor de lis- violeta-  jasmim- malmequer- tulipa- anêmonas-  fruto- pomos-  maçã- romãs-  vindima

Reino animal: leão (leões)- touro- cão (cães)- cadela-  hienas- chacais- cordeiro- cordeirinhos- ovelhinhas- corça- gamo- serpente- verme- gata- animal- batráquios- fera- rebanho- ovelha (s)- cisne (s)- cera- arminho- lobos- loba- felinas- corcel- inseto- cigarra- borboleta (s)- abelha- favos- mel- formiga- gafanhoto- cervo- veado- boi- animais- aranhas- morcego- lebre- cerdos- escaravelho- ave- andorinha- asas- pavões- gorjeio- pássaro- pombos- passarinho- sabiá- penas- abutres- colibri- galo- corvos- rouxinol- beija flor- águia- perdiz

b)     Natureza x estados d’alma
A natureza amiga: sol (de inverno)- luz- calor- aurora- madrugada- manhã-outono- primavera- dia- sabiá- tarde- paisagem- mata- gorjeio- jardim- flor- arminho- cigarra- abelha- cão (veadeiro)- gata- pombos- brisa  

A natureza hostil:  ventos- vendavais- temporal- raio- chuva- frio- neve- gelo-  noite- trevas- escuridão- inverno- veneno- espinho- fogo- incêndio- serpente- fera- morcego- batráquios- abutres- escaravelho (x flor)- seca
                                              
4. O mundo dos homens (dos bárbaros e dos humildes)- cidade- templo- tasca- arado- enxada- chapéu de palha- pão- beco- rua- viela- aldeia- castelo- torre- torreões- palácios- sinos- solar- quarto- vitrais- espelho- candeia- cofre- taça- cornamusa- hospital- albergue- leito- estrada- caminho- bastão- bordão-  punhal- dardo- coche- barco (cf. diversos tipos abaixo)- sofá- sala- alabastros- estátuas- jornal 

 5. Os personagens desse mundo:  o rei (cf. item 7 abaixo)- os grandes- o cura- Sulamita- povo- plebe- multidão- o moleiro- pobres- pobrezinhos- humildes- pastores- lavrador- pescadores- o cavaleiro (cf. item 8)- o eremita- o peregrino- o velhinho- D.Juan- o poeta- o artista- a mulher (cf. item 17)

6. Léxico associado aos bárbaros: abutres- chacais- serpentes- monstros- reptis- cegos e surdos- bestas feras- feras- ladrões- carrasco

7. Léxico associado ao rei: manto- púrpura- trono- cetro- brasões- reino- luxo- glória- fausto- diadema (rainha)- orgulho- crueldade- ambição- veludo- seda- ouro- vaidade- requinte- pavão
 
8. Léxico associado ao cavaleiro: armadura- arnês- casco- plumas- boldrié- escudo- broquel- lança- espada- alfanjes- gládio- adaga- punhal- cavalo- luta- refrega- peleja- guerras- combate

9. Léxico associado ao artista/poeta: doido- criança- cavaleiro (cf. item 8)- beleza- febril- furor (pela beleza)- belo- feio- mal- sonho- ilusão- infeliz- pessimista- cruel- nervoso- cego- pombo- rei (cf. item 7)- D.Juan- furor- menestréis- manto- púrpura (tecido)- ramo d’hera (glória)- eremitério- ermitão- torre- palácio- fauno- funâmbulo- pássaro- águia- doutor Fausto   

10. Léxico associado ao tédio: (dia) fusco- (luz) mortuária- fumo- soturna- cloaca- luto- cinza- betume- cerdos- batráquios- lama- doente- natureza hostil (cf. item 3.b)- monstro

11. Léxico associado ao sonho
a) da arte: arte- artista- beleza- belo- feio- estátua- música- hino- canção- cantiga- lied- fado- cornamusa- violão- flauta- clarim- lira- violino- saltério- dó- ré- mi- fá- sol (clave)- sonata- cores (cf. item 12)- poeta- versos
b)     do ideal: ideal- bem- mal- justiça- abraço- eremitério- túnica (=ideal)- vela (=ideal)

12.Cores mencionadas: verdes- azul celeste- azul ferrete- vermelho- brancas- azul- azulado- róseas- rubras- cor de rosa- negro- doirado- roxo- lilás- alvas- amarela- rosa- carmim- oiro- escarlate- esverdeada- rosicler- púrpura

13. Léxico associado ao vinho: festas- dança- lupercal- embriaguez- embriagado- ébrio- bêbedo- vinho- taça- copo

14. Léxico associado à viagem: mar- cais- barco- barca- embarcação- brigue- vela- galera- trirreme- nau- batel- balsa- viagem- peregrino- bastão- bordão

15. Léxico associado à morte: sono- letargo- ossos- esqueleto- túmulo-  enterro-  funerais- cadáver- luto- jazigo- cova- vermes- vala- prata- luar- outono- corvos- pesadelo- algema

16. Léxico associado ao tempo que passa: juventude- mocidade- moço- velhinho- velhinhos- criança- infância- lembrança- saudade- tempo

17. Léxico associado à mulher/ ao amor sensual: mulher- virgem- donzelas- flor- girassol- cecém- lírios- flor de lis- tulipa- rosa- maçã- pecadora- Lúcifer- serpente- torres de marfim- torres de safira- pérola- pérolas- astro(s)- pastora- rainha- orgulho- púrpura- gata- Sulamita- carnes- seio- ventre- olhos- tranças- desejo- cabelo- cabeleira- perfume- louro- pele- morenas- lábios- ombros- espáduas- nudez- nua- estátua- punhal- dardo- desejo- eufemismos (destilador- mirra- abrir as portas- fogo- incêndio- ardor- beber desse vinho- comer desse pomo) 

18.Sentimentos & sensações- amor- ódio- ira- cólera- orgulho- vaidade- fé- alucinação- volúpia- voluptuosidade- paixão- decepção- desilusão- desenganos- desespero- desesperação- furor- anseio- ansiedade- ambição- ilusão- horror- suspiros- desejo- prazer- tédio- enojo- desprezo- desdém- esperança- gozo- lírico- sombrio- solidão- paz- felicidade- piedade- mágoa- saudade- agonia- êxtase- vingança- crueldade- pena- tristeza- pesar- melancolia- choro- soluço- alegria- riso- fome- sede- ardor- febre- febre esquisita- frescor- delírio- alegria esquisita- frio

19. Léxico religioso: águas lustrais- monge- templo- incenso- Deus- Senhor- Maria- Jesus Cristo- mãe (Sant’Ana)- cruz- fé- prece- oração- diabo- diabólico- satã- demônios- anjo- burel- estamenha- altar- círio- pecado- virtude- sobrepelizes- hissope- saltério- padre-nossos- sinos- (render) graças- (Nossa) Senhora- (sê) bendita- votos

20. Virtudes & pecados:
a) virtude- bondade- bom- sincero- humildade- Justiça
b) pecado- traição- falsidade- Babilônias- egoísmo- luxúrias- orgulho- vaidade- monstro- poço- perfídia- serpente- verme- Mal- cóleras- enojo      

21.Esoterismo, superstição, fatalismo: mistério- véu- outro mundo- advinhos- bruxa-  agoureiros- maldição- azar- desgraça- destino- sina- sorte- ventura- treze- três- diabo- satã- súcubo- espectros- fantasma- além

22. Arcaísmos: oelhos- hei sofrido- mui longes- El-rei-  mi (m)

23. Palavras onomatopaicas: dlem, dlom   
           


                                                          
Notas ao capítulo 4



1 Apud LYRA, Pedro- “Conceito de poesia”. São Paulo, Ática, 1986- p.6

2 LACERDA, Cassiana Lícia de-- “Passeio Público: primeiro parque público de Curitiba”. Boletim Informativo da Casa Romário Martins”. Curitiba. Fundação Cultural- v. 28, nº 126, agosto 2001, p. 97

3 CARPEAUX, Otto Maria – “História da Literatura Ocidental”, v.V, Rio de Janeiro, Ed. O Cruzeiro, 1963, p. 2259

4 MARTINS, Wilson—“História da Inteligência Brasileira”- v.V (1897-1914)- 2a. ed.- S.Paulo, T.A. Queiroz, 1996, p. 471.

5 “Obras completas de Emiliano Perneta”- 1º v.- “Prosa”- Curitiba, Gerpa, 1945, p. 252

6 Cf citação de Murillo Araújo em MURICY, Andrade – “O Símbolo à Sombra das Araucárias” (memórias)- Conselho Federal de Cultura e Departamento de Assuntos Culturais, 1976, p. 232  

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